Hurricane

Ainda deve estar entre aqueles meus primeiros poemas, o/a “Hurricane” do Bob Dylan
Em papel reciclado e a tinta azul, que era sempre a que sobrava no fim do tinteiro,
Numa gaveta dominada por humidade e segredos que só os fungos agora conhecem,
Era uma canção, poetas americanos nunca tinha lido e o inglês do nariz ainda me custava
A entrar nas orelhas geadas, parecia-me um conto, mas era em verso, cantado,
Aquele mp3 que o amigo francês encontrou no Napster e só não se gastou
Por se ter perdido entretanto entre cds riscados e disquetes desmagnetizadas,
Ainda devo ter grandes obras imortais perdidas naqueles bits obsoletos,
Pensem nos vossos cérebros fossilizados, revoltados com aqueles títulos
De imortalidade atribuídos por mortais, revoltados da mesma forma com a fome
E a fartura dos outros, quando o estômago moderadamente cheio de reis,
Tenho lido desde então tantos poemas que não são canções sequer, só merda,
Escrito provavelmente ainda mais, mas nunca tive outras ilusões além da purga,
Toda a revolta dos poetas agora, lembra-me o Gregory Corso indignado
Porque alguém tinha escrito “poet” no túmulo do Jim Morrison,
Se calhar com inveja de um artista menor ser maior que a morte, “he beated the dust”
Parece-me que todos os poetas queriam ser na verdade rockstars,
Que todos lhe comem do prato dos restos e não conseguem parar de rosnar,
Ao mesmo tempo que se comovem com os cacos dos sonhos alheios e galinhas mortas,
Nada chega para todos, onde um está só o amigo cabe, amigo do ódio de estimação,
Imparcialidade impossível nos olhos amargos de dedos pesados pelo brilho de lata,
Cantor não entra, palavras só as da minha cor, em papel é que é,
A cantar ou a rosnar, de papel ou de ar, lembrem-se que
Cabemos todos neste barco de ilusão em direção ao esquecimento.

Turku

31.10.2016

 

 

Sobre o prémio Nobel da Literatura

Estava a comer um pão com queijo quando soube que Bob Dylan tinha vencido o prémio Nobel da literatura. Não tinha manteiga.

Os prémios com manteiga sabem sempre melhor. Tornam o pão menos seco, mas não fazem bem ao colesterol.

O pior é quando a dieta que nos impuseram é à base de opiniões. Muitas opiniões. É que eu engordo facilmente.

No outro dia, só para dar um exemplo, estava a andar na rua e caiu-me uma opinião. Olhei para o chão. Estava muito sozinha, ali no solo, coitada, quase que alguém a pisava. Mas depois pensei: pobrezinha, vou pegar em ti e pôr-te na minha boca outra vez.

Era de noite, e num beco escuro alguém me olhava de soslaio. Olhei outra vez. Era impressão minha, não era ninguém.

Depois, ouvi uma voz. Falava americano. “Pedro, és tu?” Nem queria acreditar, era o Bob Dylan, mas a coisa pareceu-me artificial, porque não disse “Pedro, is that you?”. Mesmo assim fiquei bastante perplexo, pois tendo passado toda a adolescência a pensar noutra coisa qualquer, nunca soube reconhecer ícones. Se a Madona passasse por mim não saberia quem era. Essa que está viva, claro, não o fóssil.

Bom, nem queria acreditar.

“Pedro, és tu?”

Eu perguntei – que outra coisa poderia fazer? – “mas quem és tu?”

Ele respondeu: “então nos últimos parágrafos já tinhas admitido que eu era eu”.

“Eu?”

Fiquei confuso, mas depois pensei: bom, não me conheço assim tão bem, pode ser que algo de estranho se tenha passado.

“És tu, Bob?”

O silêncio respondeu-me torto. O silêncio responde sempre torto. Entretanto, já tinha comido todo o pão que tinha para comer, nem tinha fermento nem nada.

Sobejamente confuso, olhei para a chávena de café e pensei: “caramba, era capaz de jurar que nunca tinha falado em chávenas de café”.

Pus uma pitada de opinião e segui em frente.

Entretanto, um sujeito muito estranho começou a olhar para mim, porque o verbo começar implica que ele já lá estava.

E pensei: oh lá, aqui há gente que conhece muito bem as coisas. Mas olhem para mim, todo sujo de opiniões, estava a andar e tropecei numa. Estatelei-me...

Outros poderiam pensar que um prémio é só um prémio. Aparentemente este é “o” prémio. Aparentemente é do caralho.

“O” prémio.

Com que então há prémios. Boa, adoro prémios. Gosto de pôr manteiga nos prémios, para o pão não ficar tão seco. Aí sim emito uma opinião forte, vigorosa, viril: adoro pão com queijo.

“Pedro, és tu?”

Desculpe, meu querido poeta, não o conheço, mas estou certo de que “o” prémio vai ser muito importante para si e para os seus, e especialmente para quem não o recebeu, e mais ainda para os que acham que “o” prémio devia ou não devia ser seu.

“Olhe, desculpe, mas deixou cair esta opinião.”

Olhei para trás. Uma velhota começou a aparecer, o que é confuso, porque não se pode começar a fazer uma coisa que é surgir. Tinha razão, olhei; de facto, tinha deixado cair uma opinião.

Aparentemente – pensei – é muito importante sublinhar em voz alta aquilo que pensamos. Simular nas nossas vidas os noticiários e as/os magazines culturais do mundo. Só assim poderemos verdadeiramente apreciar um/uma  bom/a sandes de queijo.

Bom. Nisto ficou tarde. À tarde, quando posso, gosto sempre de ouvir um pouco de música.

Ia a meio de uma música de que gosto muito, quando apanhei um susto imenso. Era o prémio Nobel de 1575. Era zarolho. Disse, “meu amigo, dás-me um pouco de pão?”

Disse-lhe, sim, claro que sim, conheço-te de retratos, estás envelhecido, companheiro, mas toma, claro, toma lá, gostas de pão com queijo? Isto era tudo bastante inverosímil, uma vez que anteriormente já tinha ficado definido que o narrador comera o pão todo, até ao fim, porque nunca se come o pão todo até ao princípio.

Ele disse-me: “é assim que tratas um Nobel?”

Pedi-lhe desculpa, mas em 1575 ainda era uma criança, não sabia bem que existiam prémios, achava que as pessoas simplesmente faziam – quando lhes deixavam – a poesia que podiam fazer.

“És tremendamente ingénuo”, bradou uma voz dos céus. Ou dos seus? Já não sei.

Olhei à volta, e obviamente não tinha sido o zarolho. Entretanto atirara-se com uma voracidade épica ao meu pão com queijo, que vi desaparecer com alguma pena, mas com o sentimento de dever cumprido.

“Roberto, sois vós?”

Ainda o ouvi sussurrar estas palavras. Mas, entretanto, estava na hora de sair de casa, e nunca se deve ficar em casa quando é hora de sair de casa.

Um abraço,

Pedro Braga Falcão

Kafka e Bob Dylan: uma nota

Franz Kafka, revelando uma faceta, ou pelo menos um corte de cabelo, de clássico controverso. 

Franz Kafka, revelando uma faceta, ou pelo menos um corte de cabelo, de clássico controverso. 

No terceiro volume da biografia de Kafka, Kafka: The Years of Insight, Reiner Stach tem um capítulo intitulado ‘What do I have in common with the Jews?’, em que se debate a perplexidade com que os contemporâneos de Kafka receberam A Metamorfose e as sucessivas tentativas de categorizar a obra como ‘literatura alemã’, ou ‘literatura judaica’, ou ‘literatura de vanguarda’. A propósito deste assunto, Stach escreve:

When nothing is self-evident anymore and suddenly everything goes, the waving flag of the collective, isms, and Volk ultimately remain the reliable identifying marks. The dogged attempts by Kafka’s early reviewers to pigeonhole him typified the era.

Por detrás da dificuldade dos contemporâneos de Kafka esconde-se a ideia de que nos relacionamos com a literatura a partir um conjunto de expectativas e conceitos prévios que entram em falência quando o objecto da nossa atenção não pode ser confortavelmente arquivado na caixa em que o queríamos arrumar. A força que a literatura encerra e a própria ideia de literatura como exercício de empatia são fruto deste atrito. 
Ligada à noção de que o Prémio Nobel da Literatura confere a um autor o vago estatuto de clássico vivo, estão os nossos preconceitos (não só em sentido etimológico) sobre o que é literatura. Tentativas de institucionalização da literatura tendem a acarretar esta desvantagem. A discussão dos contemporâneos de Kafka sobre A Metamorfose pode ser vista como um passo nessa direcção: que tipo de autor era Kafka e, segundo esse conceito, com que chave ler a sua obra. Um dos poetas do círculo em que Kafka se movimentava, Frank Werfel, escreveu-lhe uma carta em que dizia

Dear Kafka, you are so pure, new, independent, and perfect that one ought to treat you as if you were already dead and immortal.

O entusiasmado de Werfel não pode ter sido particularmente encorajador para Kafka (fica ali a ecoar o como se já estivesses morto). Não incluindo uma tentativa de arrumar Kafka numa determinada caixa, estas palavras escondem, no entanto, outro preconceito pelo qual tendemos a pensar que a grande literatura se apresenta e se distingue do que não pode ser classificado como tal, o teste do tempo: um autor clássico é, em 99.9% dos casos para os mais conservadores, um autor morto. É claro que se queremos compreender a literatura como algo vivo, que pode agir sobre o presente a menos de três séculos de distância, podemos propôr outras chaves de interpretação, como por exemplo, a ideia de que o autor de algo que descreveríamos com a palavra 'clássico' é aquele que se relaciona de um modo tão pertinente com o seu tempo que, ao mesmo, tempo, acaba por o transcender, o que me leva à parte deste apontamento que é sobre Bob Dylan. 
Talvez também entre os editores da Enfermaria 6 não haja um possível consenso sobre esta decisão que tanta polémica continuará a causar (o Nobel nunca agrada a todos), mas talvez isto possa ser acrescentado, sem qualquer pretensão a posição oficial deste espaço (a Enfermaria pertence a muitas vozes), que Bob Dylan é um dos autores mais relevantes e citados da cultura americana, numa obra que actualiza as mais diversas influências e tradições, que a atribuição anual deste tão badalado prémio é sempre um golpe de morte, de uma cajadada só, para umas quantas dezenas de autores que já fazem parte do cânone da literatura dos seus países de origem ou da literatura mundial (o Nobel enquanto modo de dinamizar a burocracia pela qual cânones se inventam e são sancionados), uma vez que em condições normais só um autor tende a ganhar por ano (daí ter dificuldade em entender o argumento dos que querem ver este prémio como uma oportunidade desperdiçada, este prémio é sempre uma oportunidade desperdiçada de reconhecer os escritores que verdadeiramente me agradam, e não só a mim), e que talvez a função do Nobel seja chamar a atenção sobre as muitas formas por que a literatura opera e se reinventa. Os mais optimistas quererão e poderão ver neste prémio um comentário acerca do momento político que a América atravessa, o reconhecimento de uma certa esquerda americana de que Bob Dylan é um símbolo, a ideia de que este prémio, de resto como a literatura, é mais do que um assunto meramente cultural. Discutir se Dylan é de todo um escritor parece-me uma conversa que só pode ser entretida depois de se passar pelo tipo de intervenção cirúrgica que deu ao nosso Egas Moniz o Prémio Nobel. Mas a esse respeito, talvez valha a pena acrescentar o cliché óbvio, e balbuciar que um grande escritor é aquele cuja obra deixa perceber uma aguçada perspectiva sobre o mundo, e que as canções de Bob Dylan traduzem a atmosfera de um sem número de mundos. Mas talvez seja de concluir com um belo parágrafo de Miguel Esteves Cardoso, numa crónica de ontem no Público:

A obra de Dylan – que é caoticamente desigual, havendo coisas terríveis ao lado de obras-primas – é uma gloriosa colecção de todas as tradições literárias da humanidade, desde os trovadores aos cantores de blues, desde os contos de fada às orações.

Finalmente temos um Nobel à altura de Dylan.


Mais sobre Dylan e o Nobel: 

Miguel Esteves Cardoso, Bob Nobel, nem menos, Público.
Ricardo Domeneck, Um prémio a um trovador moderno, Deustche Welle. 
Pedro Mexia, “Estou contente, triste, para cima, em baixo, dentro, fora, lá no céu e cá nas profundezas da terra”, Expresso.
Alexis Petridis, Pop lyrics aren't literature? Tell that to Nobel prize winner Bob Dylan, The Guardian.
Dan Piepenbring, Writer's, it's time to learn guitar, and other news, Paris Review.
Luís Miguel Queirós, Isabel Salema, Victor Belanciano, 'Dylan está acima do Nobel', Público.
Luís Quintais, Bob Dylan dirige-se aos seus contemporâneos, Luís Quintais (originalmente publicado na Relâmpago).
David Remnick, Let's celebrate the Bob Dylan Nobel Win, The New Yorker. 
Telmo Rodrigues, Bob Dylan está do lado certo da história, Observador. 
Luc Sante, Dylan's Time, New York Review of Books. 
'Dylan towers over everyone' – Salman Rushdie, Kate Tempest and more pay tribute to Bob Dylan, The Guardian.