Ícaro: ou como ter altura de onde cair

Matisse, Icare, in Jazz, 1943.

Matisse, Icare, in Jazz, 1943.

I

Ícaro, na variação mítica grega mais comum, era filho do arquitecto e inventor Dédalo, encontrou-se com a morte por voar muito próximo do sol. Ícaro nasceu da união entre Dédalo, à época arquitecto do rei Minos de Creta, e uma escrava da corte. Um dia, o seu pai traiu Minos fornecendo a Teseu, por intermédio de Ariadne, o plano que permitiu àquele sair do Labirinto, depois de matar o Minotauro. Furioso, Minos decidiu puni-lo, aprisionando-o no Labirinto com o seu filho, Ícaro.

Mas Dédalo inventou uma forma de escapar: construiu asas de penas coladas com cera. Conta-nos Ovídeo nas Metamorfoses que Dédalo preveniu Ícaro de que não devia voar nem muito alto (o sol fundiria a cera) nem muito baixo (o vapor das ondas tornaria as asas pesadas). Mas no decurso do voo, Ícaro, “tomado de entusiasmo” (Apolodoro), negligenciou os conselhos do pai e aproximou-se demasiado do sol. Esta imprudência fez com que as asas se desagregassem sob o efeito do calor e o jovem caiu e morreu afogado no mar... Icário.

II

Simbolicamente, a história trágica de Ícaro representa os perigos que corre quem está animado de ambição desmedida (a hybris grega, retomada pelo cristianismo em termos mais teológicos e injectando-lhe toxicidade) ou de audácia inconsequente. Em bom português, diz-nos “não te estiques!”, forma de traduzir rapidamente as inúmeras considerações sobre a maldade, quase sempre mefistofélica, da pretensão inchada. Mas é também uma narrativa sobre a ousadia vital do ser humano, outro que o acomodado à repetição confortável do previsível, antes aquele que se mantém na disposição febril de ser diverso, de se aventurar no desconhecido para se reinventar. É assim que leio o belíssimo poema de Marcel Fernandes publicado há pouco tempo na Enfermaria:

Ícaro

descamando o quarto
cavo a cova fria da rotina
despertando a águia que habita
a pele dos lençóis
tudo enfim deverá acontecer
o voo incerto atravessa-me o osso
alado: lanço-me ao sol

Este “lançar-se ao sol” do poema é de um arrojo que prenuncia o trágico, e nem o fatalismo do “tudo enfim deverá acontecer” reduz a infinita paixão temerária de escalar para lá do que se pode. Ícaro rompe a placenta e promete-se a um futuro diferente dos agrimensores receosos e satisfeitos (como o que, no quadro de Pieter Bruegel, alheio à queda de Ícaro no mar continua a lavrar a terra).

Pieter Bruegel, 1555-1560

Pieter Bruegel, 1555-1560

III

O que nos ensina este mito? Os gregos não tinham a noção da nossa liberdade, só era possível escolher dentro do que já tinha sido definido pelo destino, e talvez por isso não houvesse verdadeiros heróis, nem Antígona ou Prometeu o foram (apesar do fascínio que provocaram nos modernos), eles faziam parte das cartas que os deuses queriam jogar. Mas no caso de Ícaro parece existir um ligeiro desvio às fórmulas tradicionais de construir a tragicidade: a queda dá-se porque desobedece aos humanos, a seu pai, e não aos deuses. E se isto introduz uma certa frivolidade, a desatenção de Ícaro revela uma ambição inocente, imagino-o a voar, subindo incandescente nos céus em pura felicidade. Para ter uma dimensão trágica precisava de tensão entre elevação e queda, uma verticalidade indevida, cheia de vigor mas já, também, de vertigem.

De qualquer forma, gosto de ler o mito não como um gesto de criança traquina e desobediente mas como um desafio à normalidade, pagando-se o preço por se elevar à altura do que queria. Mesmo se não é uma leitura filologicamente segura, é a hermenêutica que nos apetece seguir, e como sabemos nos mitos não há a verdade original, os seus sentidos originários têm muitos espaços em branco, é, aliás, por isso que permanecem vivos.

IV

Mas há ainda outras lições a retirar. Aproximando-me novamente do poema de Marcel Fernandes, leio-o como o preço a pagar pela excepção, sair do labirinto pós-moderno, onde se é rebelde com uma carteira vasta de seguros (até um de vida, como se se pudesse extinguir o próprio morrer). O pior é não ter altura de onde cair, ser pobremente rasteiro, aborrecido. Devemos prender-nos a sonhos de altitude, afastar-nos do que vivemos e agarrar-nos com mãos de lenhador ao que esperamos viver. Sem voltar a fumar o opiáceo da esperança, com ou sem Deus, que também tem histórias celestes. Saltar por cima do que somos na secreta missão de renascermos, sem mistificações ou seguidismos, sem nome. Nunca mais nos afogarmos na calmaria da normalidade. Sem o síndroma de Ícaro vive-se numa banalidade desoladora e desastrosa. Por isso leio La Chute d’Icare de Matisse não como ele queria (um piloto abatido caindo do céu iluminado por disparos), mas como esse neófito desobediente que obteve por instantes a felicidade concentrada do universo. Tenhamos, pois, altura de onde cair.

Matisse, La Chute d'Icare, 1947.

Matisse, La Chute d'Icare, 1947.