Criar a partir da ambiguidade

Henri Maldiney escreveu que «Nietzsche n’est créateur que dans l’ambigüité» (Nietzsche só é criador na ambiguidade), Art et existence, Klincksiek, 2003, p. 144.

A expressão é bela, mas perigosa. Perigosa porque é bela (o feio não queima, erige sempre uma distância protetora, no máximo irradia para dentro), acho que ainda não soubemos dizê-lo melhor fora da ideia de «femme fatal», mas agora há códigos de género que proíbem esta unilateralidade, e dizer «femme ou homme fatal» perde toda a graça. Portanto, a beleza de rotular Nietzsche como um criador amigo da ambiguidade abre para notas de rodapé analíticas que coloquem um espartilho no entusiasmo apolíneo (a embriaguez estética não é apenas dionisíaca), o guiem para a possibilidade do esclarecimento. Resumindo, por que razão Nietzsche só pode criar na ambiguidade?

A sua obra é, por um lado, um produto de uma certa perícia filológica, arte de desenterrar sentidos, ocupação típica de parte da academia germânica da segunda metade do séc. xix (a Alemanha, proto-Alemanha, buscava-se escavando o passado grego e romano, os estudos clássicos permitiam aceder às origens de uma Europa mais cosmopolita e estimulante do que a fragmentação quase arbitrária do feudalismo ou os impérios românticos francês e habsburguiano). Se é verdade que a sua filologia se desviou, quase desde o início, do verdadeiro do seu tempo; não é menos verdade que manteve uma arte da interpretação baseada no método filológico de atender cuidadosamente à intenção dos textos originais.

Por outro lado, contudo, a ambição de ser filósofo (uma ambição mas também um complexo), isto é, produtor de sentidos, fê-lo experimentar interpretações que devem ser validadas mais pelas repercussões do que pelas proveniências (filosofia contra filologia). Influenciado, também ele, pelos vitalismos grego e romano, Nietzsche interessar-se-á muito mais pelos efeitos existenciais (sim, um existencialismo, que preparou talvez melhor o de Jean-Paul Sartre do que o de Kierkegaard) do que por uma verdade fundada na adequação entre a realidade e o pensamento (simplifico: uma adaequation rei et intelectus). Querer viver múltiplas felicidades e infelicidades arruína as certezas.

E um produtor de sentidos ou dita e espalha dogmas, ou produz discursos ambíguos, cuja única arma está em cativar os leitores (pelo estilo e pelas imagens, mais do que pelos conceitos), porventura manipulá-los. Como na ficção, Nietzsche alia nos seus ensaios o que é dito e o que fica sugerido, à maneira do que escreveu certa vez Vitorino Nemésio: «o poeta afirma precisamente o que suspende na indeterminação do enigmático». E Nietzsche, não sendo um poeta acabado, continua a manter, sempre, uma parcela de enigmático em tudo o que escreve, mesmo nos textos que tradicionalmente a receção coloca mais perto do positivismo (Humano, Demasiado Humano e, talvez, Aurora ou parcelas de Para a Genealogia da Moral). Habitando, com a sua arte privada de interpretação, ao mesmo tempo o íntimo e o horizonte, tudo a partir do profundo conhecimento da respiração do seu tempo.

Por isso (podia dar outros exemplos), afirmou em Para lá Bem e Mal, §289:

«Não se escrevem livros, justamente, para ocultar aquilo que se encerra dentro de si? […] Cada filosofia é uma filosofia de fachada — eis a opinião de um eremita: “Há algo de arbitrário no facto de o filósofo ter parado aqui, de ter olhado para trás e à sua volta, de não ter cavado mais fundo e ter posto de lado a pá, — há nisso algo de que se deve desconfiar.” Toda a filosofia esconde também uma filosofia [Jede Philosophie verbirgt auch eine Philosophie]; cada opinião é também um esconderijo; cada palavra é também uma máscara.»

[jogo de sombras, a lenda criará o sentido]