Daniel Francoy, "Identidade" ou economia do desalento (nota de leitura)

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“Que improvável trazer
o dom da alegria.” (Identidade)

 Daniel Francoy, colaborador da Enfermaria 6, nasceu, desse segundo nascimento que nós consideramos primeiro, em 1979, vive em Ribeirão Preto e é uma voz emergente da nova poesia brasileira (atesta-o, por exemplo, o 3.º lugar do Prêmio Jabuti para o livro que aqui me traz). Identidade foi a sua primeira obra publicada no Brasil (Urutau, 2016), antes disso escolheu Lisboa, editora Artefacto, para lançar Em cidade estranha / Retrato de mulheres (2010) e Calendário (2015). De si, esboçando um pouco da sua identidade, diz: “Meus poemas falam sobre a minha relação de indivíduo com a cidade, o meu estar no mundo”. Ou: “As relações estão cada vez mais áridas e pobres”, daí a necessidade de escrever todos os dias, outra forma de eleger um mantra (ACidadeOn).

Procurei em Identidade, de que gostei muito, a palavra, linha ou estrofe que melhor resumisse a primeira leitura que fiz. Nas palavras hesitei, sem solução, entre “morte” e “sujidade”; nas linhas escolhi “Um estouro no bocal da lâmpada / lança o quarto nas trevas” (“Casa: Anotações”). Há outras mais patentes, mas esta ressoou com uma precisão assustadora nas memórias que vão esboçando o meu quarto escuro. As “trevas”, esse velho termo que inventamos para retirar todas as estrelas da noite, e o “estouro”, essa destruição fulgurante sem remédio, o genético virado do avesso, obra de um demiurgo alucinado, marcam a ferros quentes o desígnio deste livro. Mas, claro, foi também importante seguir a seta de sentido lançada pelo título: “identidade”. E se Fernando Pessoa não é exposto diretamente (também porque este nome designa, acima de tudo, uma constelação matriosca), ele destaca, com uma “luz fria” (oximoro recorrente), a dispersão, a evanescência, o desaparecimento dos hábitos que desenham Ítacas banais, onde se espera morrer mais do que vencer e ser feliz. Portanto, o título funciona, no mínimo, em câmara escura, ou, no máximo, na amplificação da certeza mais ignorada: somos seres para a morte, são as pulsões mortíferas que esquissam uma identidade condenada a fracassar, como tudo o que desaparece (e se há algum permanecer, ele dá-se como “uma lenta deriva”).

Autorretrato

Diante de mim, na parede
em que aparecem os primeiros sinais
do tempo infiltrado, há uma prateleira
ainda por arrumar.
Virá alguém um dia e dirá
é uma casa com a beleza
das ruínas e então
serei como qualquer pessoa que morreu
quando eu ainda não era nascido.

É por isso que Daniel Francoy escreve “com o avental sujo de sangue”, e as facas chamam-se “morte”, “crueldade”, “violência” (“que nunca se resolve, sôfrega / por deitar fogo em tudo”), “frutas ácidas”, “impuro delírio”, “cansaço”, “espectral”, “luz fria”, “seringa suja”, “solidão” (“Se tenho irmãos, se caminhamos / juntos, ignoro: / tornou-se o poeta de amanhã / mais solitário do que os assassinos.”). O manual de estilo vai para lá destas lâminas, Francoy é um poeta preciso, sóbrio, elegante, clássico (permitindo-me abusar da língua). Se fala da cidade como um buraco negro, da vida como uma espera, cansativa, da morte, é porque a realidade é isso mesmo (desculpem-me os perspectivistas). É verdade que por vezes, como no cinema, se escurece o local para realçar melhor um qualquer aspecto, e é possível apanhar Francoy com a lanterna na mão. Mas a sua economia poética geral não indica nenhuma redenção (a não ser, talvez, aquela que indiretamente recolhe, por sua conta e risco, o leitor estético, como acontece, por exemplo, com Voyage au bout de la nuit, Heart of Darkness ou o Livro do Desassossego). Fora essas micro-iluminações, um manto niilista originário, placenta do mundo, envolve cada estrofe deste livro. Espalhou-se uma metafísica negra sobre a vida, que parece medrar especialmente no falso refúgio da cidade (onde agora vive o Minotauro). Mais, Daniel Francoy, até um certo ponto contra Fernando Pessoa, não é pessimista em relação ao futuro, mas em relação à origem do projecto humano (sem as justificações estafadas de quedas teológicas), ao delírio humanista que esfarrapou o humano, pondo-o a correr atrás de uma cenoura que conduz a lado nenhum.

Mostrará isto um misantropismo insolúvel? Talvez, mas como em Fernando Pessoa, um “Misantrópico amante da humanidade” (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação). Nas linhas de sentido mais ocultas (fui eu que as escondi?), há uma espécie de empatia por omissão. Subsistem forças morais que barram a vulgarização do genocídio, se é, como diz, “ridícula a certeza de ser bom”, continua a socorrer-se o mendigo. Ainda se ama, mesmo que seja só “por hábito, por fome”.

Um quarto em atenas, poética do acontecer (recensão)

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“Grande parte da luz de que dispomos sobre a nossa condição essencial e interior
é ainda a que nos proporciona o poeta.” (George Steiner)

I

(Tatiana Faia)

Tenho por Tatiana Faia uma admiração sem reservas, alimentada pelo esplendor do seu pensamento (raramente vi alguém que faça tão poucas concessões às frases feitas, ao mesmo tempo que não tem qualquer prurido em utilizar a linguagem comum, essa que respira connosco) e pela qualidade e coerência éticas: pensa e é, vai sendo, como um raio de luz que atravessa a escuridão.

Um quarto em atenas (Tinta da China, 2018) surge depois de Lugano (Artefacto, 2011), Teatro de rua (do lado esquerdo, 2013) e São Luís dos Portugueses em Chamas (Enfermaria 6, 2016). Durante este período, que pode não coincidir completamente, fez um doutoramento em Literatura Antiga, trabalhando sobre a Ilíada (muito mais do que um livro e só um pouco menos do que um mundo inteiro). Não sei bem de que modo todos estes exercícios de pensamento e de escrita contribuíram para o seu último livro (as obras de arte são feitas de continuidade e ruptura), mas se me fosse dado a ler um quarto em atenas sem qualquer referência à autoria (uma leitura às “cegas”), não a receberia como uma obra inicial, apostaria antes num poeta com muitos anos de vida, alguém com tempo para desenvolver a difícil disposição de apanhar a realidade com uma rede simultaneamente larga e fina, de geometria variável. Larga, porque Tatiana percebe os sismos que abalam o mundo (e hoje tudo é mais instável, embora as tensões eclodam sob o manto uniforme e quase sagrado do consumismo), deslocando-o da órbita que, contudo, terá sempre uma parcela da sua centralidade na Grécia Clássica. Fina, porque se interessa pelo significado das pequenas coisas que compõem o registo mais prosaico da vida humana, materialidade aparentemente pobre, mas sem a qual tudo se esfumaria. Ela dilata o nosso conhecimento da vida quotidiana anónima, muitas vezes mais importantes do que as acções heróicas de meia-dúzia de predestinados. Apesar disto, não descura um estrato metafísico onde se alojam nervos que intensificam – emocional, moral e politicamente – a vida. Por isso, as visões que tem do “Paraíso Terrestre”, declinadas em cinco pontos, não descartam o sem-sentido, a fealdade, o cansaço, a solidão e o equívoco, isto é, não evitam o mundo terreno, mesmo se percebemos que são lugares, ou gestos, ou sons, ou códigos, ou recantos do seu habitat. Digo isto mas é impossível saber-se o significado preciso do seu vocabulário, da sua sensibilidade, das suas ideias, das suas visões. A distância entre o autor e o leitor, mesmo quando exemplarmente mediada pelo texto (Tatiana Faia vive incondicionalmente nos seus poemas), é desmedida. Fico-me, pois, pelo acolhimento de sentidos que julgo corresponderem a qualquer coisa de parecido ao que a autora quis dizer. Apesar de, como refere George Steiner, o leitor manter com o texto uma relação de “recriação e de rivalidade”. Ou, ainda segundo Steiner, e devido ao declínio insofismável da leitura, devesse frequentar um curso, todos devêssemos fazê-lo, para ao menos me aproximar da complexidade de Um quarto em atenas. Sem isso, o meu pacto de inteligibilidade com a Tatiana será sempre frouxo, impertinente talvez, experimental na melhor das hipóteses. Mas uma coisa é certa: quando a lemos, Tatiana deixa-nos mais livres do que nos encontrou, ela tem esse poder mágico de indicar, com sinais que devemos aprender a decifrar, opções de pensamento e de acção que não imaginávamos viver em nós. Se Bukowski tem uma infindável eloquência obscena, Baudelaire uma exultação selvagem, Eliot o desalento belo do fim do mundo e, para referir apenas alguns, Franco Alexandre sacode todo o ruído semântico para que assome um osso poético logicamente imaculado (embora com cintilações inquietantes), Tatiana mostra-nos que há outras pulsões, não necessariamente extravagantes, que imprimem pequenos, mas importantes, acertos à banalidade, o bastante para, como disse, ampliar a nossa experiência da liberdade (sem que precisemos de ser sacanas ou primariamente especistas para ser humanos). E tudo isto, presença densa, numa espécie de eixo horizontal, se cruza com a cartografia interna da autora. Dizem que para se aceder à condição de poeta é preciso criar uma linguagem própria, a poesia seria uma maneira quase privada, embora encantatória, de falar, do interior e do exterior, do além e do aquém, da vida e da morte, inventariando ainda o desastre identitário que nos lastra (por exemplo, a autora deslocou-se  – emigrou? – num planeta uno, mas ainda marcado pela obsolescência de pátrias geográficas e culturais, para que alguns possam brincar à geopolítica e as massas se embebedem com narcóticos nacionalistas). Tatiana afasta esta exigência de privacidade, outros o fazem também, claro, mas neste caso sem aquela aparente rebeldia postiça de enfant terrible que declara permanentemente a sua especial naturalidade, normalmente inacessível aos mortais mais comuns. Aliás, para ela, num registo de boa modéstia, “a personalidade é a consequência de um excesso / que encontra a sua própria harmonia”. (“Como Reconhecer o seu Escritor Feliz”) Esta harmonia conduzirá (penso eu) a uma calma resignação que nos coloca ao nível dos restantes seres vivos.  

II

(crítica)

Vamos ao óbvio (que devemos continuar a repetir): um crítico não é um maledicente nem um malevolente. Mas conjurado este estigma, não devemos também transformá-lo no seu contrário: um bendizente e um benevolente. Há, como Steiner (é um dos meus gurus actuais, depois de anos a desentender-me com ele), quem exija que o crítico seja um “leitor completo”, capaz de “recriar a obra de arte na sensibilidade crítica”, evitando a trivialidade das impressões arbitrárias. Outros, onde estão bastantes oráculos portugueses, formam autênticos tribunais estético-morais e insistem na ingenuidade ineducável dos criadores. Há ainda quem use uma recensão para expor, sem falhas, toda a sua erudição insípida, desocultando nos originais setas que apontam directamente para eles (espero não me incluir neste bando). Ou, se me permitem convocar Nietzsche (meu eterno companheiro), o crítico ficará sempre assombrado pelo criador, não por um qualquer mecanismo de inveja, mas porque criar é da ordem do milagre (politeísta e sobre-humano).

Mas fiquemos com Steiner (Linguagem e Silêncio. Ensaios sobre a Literatura, a Linguagem e o Inumano, sobretudo pp. 359-386), aquele que melhor serve aqui os meus intentos. O “leitor ideal” procura uma “receptividade completa, uma espécie de vulnerabilidade equilibrada da consciência no seu encontro com o texto.” Parece contraditório falar-se, na mesma frase, em completude e vulnerabilidade, mas sinto que é disso mesmo que se trata: tentar apanhar o texto em toda a sua abrangência (obrigando-se a buscar uma intenção mais vasta do que a presente no estritamente escrito), mas sabendo que ele ultrapassa sempre o leitor, e mesmo o autor. A seriedade hermenêutica é, pois, feita, glosando acidentalmente São Francisco de Assis, de esforço de compreensão e de resignação, um texto e um autor mantêm sempre incógnitas parcelas essenciais de si, sem que isso seja necessariamente premeditado. Bem feita, a “crítica [é] um acto decisivo da inteligência social. O seu trabalho orienta-se, a partir do terreno literário particular, para questões de alcance moral e político mais amplas.” Reforço esta ideia de as sociedades precisarem da “crítica” para o desenvolvimento da sua inteligência (antes disso, claro, deve haver um campo robusto de criação artística e científica).

É por aqui que caminho, às vezes atabalhoadamente. Ler e recriar os autores, respeitando o que quiseram dizer e tentando aumentar um pouco o que fizeram, sabendo, contudo, que a natureza da crítica é ser pessoal, no máximo tem a objectividade que Richard Rorty encontra no “arrepio” que uma obra provoca num dado leitor (com um horizonte de expectativas que não deverá permanecer, os juízos de gosto, ao contrário do que Kant pretendia, são inconstantes, cada geração tem os seus, e mesmo as obras clássicas vão sendo reinventadas). Assim, pretendo, ajudado por um conjunto de conceitos, prolongar até outro campo de inteligibilidade Um quarto em atenas, talvez sintetizá-lo parcialmente, colocando-o nalgumas grelhas categoriais gerais que acompanharam a evolução do pensamento ocidental, apanhar um ou outro desígnio que porventura tenha passado despercebido à autora (a intenção do texto nunca coincide exactamente com a intenção do autor), amplificar um epifenómeno para lhe dar a dignidade estética que talvez mereça... E, bem entendido, quero que mais pessoas leiam Um quarto em atenas.

Apesar deste destaque elogioso à crítica, clamando mesmo pela sua importância vital para o funcionamento inteligente de uma sociedade, recorro novamente a Steiner para expor o outro lado da moeda: “No século XX não é fácil a um homem honesto ser crítico literário. Há tantas outras coisas mais urgentes a fazer.” Além disso, “lerá críticas de poesia ou de teatro alguém que não disponha já de importantes recursos culturais próprios?”. Portanto, fazer crítica literária está entre o irrelevante, ou pelo menos o pouco relevante, e o escusado (uma escala negativa, somente). Mas enfim, a arte e o pensamento vivem muitas vezes do inútil, desse excesso de forças que são desviadas do produtivo para embelezar e sacudir esteticamente o mundo. Vivem fragilmente, não nos esqueçamos que os mesmos alemães que entre a segunda metade do século xix e o início do xx descobriram, e inventaram, a Grécia Clássica se intoxicaram rapidamente com as mais básicas propostas do populismo nacionalista nazi.

III

(Um quarto em atenas)

Por que razão considero Um quarto em atenas uma “poética do acontecer”? Porque Tatiana Faia, sem pretender ser uma neo-vitalista ou neo-neo-realista, usa os fios reais que compõem o quotidiano para desenhar os seus poemas, mesmo quando vai ao baú das Ariadnes antigas buscar instruções ou amostras, perfeitamente actuais, que a ajudam a montá-los. Mas não é uma antropologia poética, nem sequer uma poesia realista, émula do Romance Realista, Tatiana nunca fica refém daquilo que observa, ela escolhe os ecos da vida diária e dá-lhe novas colorações, não enfeita a banalidade para traçar mais um dispositivo pitoresco, quando captura o fulgor do quotidiano quer destacar pequenas economias de sentido que ainda mantêm o Ocidente de pé, mesmo que estejamos, quase literalmente, a nadar em lixo e muito confusos com o nosso declínio. Por outro lado, Tatiana Faia vive bem sem a habitual, e estafada, preocupação metapoética (embora fale bastante sobre o ofício de escrever), ou o acento subjectivista que incha a grandiloquência do eu. Não há também, para terminar esta espécie de fenomenologia da ausência, notas agudas sobre sexualidade ou amor-paixão, esse combustível incontornável de tanta escrita contemporânea.

O que há é poesia, é isso que nos traz a sua voz simultaneamente moldada e moldadora de poesia (cada poeta, ao sê-lo, é demiurgo e criatura do vasto, complexo e profundo campo da poesia). E ao trazer-nos isso, dá-nos algo de precioso e importante, a poesia é uma forma de escrita e de acção que se concretiza na história (e por isso a modifica), e não um efeito cultural menor num modo de vida autocriador, em circuito fechado. Esta generalidade acontece também porque ainda não há gavetas definidas para a Tatiana, e, mas isto é totalmente pessoal e controverso, espero que essa indefinição se mantenha, a ideia de criar e ficar, porventura eternamente, no corredor de um estilo próprio parece-me assustadora.

Já referi o pano de fundo de Um quarto em atenas: uma explanação imbricada das linhas de força do dia-a-dia, um fresco dinâmico acolhendo algumas moléculas perenes. Daí que se repitam os poemas com marcadores geográficos (que são também geopolíticos e geoafectivos): Oxford, Lisboa, Atenas, Lavrion... Daí que haja dois poemas com títulos de cafés, o Kafka e o Drama. Daí que outro se chame “Cinco Visões do Paraíso Terrestre”. Daí que em “Alguns Poemas Portáteis” refira livrarias, museus, pedintes e um sentimento de culpa por não ouvir os gritos que compõem a sinfonia da vida humana, como em O Grito de Munch não se “representava um homem a gritar / mas um homem a tentar conter / como as barreiras fazem com os rios / o grito de tudo o que o rodeia”.

Na minha leitura, este cenário é depois preenchido por três linhas de força: uma sobre o claro-obscuro, outra de crítica sócio-política e uma terceira sobre o ofício de escrever (não uma metapoética, que obriga, de uma ou de outra forma, a fazer teoria da poesia). Comecemos pela última.

1- (ofício de escrever) Tatiana Faia assume em vários momentos a sua condição visceral de herdeira:

“como explicar que como tudo
o que vive e apodrece tenho ocupado
os corpos dos que viveram antes de mim
que o sinal mais fundo das suas vidas
é a única pauta que tenho para fazer
o meu caminho erro atrás de erro
tentando conservar alguma boa vontade”. (“Passagem & Passageiro”)

É claro que se disciplinarmos a ilusão facilmente reconhecemos a sensatez do que acabámos de ler. Mas para alguém que viveu parte da sua vida há mais de vinte séculos atrás (Tatiana esteve – e está – inscrita na vida da Ilíada, além disso “acredit[a] que a mais absoluta nostalgia / tem determinado todos os poemas” – “Primeiro Poema de Madrid Revisitado”), a condição de herdeira tem outras implicações, em “Cinco Visões do Paraíso Terrestre” escreve: “aceita que tudo / pode ser perdido realmente”. Portanto, não se trata de uma herdeira feliz, como tantos iludidos com a equação “sempre a somar”, onde cada neófito sobe para os ombros de antepassados para ver mais longe. Tatiana sabe que se pode perder tudo, num ápice, que o erro percorre a história, que há coisas efémeras, apesar de perfeitas. Tudo é frágil, evanescente, até o passado. Por isso, podemos ler que “é verão e é verdade que o mundo / caminha para o caos devagarinho”. (“Anne Frank Interrompida”) Se isto, refere no mesmo poema, não a impede de “escrever até ficar cega”, é também verdade que, à semelhança de um náufrago, se escapará “em direcção ao fundo”. Creio que tudo isto determina que julgue a sua “arte” como a da “vigilância constante” (“Literatura para Falcões”), considerando: “[…] é agora a hora de procurar uma palavra / que pese completamente”. Julgo o “é agora a hora” mais messiânico do que cronológico.

2- (crítica sócio-política) Há dois poemas onde nos devemos deter para capturar a visão mais imediatamente política (numa perspectiva abrangente) que Tatiana Faia retira do seu mundo (que é o mundo de muitos, mas não O mundo, tal coisa não existe). O primeiro, “O Retorno, 2016”, descreve o português contemporâneo entre as suas adições infantis a moléculas farmacêuticas e ao colo da mamã e a manutenção de uma misoginia mais parva do que julgamos, mostrando-nos como um apêndice pífio do macho latino: inculto, feio e deferente em relação à exclusividade da cozinha para meninas e senhoras. Tatiana, numa referência ao poeta Ruy Belo (“O Portugal Futuro”), não acredita “que o país do puro pássaro seja possível”, novo em folha e frugalmente perfeito.

“como é que eu posso saber
no meio deste inferno periférico
hipotecado a setenta anos
democraticamente manso
e de fraca consciência histórica
que mundo será o vosso meus filhos
nascida de pais portugueses em portugal
os meus filhos nascerão talvez ingleses
talvez cidadãos do mundo
e até nisso serão mais portugueses do que eu”

Apesar desta visão filtrada pelo desalento, Tatiana quer ainda amar alguma coisa, por isso termina dizendo: “ou mesmo olhar para tudo com um olho a menos / para poder continuar a amar em paz o resto”.

Faz parte da nossa tradição cultural mais recente (século xix em diante) ver em Portugal um projecto de bem-estar social constantemente adiado. Talvez porque tenhamos começado a pensar muito tarde, e as primeiras décadas, ou séculos, de uma disposição crítica são quase sempre negativas. Acredito que a próxima onda de pensamento esteja mais atenta ao jubilatório, sem inflações culturalistas ou nacionalistas (aqui está mais um perigo real à espreita), e continue a esbater o nosso provincianismo megalómano. Tatiana, como a maioria dos escritores portugueses, tem um filtro pessimista. Não porque exagere o ângulo infeliz de onde observa a realidade portuguesa, mas porque vê com uma lucidez especial e de forma panóptica, sem infiltrações, o que se desmorona ou o que nunca chegou a construir-se. Preferindo apontar a lupa para as barracas em vez dos palácios, daí fazer parte daquele primeiro movimento de pensamento crítico de que falei há pouco. Porém, e tal é imediatamente compreendido se estivermos 5 minutos com ela, Tatiana Faia tem uma energia positiva que compensa o lado mais sombrio da sua analítica, como refere no final do poema que citámos (“O Retorno, 2016”) e em muitos outros locais da sua obra.

Mas se quisermos apanhar uma tonalidade geral, isto é, que não remeta imediatamente para o lado mais ocidental da Ibéria, que só por acaso se constituiu como um país (é bom lembrá-lo), basta ler, entre outros, alguns versos de “Café Kafka”:

“[…] imagino que todo o desejo do mundo
seja montes de dinheiro
e habitar com um sorriso balofo
o vazio inteiro de uma função”.

E aqui Tatiana segue uma ética (no sentido de habitar o mundo de uma boa forma) que hoje felizmente percorre uma parte significativa das novas gerações, uma ética que recusa o consumismo predador, assente num trabalho remunerado que não questiona o seu valor intrínseco e numa acumulação de bugigangas que perdem quase instantaneamente o brilho inicial (mas cuidado com as utopias vingadoras). Portanto, à recusa de um autocontentamento patriótico junta-se a crítica ao modus vivendi devastador e egoísta que culminou no Antropoceno, a Era de todos os riscos, onde uma incrível quantidade de conhecimentos científicos convive com uma estupidez ética que o subjuga, ou pelo menos o desvaloriza significativamente. Esta dissonância, creio, percorre em filigrana Um quarto em atenas, marcando a posição da Tatiana em relação à actual geopolítica dominante: a do consumismo (esta disposição individual e colectiva atravessa todo o espectro político, da esquerda à direita).

3- (claro-obscuro) No poema “Velhas Contas” escreve:
“fragmentos e fragmentos de conversas
onde às vezes ao fim de muita luta
a breve iluminação daquilo que ia mesmo ser dito
se alonga como uma ponte suspensa sobre o nevoeiro
[…]
de quantas maneiras o teu trabalho

 é novo, precário e difícil
e nunca vai ficar acabado”

“Colecionar errâncias”, diz em “Ambros Aldewarth”, ainda que seja com “precisão” (dar esta pequena ordenação ao caos para recolher, de través, bolsas de sentido, porque o contrário seria a deriva absoluta). Sem ceder a qualquer inflação distópica, Tatiana Faia aconselha a aprendizagem da desorientação:

“tu que aprendeste a falar sobre imagens
anda lá diz-me
que encontro ainda recairá sobre ti
que conversa te restará
depois da zanga e da fome e da aporia
depois de todos os ângulos
e todas as curvas do labirinto
e o contorcionismo do sem saída
quando os caminhos que esperaste
não chegaram como antónio josé forte
diz que nos chegam certas cidades
– no nevoeiro” (“Lenta Aprendizagem da Desorientação”)

Sim, o que pode ficar de fixo depois de todas as encruzilhadas pelas quais passamos? Até os lugares têm de ser desaprendidos (“Tributo & Tribulação”). “arrasemos até à ruína cada uma destas casas” (idem), porque já não habitamos qualquer lugar seguro, mas, num assomo de responsabilidade e de nostalgia, “podes só deixar ficar a árvore / onde na infância riscámos os nossos nomes” (idem). É por isso que em “A Morte de uma Arquivista” se revisita, e reconstrói, a queda de Ícaro, até agora uma história obcecada pelo “pecado e punição”. Afinal, o seu “voo de belo efeito”, com uma “trajectória mirabolante”, “sempre para baixo e a toda a velocidade / rapaz-pássaro”, é a lei que governa o universo. Talvez contrariada quando um pequeno milagre, esses desvios à estatística, contradiz os planos matemáticos do Caosmos:

“e sei ainda havemos de arrastar
os nossos corpos cansados
para fora do círculo da queda
onde um de nós
assobiará de raiva
um tu ainda não me desiludiste” (idem)

Notas de leitura sobre Lyn Hejinian; pequena antologia de fragmentos

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Voltei esses dias aos dois livros autobiográficos da autora norte-americana Lyn Hejinian – My Life (1980) e My Life in the Nineties (2003) – (o primeiro tem uma edição brasileira, com tradução e prefácio de Maurício Salles Vasconcelos.)  

Lendo de forma detida a serie do my life (e não aos poucos e nos deslocamentos do transporte público, mas numa única tarde parada de domingo), acredito que a lição mais assimilável da série é essa: a vida de uma pessoa, sua biografia, ganha a forma que quisermos dar, de acordo com nosso empenho e atenção ao enunciá-la; mas a vida de uma pessoa, sua biografia, está presa a inevitáveis acontecimentos (happenings, raiz comum de happiness, como ensaia Marjorie Perloff) que escapam da nossa autodeterminação, moldando na sorte e acaso quem somos.  

A prosa de Lyn Hejinian, sequência de movimentos narrados que simulam/criam sua biografia, situa-se bem no meio desses dois fatores, trazendo à tona aquilo que deveríamos cotidianamente experienciar: certos paradoxos que borram limites, entre cores, classes e fronteiras – "where there are borders there is barbarism", com a autora.  

A poética de my life, nos dois livros, compõe-se em pequenos capítulos/fragmentos, com títulos que sugerem as experiências a serem narradas, e que se repetem em loops ao longo da obra, em diferentes momentos, dando ritmo à nossa leitura sempre como acúmulo de “vida” no instante presente.  

Do primeiro “capítulo” do My Life (1980), “Uma pausa, uma rosa, / alguma coisa no papel”, lemos talvez as primeiras imagens que a autora tem de sua vida:  

“Um momento amarelo, exatamente como quatro anos depois, quando meu pai regressou da guerra, momento de saudá-lo, tal como estava, lá em baixo nas escadas, mais jovem, mais magro do que quando partiu, púrpura era a cor embora os momentos não sejam mais coloridos assim. Em algum lugar, nos fundos, os cômodos dividem um padrão de rosas pequenas. Bonito é o que faz bonito”; rememoração que se articula no processo de escrita que deve criá-la no momento presente, mas que já estava em criação/desconstrução ao longo dos vários anos da vida – “As melhores coisas foram arrebanhadas em uma caneta”; “Uma 'história oral' no papel”. 

A vida de Hejinian no livro, em certa medida, não escapa de ser apenas mais um registro de sua “vigilância perpétua”, que entra dentro do movimento contínuo de memória e criação. “Dinâmica da contiguidade”, como nota Maurício Salles Vasconcelos: “As recorrências ao passado, o registro do instante e as especulações sobre o futuro, acontecendo no mesmo ato, sem hierarquização” (do prefácio “Minha vida: o jogo do livro”). 

Há em cada “capítulo” da vida da narradora, uma percepção distinta e nova, colhida das lembranças. Porém, num jogo de palavrear (como diria Fernando Pessoa/Bernardo Soares), cada capítulo sempre resgata as “sentenças-chave” que foram escritas anteriormente, ao passo que sempre cria novas “sentenças-chave”, remetendo à escrita porvir. Assim, condensando uma poética proustiana, cíclica, cheia de dispositivos que são verdadeiras surpresas à leitura, a autora dá forma e chama a atenção a aspectos da nossa percepção do tempo que não estabelece uma separação clara do passado no presente e na projeção futura, sugerida pelo calendário cristão, mas um sentir-se que continuamente resgata o passado e incorpora-o no jogo de escrita:   

Sobre o tempo, “A analogia óbvia é com a música”: 

“Digamos que toda possibilidade espera. Na música raga, o tempo é acrescido ao compasso e se expande. Uma sede profunda, sutilmente cheirando corações de alcachofra, semelhante ao adormecimento da infância.” 

“but to an other extremis, the present. She is 5, she is 25, she is 50 – the voluntariness of knowing that the life is mine must remain strong.” 

Leitores de sua obra (como aponta Maurício S. V., citando Marjorie Perloff e Lisa Samuels) veem em my life uma convergência entre arte, que pressupõe uma tecnica de criação, e biografia, associada aos fatos contextuais. Por isso sua escrita não se alinha com as expressões ditas autoficcionais, que jogam com referentes do biográfico numa dinâmica ficcional. Ao lermos sua prosa, nunca nos perguntamos se sua vida está ficcionalizada, ou se sua prosa imita o real; mas vemos que continuamente o processo de representação se desnuda e hesita no ato-escrita. 

“Não é um mundo pequeno, mas há muitos modos de dividí-lo em pequenas partes.” 

“I ask my self, 'What's in a poem.' These are places where the action never stops. The outside of the world – but this itself is that. Looking after, being ready before. Tendrils I said, but my sister heard ten girls: ten girls in the ferns.” 

Da mesma família poética de Ana C., para os ouvidos brasileiros, e de Maria Gabriela Llansol, para os portugueses, articulada de forma fragmentada e móvel, num contexto em que enunciar tornou-se tão predicável e assimilável dentro de um mundo dado, a my life de Hejinian sugere um exercício de pensar a construção da pessoa nos jogos tênues de linguagem entre o social, o que os outros fazem do eu, e os espaços indetermináveis de criação espontânea desse mesmo corpo ativo. “A word to guard continents of fruits and organs.” 

Pra mim, tem sido sempre muito inspirador ler Lyn Hejinian; a cada linha uma surpresa da linguagem, e ainda como se fosse exatamente isso o que você esperava ler, de novo o florir de árvores – “É ainda algo surpreendente quando desponta o verde.” Deixo a seguir algumas outras das mais belas passagens de my life, que mostram como em pequenos e sutis frases, esses livros tratam (quase de modo enciclopédico embora não-informacional ou denotativo) das inesperadas e valorosas reflexões sobre a vida em comum e sobre a arte. 

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Da verdade das coisas e as palavras; pontos de vista: 

“Insetos alaranjados e cinzentos se acasalaram, mas estavam colocados em direções opostas, numa agitação para nada. O que significa simplesmente que a imaginação é mais inquieta do que o corpo. Porém, palavras, já. Pode haver risadas sem que haja comparações. A língua cicia em seu hilário pânico. Se, por exemplo, você diz, 'eu sempre prefiro ficar comigo', e depois, numa tarde, você quer telefonar para um amigo, talvez você sinta estar traindo seus princípios.” 

Da distância e movimento das coisas: 

“The Atlantic expands (America departing from Europe) the same distance each year that out
fingernails grow. Drifting science, the weather sounds. It involves in time meditation and out of time narration.” 

“A turbulent dispersion of ink in water drawn by fountains to the inside of my world.”   

Do pensamento como indeterminação: 

“Sendo impossível completar o pensamento, a ideia de infinito ou de eternidade despertou uma espécie de desejo, o lado sexual do pensamento” 

Mais diretamente sobre política – sempre no meio de onde menos se espera: 

“One must eliminate fear in order to create a space for living an ethical life. Subjectivity at night must survive hours during which it encounters nothing
that is conscious of it and has nothing to judge but itself.” 

Do devir e da interrupção do vazio; síncope "movimento-parada": 

“We know 'tomorrow we will be here', and 'every person has its double' to demand more logics
from life. Reason looks for two and arranges it from there. And it wasn't so much hopelessness as a sense of lessening obligation that made me think I too could die, dead before, dead after, but alive now as I say so.” 


 

Sobre a autora e tradução de alguns poemas na modo de usar. 

Edição brasileira por Maurício S. Vasconcelos: https://www.livrariacultura.com.br/p/livros/literatura-internacional/minha-vida-15059427 

Marjorie Perloff sobre Hejinian: http://marjorieperloff.com/essays/hejinian-happy-world/ 

Mais excertos de My Lifehttp://epc.buffalo.edu/authors/hejinian/mylife/ 

Poemas, Rui Esteves

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I

1- Declaração de intenções: sou amigo (considero-me amigo) de Rui Esteves, tanto mais genuinamente quanto nasceu nas condições pouco propícias de um encontro duplo em mesas de conferências filosóficas. Mas entre Heidegger, Foucault e Nietzsche, emergiu primeiro uma curiosidade pela forma como o outro via e sentia o mundo e depois uma admiração mútua que solda a nossa amizade.

1.1- Nesta circunstância, corre-se o risco do panegírico, do discurso sobre-elogioso que fermentou as virtudes e excisou os defeitos. Sabendo isto, leio o Poemas de Rui Esteves procurando aplicar o que Kant chamava “desinteresse estético”, isto é, cingindo-me ao miolo da obra, às palavras e estilo que a compõem, leio Poemas como se fosse de um poeta anónimo.

2- Sabemos que as obras de arte têm sempre várias entradas, e que os espectadores por vezes possuem poucas chaves hermenêuticas para a complexidade do que avaliam. Outras vezes, apesar do chaveiro ser vasto, apostam numa chave que parece abrir para um caminho fecundo. Espero ter feito assim desta vez, usei um código de leitura que, sobretudo a partir de Martin Heidegger, sabe jogar com uma ontologia poética capaz de resgatar a palavra do ruido e do utilitarismo comunicativos.

II

1- Martin Heidegger dedicou uma parte importante da sua obra ao estudo da linguagem poética, com isso quis justificar a sua tese da “diferença ontológica”. Em resumo, esta diferença separa irredutivelmente ente e ser, contra a metafísica tradicional (que via manifestar-se o ente no ser, e vice-versa), Heidegger defende, pelo contrário, que o ser se esquiva, subtrai, oculta. O ente, as coisas na história (cujo ente “principal” seria o Dasein, o ente humano), pode indiciar uma semi-presença do ser, mas no essencial encobre-o, esquece-o (o célebre “esquecimento do ser” desde o nascimento da metafísica platónica). Apesar disso, é importante lembrar que o ente só existe porque se relaciona com o ser, mesmo se este não está ontologicamente contido naquele. O ser doa existência ao ente estando, todavia, não-presente.

1.1- Ora, como saber então da não-presença do ser? Tanto mais importante quanto conhecer a sua ausência é também conhecer as suas condições de existência. Uma das teses de Heidegger é a de que “a linguagem é a casa do ser”. (Cf. Unterwegs zur Sprache et dans le Brief über den Humanismus). O ser encontra abrigo, uma condição de existência na linguagem, linguagem ontológica, não comunicacional. Por isso, em Holzwege refere que “nada existe onde falta a palavra. Só a palavra confere ser à coisa.”  E a palavra a que Heidegger se refere é a palavra poética, porque só a poesia realiza a diferença ontológica, ficando do lado do ser. A palavra autêntica (substituam este sintagma por “linguagem autêntica”, se quiserem) nasce do próprio silêncio, desse afastamento do ser em relação ao ente, do que está para lá das coisas, sem que, contudo, seja a essência das coisas, como na metafísica clássica. Se há metafísica em Heidegger, ela é negativa, o que transcende os entes lançados na história é o ser esquecido, retraído, ausente. Neste sentido, a poesia não é uma modalidade mais elevada das linguagens do quotidiano, mas um jogo de palavras que emerge do indizível.

III

1- Talvez por isso não haja regras de leitura pré-definidas para a poesia, um poema faz as suas próprias regras de leitura à medida que se lê. Mais, o próprio poeta descobre-se guiado por aquilo que escreve, pelos fragmentos do ser que emerge do seu trabalho, é assim que entendemos o que disse Paul Celan no discurso de agradecimento ao prémio da cidade de Bremen, sublinhando que escrevia poemas para se orientar, saber onde estava e para onde ia, que os poemas lhe davam isso.

1.1- Se há regras (um pouco de dicionário e de gramática), elas também estão sujeitas, são regras que por sua vez são reguladas, numa concatenação rizomática sem fim. Não se trata nunca de um qualquer a priori kantiano. Com Derrida, reconhecemos que o texto poético mais do que polissémico está em permanente disseminação, produz e acolhe sentido, ou melhor, sentidos que se modificam, ausentam, aparecem... O texto poético não representa nem instaura uma qualquer verdade no mundo e nas coisas, dos entes na história. Ele permite o despontar do ser na Terra, que rapidamente se desvanece. Até porque, como escrever René Char, “A poesia é simultaneamente palavra e provocação silenciosa”. (La Parole en archipel).

2- Depois de Platão ter banido a poesia da cidade (tragédias e mitos homéricos, não a poesia como hoje a entendemos), ela parece regressar. No fim da metafísica ocidental (é evidente o seu ocaso), cujo triunfo do logos se sublimou na vontade de potência da técnica, Heidegger mostra, com Hölderlin, a possibilidade da poesia guiar uma filosofia poetizante, abrindo para outra racionalidade. Tanto mais que a filosofia não tem uma língua própria, ela vasculha e parasita vários domínios linguísticos.

2.1- Em alemão distingue-se dichten, escrever poemas, mas também inventar, criar, de Dichtung, poesia. Ora, Heidegger demora-se nesta diferença, recuperando a poiésis grega, que significava, latu sensu, fazer, distinguindo-se de agir. É de dichten que se trata quando se escreve poesia, porque se inventam possibilidades para que o ser possa emergir, sem se demorar, porém. Quando Stendhal dizia que o belo (artístico) era uma promessa de felicidade, tratava-se desta inventividade, oferecer um futuro, viver numa nova instância feliz do mundo. Na poesia, enquanto dichten, as coisas, os entes, encontram a sua verdade porque vislumbram a possibilidade de serem uma abertura para o aparecimento, fugaz, do ser.

IV

1- Ora, o Poemas de Rui Esteves (edição de autor, 2017) é um exercício que prolonga a visão heideggeriana da palavra poética como casa do ser. Quando, como escreve, “O poeta encontrou / uma palavra transparente” foi com certeza buscá-la a um deserto linguístico onde habitam palavras puramente auto-referenciais, palavras que se representam a si mesmas, desenhando assim clareiras onde pode emergir o ser. E quando, talvez por tradição, “as palavras parecem reais” é apenas para “Chegar aos objectos mesmos: / à simplicidade da maçã como maçã / sem sombra.” Isto é, ir às coisas mesmas é uma maneira de fingir praticar a fenomenologia continuando na hermenêutica ontológica, permitindo que o ser se auto-ilumine, já que desde Mallarmé a poesia interrompe o fluxo da história, máxima libertação, como quem pára a língua nela mesma.  

2- Luz e sombra, duas palavras que compõem o livro de Rui Esteves, retomando a floresta e a clareira do pensamento heideggeriano. Um brilho que “logo / torna ao escuro.”, porque o ser não é o não-presente, ele apenas se vislumbra, acontece, não é (sendo, teria um peso esmagador, nenhuma subtileza lhe sobreviveria). Por isso o esquecemos, falta-lhe a espectacularidade do pechisbeque exposto nos escaparates do consumismo, quase tudo oferecido e com uma obsolescência programada refinada. O que mais importa oculta-se para que sentidos autênticos perdurem: “É no lado secreto / da palavra mar / que o mar aparece.” O ser habita esse lado incógnito da palavra mar, não da palavra em si, mas do mar quando é escrito por um poeta. É por isso que “Certas palavras / ajudam a ver.”

2.1- Mas mesmo se há “palavras necessárias”, Rui Esteves diz-nos que é preciso “Fazer do verso / o lugar do silêncio.” Na origem da palavra está, pois, uma ontologia negativa, como pretendia Jacques Derrida. Um ser subterrâneo, emergindo, se estivermos atentos, numa ou noutra fontela, escondidas em pequenas clareiras, que só os caminhantes avisados, e humildes, conhecem.

V

1- O título Poemas revela um gesto tímido de entrada no mundo da poesia. Mas a epígrafe de Novalis (“Estamos sós com tudo o que amamos”) mostra a vibração justa que Rui Esteves produziu ao compor esta obra: uma dialéctica (sei que ele gosta de Hegel) feita de ensimesmamento e abrimento, a solidão é somente a melhor forma de acolher as linhas vitais que percorrem o mundo e nos electrificam. Um vaivém, como os sopros cósmicos ou a respiração anual de um bosque. Uma tensão, quase agónica, entre o silenciar e o revelar, o dizível e o indizível, o visível e o invisível. Tensão que Rui Esteves soube domar, pelos menos o suficiente para originar quase vinte poemas, umas centenas de palavras, e muitos espaços em branco, muitos silêncios, muito não-dito. Tudo equilibrado, da tensão nasceu o equilíbrio, é assim que o leio, sinto que veio ter comigo para me compor estas malfadadas costas de mau jogador de ténis, dizer-me que devo deixar doer o que dói e esquecer, deixar que a noite entre dentro de mim com uma ou outra estrela compassiva.

2- Há tanta poesia dentro de Rui Esteves que outros livros virão, não sabemos onde irá buscar a inspiração, um poeta vê e ouve mais coisas do que um filósofo, vê e ouve sobretudo para lá das coisas, e usa muito menos palavras, pode até tornar-se agrafo a maior parte do ano. Um dia aparece a ideia justa e basta ter papel à mão.

VI

Tudo é silencioso
e a noite
é urgente o silêncio
é urgente ouvir os pássaros
ao longe
escutar as coisas simples
a respiração do mar
os ritmos da manhã
as pequenas rotinas
o trânsito nas cidades
o sol que sobe sobre os campos no verão
é urgente escutar estar atento olhar
assistir com serenidade
aos ciclos à espontaneidade
ordenada da vida.

Antígona encontra Os Maias? As Pessoas do Drama de H. G. Cancela

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Há duas afirmações particularmente pertinentes para pensar sobre As Pessoas do Drama de H. G. Cancela. A primeira envolve dizer que o autor é sem dúvida um dos romancistas mais desafiantes a escrever literatura em português hoje, a segunda é que este romance é, em proporções diferentes, um estudo sobre a arte, o trauma e a ambivalência, e que o resultado destas características conjugadas não é tanto do âmbito da expiação quanto da violência que é exercida sobre as personagens e que passa para o leitor, em parte porque não há exactamente uma perspectiva ética que venha a emergir como produto da leitura e resolva as personagens de um ponto de vista moral (embora algumas sejam mais fáceis de ler do que outras). Nesse sentido, este romance é um pouco como as tragédias gregas a que o título parece aludir: uma exploração dos limites do humano.

Há, a meu ver, dois clássicos com que as As Pessoas do Drama dialoga sem que se apresente como releitura de nenhum. De alguma forma, é difícil ler o romance de H. G. Cancela sem pensar no outro romance sobre incesto da literatura portuguesa, Os Maias de Eça de Queirós. Por outro lado, há uma encenação da Antígona que se repete durante um longo período de tempo numa das partes centrais do romance e o elo com a tragédia de Sófocles é relevante (mas talvez não exactamente vital) para ler o romance. Se falamos de ecos da tradição, há ainda o facto de uma parte da acção se passar em Roma, e isto abre espaço para uma das reflexões mais interessantes que o romance propõe, acerca da natureza da ideia de herança cultural. A noção de herança cultural corre em paralelo com outra, mais oblíqua, a da hereditariedade dos traços e comportamentos que os filhos podem herdar dos pais.

A primeira parte do romance abre com uma longa sequência sobre um homem, o narrador (nunca nomeado), que evita abertamente quase todo o tipo de contacto social e constrói uma vedação em torno da sua propriedade. Pode haver aqui – ou não – um jogo com o mito do beau sauvage. Através das preocupações filosóficas que o estruturam, podíamos dizer que H. G. Cancela é um romancista que pertence à tradição de Vergílio Ferreira. Mas As Pessoas do Drama estilhaça toda e qualquer expectativa de uma re-encenação pacífica de referências culturais que pudessem estruturar as expectativas do leitor. H. G. Cancela, de resto, notava numa entrevista recente ao Público:

A subversão tem de agir no interior da regra. Qualquer subversão tem de se produzir a partir do interior. A subversão da gramática tem de se produzir no interior da gramática da mesma maneira que a subversão da moral se produz no interior da moral. Não há um espaço agramatical; não há um espaço amoral.[1]

Paradoxalmente, pode ver-se uma observação quase clássica de um aspecto da tragédia grega como descrito por Aristóteles: o violento segredo no centro do enredo não acontece em palco, ou seja, não é narrado em parte nenhuma do romance, não é sequer explicitado e cabe ao leitor, chegando à última página e deparando-se com a didascália que encerra o romance e que inclui uma breve descrição de cada personagem (um pouco como uma lista de dramatis personae), tentar reconstruir os eventos que definem o comportamento e o percurso de cada uma das personagens, bem como as relações que se estabelecem entre elas. Em parte, esta omissão acontece porque a escala daquilo que o romancista procura representar não pode exactamente ser articulado através da linguagem. De facto, algumas personagens perdem e recuperam a capacidade de falar ao longo do romance, e uma delas permanece muda durante toda a acção.

Do narrador, que nunca é nomeado, sabemos que esteve preso, embora nunca se explicite ao certo porquê, que não possui qualquer ocupação específica, embora seja descrito na didascália como médico e ele próprio a certo ponto se descreva como historiador.

No entanto, se no centro da Antígona de Sófocles estão em conflicto as leis de um estado e o dever ancestral de sepultar um irmão, para as personagens de As pessoas do drama a preocupação com algo que as ultrapasse parece estar para lá dos seus contextos. As personagens do drama estão no limite mas esse limite não tende para um fim. O desenlace chega por exaustão. O que é a identidade, a moral, os laços de família, o valor da arte, da linguagem, da civilização, são tudo perguntas com que o romance de H. G. Cancela se debate.

No centro da acção, há a obsessão do narrador com uma actriz italiana que ele vê uma vez num filme. Algo o move a ir até Roma para a encontrar. Desenvolve-se então um opressivo triângulo entre o narrador, Laura Spirelli (a actriz) e Filippo Arboreo (encenador da peça que Laura está a representar). Laura está grávida e o pai pode ou não ser Filippo, mas a relação entre ambos parece ter chegado ao fim. Todas as noites Laura sobe ao palco para representar uma Antígona cega e grávida, duas características que não pertencem à heroína da tragédia de Sófocles. Antígona é provavelmente, de todas as tragédias que nos chegaram da antiguidade, a mais popular e encenada de sempre, talvez em parte porque ao contrário de outros dramas clássicos, há uma resposta clara para o drama moral que a peça encerra. Antígona está certa em querer sepultar o irmão porque uma lei ancestral a compele a isso, em face disso, o drama de Creonte é acessório. Uma Antígona grávida e cega, no entanto, é uma metáfora que tanto serve para caracterizar a personagem de Laura, quanto para sublinhar o traço de uma ideia de eventual culpa hereditária por um caso de incesto do qual Laura pode ter sido o fruto. Esta reinterpretação de H. G. Cancela faz o leitor pensar mais em Édipo do que em Antígona. Podíamos então dizer que, indirectamente, por inferência, no centro do enredo de As Pessoas do Drama está este velho tema, se a culpa pode ser hereditária, se passa de pais para filhos. À superfície, esta pergunta parece estruturar o percurso de todas as personagens do enredo, mas sobretudo de Laura. Há na perspectiva da própria Laura e das outras personagens, uma certa misoginia que a objectiviza. Em parte isto explica-se pela profissão de Laura, ela é uma espécie de repositório para as personagens que representa, em parte isto é levado um passo mais à frente, pelo facto das expectativas dos três homens que estão no centro do enredo – expectativa não se confunde aqui com esperança – nunca contemplarem Laura para lá da posse, isto é talvez mais verdade acerca de Filippo do que acerca do narrador, mas o comportamento de Laura é definido a partir desta perspectiva.

Há um lado violentamente irracional que, no desenlace, parece levar a melhor sobre Laura e, como consequência, sobre as restantes personagens, trazendo a acção ao fim, marcando uma viragem. No entanto, a aporia é uma constante neste romance de H. G. Cancela, o lado destrutivo da vida que pode ser convidado apenas pelo facto de vivermos em conjunto com outros (daí o isolamento inicial do narrador), de dependermos deles, de deles esperarmos algo que pode bem não ser mais do que a pista da direcção do passo seguinte. A grande categoria ausente na caracterização de Laura é a vontade. A gravidez de Laura é vista por ela como uma espécie de obrigação que talvez simbolize a inevitabilidade da vida, as forças que estão para lá de qualquer poder de decisão. Não é certo que seja o lado violentamente irracional de Laura que leve a melhor no fim. É mais o caso de que se o seu último acto configura uma rejeição dessa inevitabilidade, pode também ler-se aí, polemicamente que seja, uma tentativa de romper o ciclo dessa inevitabilidade. Personagens desesperadas tomam decisões desesperadas. As últimas páginas parecem perguntar, o que é a sobrevivência? Como continuar? É também neste sentido que As Pessoas do Drama é um dos romances mais inquietantes de 2017.