Livros do ano, 2022 (Tatiana Faia)

Esta lista é uma espécie de balanço, uma enumeração imperfeita de alguns dos livros que mais gostei de ler em 2022. É um pouco hedonista, porque, parafraseando Susan Sontag, ler, tal como escrever, é uma forma de felicidade, e este foi um ano que não foi particularmente dado a hedonismos. Em 2020, durante o primeiro confinamento, comecei um clube de leitura com outra pessoa só. A Clara estava em São Paulo e eu em Oxford, todos os dias nos encontrávamos diante de uma câmara e líamos uma para a outra, ela um romance e eu outro. Este clube de leitura, que existe ainda hoje, cada vez mais me faz pensar no acto de ler como uma janela privilegiada, uma espécie do suave mari magno de Lucrécio, cujas vistas correm tangencialmente ao mundo que continua a girar loucamente. Estou a pensar nisto enquanto me sento para escrever esta lista paralelamente a uma janela que tem vista para um jardim que já não está, mas esteve, coberto de neve. A minha lista é também parcial em duplo sentido, não inclui necessariamente tudo o que amei ler em 2022 e inclui os livros feitos por alguns amigos.

 

On Grief and Reason de Joseph Brodsky (Penguin, 1997) – é uma colectânea de ensaios que inclui algumas das reflexões mais lúcidas que li este ano, sobre o exílio, sobre encontrar poetas e ler poesia, sobre espiões russos em Londres, sobre traições, sobre fazer amor num quarto cheio de espelhos em Roma, sobre regressar à Europa para um funeral (o de Stephen Spender), sobre Kavafis, Horácio e Marco Aurélio. Tenho um amigo inglês que gosta muito de citar uma frase de Brodsky: “Poets are never victims.” Quando se lembra desta frase, o meu amigo acrescenta sempre: “And he knew what he was talking about. He spent time in a Soviet prison.” É exactamente esse modo de falar sobre as coisas que transparece nestes ensaios.

 

Caro Michele e Famiglia e Borghesia de Natalia Ginzburg – Três novelas da década de 70 que falam de laços familiares (sobretudo dos laços entre mães e filhos), da sua inexorável mudança na Itália do pós-guerra. Caro Michele é um romance epistolar originalmente escrito em 1973. Uma mãe vai escrevendo a um filho que primeiramente desaparece da sua vida e depois de Itália, por causa do seu envolvimento com as Brigate Rosse. Assoma nesta novela um pouco a Inglaterra desolada de que Ginzburg havia escrito em As Pequenas Virtudes, e o desolado destino dos exilados, mas antes de tudo isto uma mãe que tem muita dificuldade em entender um filho e que tenta fazê-lo com um sentido de humor duro, que o expõe a ele e a ela num delicado equilíbrio que não é um esforço tanto de o entender quanto de sobreviver através de certas coisas. Famiglia, por outro lado, é uma das novelas mais belas que li este ano, sobre um casal de amigos que estiveram outrora envolvidos e que se encontram numa noite de muito calor para ir ao cinema e nunca mais se separam continuando a entrelaçar as suas vidas de uma forma que envolve as suas novas famílias, outros amigos, outras relações. Talvez não seja tanto uma novela como uma exploração do amor e da amizade, vista a partir do lado absurdo e irrecuperável da vida, e incluindo-o. A versão italiana do audiolivro de Caro Michele é narrada por Nanni Moretti. Talvez poucas vezes um audiolivro tenha tido um narrador tão adequado.

 

Postwar Polish Poetry (ed. Czeslaw Milosz) – uma antologia inglesa de poesia polaca, talvez A antologia de poesia polaca.

 

Mrs Dalloway, Virginia Wolf – reli Mrs Dalloway em Março, pouco depois do início do evento de 2022 que não me apetece nomear. Por um lado, é o romance que me lembra que Bloomsbury, que de resto para mim são mais autenticamente aquelas dezenas de metros que correm entre o British Museum e a livraria da London Review of Books do que outra coisa qualquer, é alguma espécie de centro do mundo e da contemporaneidade, mais do que simplesmente do modernismo, e que muito do que é Bloomsbury, pelo menos para mim, é a força das observações de Virginia Woolf neste romance. Pareceu-me desta vez, não sei porquê, que nenhuma personagem é tão tristemente lúcida como Septimus.

 

A Poesia é uma Mercadoria Inconsumível: Poemas e Recensões de Pier Paolo Pasolini (selecção e tradução de João Coles, Sr. Teste, 2022): é uma antologia editada e traduzida por um amigo e um dos editores deste blog, João Coles, onde em certo sentido se podem ler os poemas e as recensões que nos ajudam a entender Pier Paolo Pasolini como o artista de uma desesperada vitalidade. Um trabalho de edição rigoroso, bem cuidado e bem pensado, num pequeno livro que se transforma assim numa das melhores introduções que conheço à obra de Pasolini em qualquer língua.

 

La tia Julia y el Escribidor de Mario Vargas Llosa – penso que só li dois romances monumentais este ano, mas ambos pertencem a esta lista de livros do ano, o primeiro é La Tia Julia y el Escribidor, um romance divertidíssimo, sobre um adolescente aspirante a escritor, estudante de direito, com um precário emprego na radio e mais precisamente na produção de radionovelas, e do seu primeiro amor, também ele digno de radionovela, a tia Julia, divorciada e quatorze anos mais velha e também sobre o lendário Pedro Camacho, lendário autor boliviano de radionovelas. É fascinante ver a inteligência narrativa de Vargas Llosa, como este romance é e não é uma colecção de novelas dispersas entre si e ao mesmo tempo o retrato do que em teoria devia ser uma subcultura, a do melodrama nem exactamente pop das radionovelas no Perú, mas que é um fresco de todo um tempo, pontuado pela duração de uma paixão adolescente.

 

A Tale of Love and Darkness de Amos Oz – este romance caiu no meu mês de Agosto entre um par de releituras porque tenho um amigo com quem falo, infelizmente, de longe em longe que me disse com grande fervor (aquele fervor que normalmente me faz não querer pegar num livro) que era um dos melhores romances que tinha lido na vida. A primeira parte destas conversas costuma ser sempre a mesma, “olha lá, Tadeu, o que é que andas a ler?” O assunto de A Tale of Love and Darkness é exactamente aquilo que o título inglês parece prometer. No fresco de personagens inesquecíveis que Oz recria a figura maior talvez não seja tanto o pai quanto a mãe de Amos Oz, a sua inteligência misteriosa, a escuridão que o seu suicídio traz, a forma como a muitos anos de distância Oz tenta reconstruir o mundo em que isso aconteceu, não só o de uma criança a crescer no jovem estado de Israel mas o de relações familiares e entre pequenas comunidades que uma criança sensível talvez não pudesse entender completamente, mas sentir sim, e tão profundamente que isso se torna um bilhete de regresso a um mundo entretanto mais ou menos desaparecido.

 

Uma antologia de poesia italiana: 13 autoras: de novo uma antologia feita pelo João Coles e publicada pelo Sr. Teste. Pode ler-se ao lado de outra breve antologia de poesia italiana de que gosto muito, The Faber Book of 20th Century Italian Poems (Faber, 2004, editada por Jamie McKendrick), e em certo sentido elas completam-se. O João selecciona aqui, cuidadosamente, uma espécie de cânone alternativoda poesia italiana contemporânea. Não há um poema mau. Prolonga um pouco o trabalho que tinha sido iniciado em Um Pouco do Meu Sangue, outra antologia de poesia italiana feita pelo João, em 2020, para a Contracapa.

 

Feux de Marguerite Yourcenar: é um livro que tem qualquer coisa de ovidiano (de o Ovídio de Heróides), são uma série de histórias de amores dilacerados, angustiantes e angustiados. Sobre o amor enquanto vital à sobrevivência e enquanto evento a que é necessário sobreviver.

 

Sonhador definitivo e perpétua insónia: uma antologia de poemas surrealistas escritos em língua francesa, Regina Guimarães (selecção e tradução), Saguenail (prefácio). Há uma concretude no surrealismo que de vez em quando me faz falta. Esta belíssima antologia lembrou-me porquê.

 

Either/or de Elif Batuman – algumas das horas mais divertidas que passei a ler um livro este ano foram passadas com este bildungsroman de Elif Batuman. O subtítulo podia ser Como Kierkegaard pode assombrar a sua vida. Mas para lá do lado picaresco que é sustentado pelo sentido de humor de Selin enquanto ela avança de uma paixão mal correspondida, e consequente obsessão de que ela não se consegue libertar, para outras relações igualmente tóxicas, que culminam no entendimento do acto de perder a virgindade e da exploração da sexualidade, algures entre Nova Iorque e a Turquia, como algo que é transacional de formas complicadas, desenha-se um entendimento mais profundo do que significa estar vivo, o que talvez seja, não em menor parte, uma mistura de coragem, sensibilidade e sentido de auto-preservação.

 

Time of the Magicians de Wolfgang Ellenberger e Places of mind: a biography of Edward Said de Timothy Brennan. O segundo destes livros talvez não seja tanto uma biografia como uma hagiografia, e talvez não seja tanto uma hagiografia por causa da relação próxima que Timothy Brennan tinha com Edward Said, quanto por causa da vitalidade e da inquietude de Said enquanto intelectual público, enquanto exilado profundamente privilegiado cujo trabalho (e figura) espelha e se divide entre várias culturas na intersecção entre o Oriente e o Ocidente. Sobre o primeiro livro escreveu o Victor Gonçalves aqui. Time of the Magicians coloca em paralelo as vidas e o pensamento de Wittgenstein, Benjamin, Cassirer e Heidegger, para descrever como uma década do século XX mudou a história da filosofia. Algures entre a leitura de um livro e outro dá para mapear a inquietude e o fascínio que as palavras e o que algumas pessoas pensaram sobre elas exercem sobre o tempo em que estamos a viver. 

 

After Sappho de Selby Schwartz, Una Donna de Sibilla Aleramo e La femme gelée de Annie Ernaux –O primeiro destes livros podia ler-se como uma introdução aos outros dois até porque Sibilla Aleramo é uma das personagens de After Sappho, uma série de prosas breves sobre mulheres, intelectuais, escritoras e artistas, e o modo como as suas vidas e a sua produção artística se cruzam com a da primeira poetisa do ocidente, Safo, e com as vidas umas das outras, numa longa corrente de correspondências que começa com Lina Poletti, uma das primeiras mulheres em Itália a declarar-se abertamente lésbica, e que termina com Virginia Woolf e Vita Sackville-West. Essas correspondências vão-se tecendo contra o fundo de uma série de outras vinhetas, sobre leis e decretos que foram sancionando e institucionalizando a misoginia e a desigualdade de género na Europa. Sibilla Aleramo, que foi amante de Lina Poletti, publicou Una Donna em 1906, mas o romance foi escrito entre 1901 e 1904 e, claro, rejeitado para publicação em várias casas editoriais. Em certo sentido, há uma correspondência com La femme gelée de Annie Ernaux. Ambos são textos iminentemente autobiográficos, ambos olham para a instituição do casamento como parte de um sistema de opressão em sociedades patriarcais (ainda que em épocas e em sociedades relativamente diferentes). É um romance escrito em chiaroscuro o de Sibilla Aleramo, cruel, barroco, marcado pelos lugares-comuns de uma certa escrita da decadência, de uma época que não consegue ainda conceber a possibilidade de uma felicidade sem culpa fora das normas de uma sociedade opressiva, e nesse sentido sem dúvida com qualquer coisa do olhar de um Gabriele D’Annunzio sobre estruturas familiares, mas é ao mesmo tempo um texto corajoso, com uma energia resiliente, que resiste até aos clichés do tempo histórico fora do qual ele não chega a conseguir conceber-se. Mas La Femme Gelée de Annie Ernaux consegue, em parte porque é um livro de outra época (a data de publicação original é 1981). É um livro que consegue olhar para o trajecto de uma rapariga desde a juventude até um casamento e uma experiência de maternidade que parecem pôr fim a quaisquer aspirações individuais – intelectuais, profissionais, amorosas – e expor e, pelo menos em certa medida, evadir o tipo de desfecho que se encontra em Sibilla Aleramo. Três textos no feminino inquietos, a que talvez se pudesse acrescentar The Cost of Living de Deborah Levy.

 

Yannis Ritsos, Os Diários do Exílio (traduzido por José Luís Costa e Rui Miguel Ribeiro, posfácio de Claudio Russello, Edições do Saguão, 2022). Yiannis Ritsos escreveu estes diários poéticos em sucessivos “exílios” internos, em campos de concentração infames (Limnos, Makronissos) que existiram na Grécia durante a guerra civil que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, entre 1948 e 1950. A edição cuidada, com uma capa que emita os maços de cigarros que se fumavam nesses campos, o hors-texte que acompanha e edição e que Aragon escreveu em defesa de Ritsos, o excelente posfácio do Claudio, mas sobretudo a belíssima tradução seriam coisas que podiam explicar a gratidão que sinto por este texto finalmente existir em português. Mas tentar dizer isso é uma falsa aproximação. Os poemas que Ritsos escreveu nestas circunstâncias são o que Jorge de Sena descreveu num poema sobre não ter dinheiro para comprar livros (“Ode aos livros que não posso comprar”) como uma forma de ir reunindo e mantendo uma humanidade que vai escasseando. Os companheiros, lugares, objectos, trânsitos que Ritsos descreve têm um lado utilitário que envolve uma paráfrase de William Carlos Williams: as pessoas morrem miseravelmente, todos os dias, por falta de coisas que se podem ler em poemas. Não conheço nenhum livro de poemas que seja uma melhor demonstração disso do que este livro de Ritsos.

 

 

Três livros de poemas de pessoas que me são demasiado próximas que marcaram o meu ano foram Os Deuses da Resina (húmus, 2022) do Pedro Braga Falcão, que reúne três livros que ele me disse em tempo que eram sobre os seus pais e sobre os pinheiros em redor da casa onde ele cresceu. Duvido um pouco disso. Os poemas do Pedro são monólogos sobre a força da poesia enquanto música, enquanto pulsação para viver, sobre a paixão de que os poemas são um repositório, mas que é uma forma de habitar o mundo, de o ver criticamente, com tanta inteireza quanto possível. Paixão, na verdade o desejo, é explicitamente o tema de Desidério (não edições, 2022) de Ricardo Marques. Desidério é também uma espécie de balanço do percurso de poeta do Ricardo. Prata (elementário, 2022) de José Pedro Moreira é um livro sobre a prata, ou sobre Píndaro e a ideia expressa nas suas odes de que não há um prémio para o segundo lugar. Na mesma colecção gostei bastante de Titânio de Regina Guimarães (2022), e Sr. Estrôncio de Ricardo Tiago Moura (2020).

 

Um primeiro livro de um poeta novo, sobre o qual não escrevi, o que me pesa na consciência, e que não vi particularmente incensado por crítica nenhuma: Prelúdio e Fuga em Português Suave (Fresca, 2022) de Hugo Miguel Santos. É um primeiro livro marcadamente italianófilo. Talvez seja difícil de escapar ao facto de que os poetas tendem a decidir as suas genealogias literárias nos primeiros livros. A do Hugo é Pasolini e uma certa geografia literária da Itália do Sul, embora ele tenha estudado na Itália do Norte, mas talvez mais o Pasolini em estado de graça de A Longa Estrada de Areia, do que o de Escritos Corsários, e esta genealogia estende-se, é também a do desaparecimento de um amigo, e a que retrocede a um pai e a um avô. É um belo primeiro livro. Fica a nota.

 

Faltava aqui escolher um livro que li com Clara, no meu tal clube de leitura transatlântico para duas. Uma pequena história sobre a escolha desse livro. A 1 de Dezembro de 2022 dei por mim no aeroporto de Heathrow a ler-lhe, meio às escondidas, enquanto fazia tempo para apanhar um voo para Atenas, as três últimas páginas de O Desprezo de Alberto Moravia, um livro cuja leitura arrastámos interminavelmente durante meses. Nada nesse romance misógino é tão misógino como o seu final. Moravia é particularmente bom a escrever sobre a relação entre estruturas de opressão e corrupção moral – pense-se numa novela como O conformista. Antídoto para a amargura que essa leitura nos trouxe foi o livro que lemos em paralelo com esse, A Ilha de Arturo de Elsa Morante, durante muitos anos de resto mulher de Moravia (e é possível que qualquer coisa em O Desprezo revisite a ligação amorosa que Morante manteve com Visconti), que é um romance sobre a ternura e o melodrama da infância e da adolescência, que trazem Arturo até ao princípio da idade adulta, com a ilha de Procida como pano de fundo. É difícil não amar Arturo, o quanto ele quer morrer e o quanto ele quer viver. E é difícil não amar a sua madrasta, também ela uma adolescente, Nunziata.

Votos 2023

Jean-François Millet, As Respigadoras, 1857

Aproxima-se a época de lançamentos de lemas e anseios (a parvoíce é o combustível mais barato e mais usado), 2023 está aí ao virar da esquina e devemos entrar nele com temeridade e amnésia. É humano e é irritante. Sobretudo porque o humano não é um animal recomendável e porque este gesto nasce de uma confiança ingénua e acaba na indiferença (bem pior do que o fracasso, que se for assumido é um bom impulso para a ação).

Eu, que ando sempre ao rebusco de palavras (lembro-me desse hábito inscrito na pobreza transmontana, rebuscavam-se batatas, castanhas, nozes… depois das primeiras e maiores colheitas dos donos das terras, os pobres dos pobres apanhavam os restos em jeito de esmola digna), de centelhas de sentido esquecidas pelas máquinas incansáveis e predadoras de storylines, algum que me possa saciar pontualmente (apagamos as grandes composições metafísicas que conduziam, feliz e contente, o indivíduo ao altar, lugar dos sacrifícios sagrados).

Com a sorte do costume, encontrei dois montinhos de palavras que não irei lançar para 2023 mas porei no bolso do casaco orgânico puído para de vez em quando ler e experimentar uma órbita que não me afaste da minha Estrela do Norte.   

A primeira, sei exatamente onde a rebusquei, Simone de Beauvoir, Pour une morale de l’ambiguïté (Para uma moral da ambiguidade; tradução portuguesa a sair no próximo ano nas Edições 70), um livro de 1947 perfeitamente atual: «Não se devem confundir as noções de ambiguidade e absurdo. Declarar absurda a existência é negar que ela possa dar um sentido a si mesma; dizer que é ambígua é postular que o sentido nunca é fixo, que deve ser constantemente conquistado. O absurdo rejeita toda a moralidade; mas também a racionalização completa do real não deixaria espaço para a moralidade; é porque a condição do homem é ambígua que através do fracasso e do escândalo ele procura salvar a sua existência

Da segunda, sei apenas o nome do proprietário, não da terra na qual a apanhei: «A vida não é autoconservação, mas autoafirmação.» (Byung-Chul Han) Uma afirmação de si feita por um pessimista que ainda não desistiu de fazer o bem.

Visita à Biblioteca de Adriano

 “é terrivelmente difícil amar estátuas em ruínas”

Tatiana Faia 

à Tatiana

 

É difícil compreender o número de catástrofes
Que acumulamos ao longo da vida,
A persistente ruína de carne em que nos tornamos,
Após incontáveis apocalipses pessoais,
Terminam amores tão sólidos como as colunas
De um templo, que um agricultor usou
Para proteger a vinha do ar salgado,
A fé salta de ilusão em ilusão,
Dependendo da crença em moda ou medo,
Com sorte, o nome de uma rua permanece,
Imutável como um nome próprio,
Irreconhecível para quem a baptizou,
Levamos ainda o colapso de todas as civilizações
E isso sente-se na saudade pelo que nunca
Vivemos na carne e sentimos apenas no sangue
O silêncio que o tempo impôs às pedras,
Dura mais um momento que a vontade de eternidade,
A visita numa tarde quente à biblioteca em ruínas,
Que distante revisitarás, no livro da mesma poeta. 

04.12.2022

 

Turku

Discurso da Nobel da Literatura

Discurso proferido na receção do prémio Nobel por Annie Ernaux, 10 de dezembro de 2022.

Tradução de Victor Gonçalves a partir do texto publicado no jornal Le Monde a 7 de dezembro de 2022, aqui.

«Por onde começar? Coloquei esta pergunta dezenas de vezes à página em branco. Como se tivesse de encontrar a frase, a única, que me permitirá entrar na escrita do livro e resolver, de uma só vez, todas as dúvidas. Uma espécie de chave. Hoje, para enfrentar uma situação que, passada a estupefação do acontecimento — “Isto está mesmo a acontecer-me?” —, a minha imaginação me apresenta com um pavor crescente, é a mesma necessidade que me invade. Encontrar a frase que me dará a liberdade e a firmeza para falar sem tremer, neste lugar para o qual me convidam esta noite.

Esta frase, não preciso de procurá-la muito longe. Ela surge. Em toda a sua nitidez, a sua violência. Lapidar. Irrefutável. Foi escrita há sessenta anos no meu diário. “Escreverei para vingar a minha raça”. Ela faz eco do grito de Rimbaud: “Sou de raça inferior desde toda a eternidade”. Tinha 22 anos. Era aluna de literatura numa faculdade de província, entre raparigas e rapazes, muitos deles da burguesia local. Pensava, com orgulho e ingenuidade, que escrever livros, tornar-me escritora, no fim de uma linhagem de camponeses sem-terra, operários e pequenos comerciantes, pessoas desprezadas pelos seus modos, o seu sotaque, a sua falta de cultura, bastaria para consertar a injustiça social de nascimento. Que uma vitória individual apagaria séculos de dominação e pobreza, numa ilusão que a Escola já havia fomentado em mim com o meu sucesso académico. Como poderia a minha realização pessoal redimir o que quer que fosse das humilhações e ofensas sofridas? Eu não me colocava essa pergunta. Tinha algumas desculpas.

Desde que aprendi a ler, os livros foram os meus companheiros, a leitura a minha ocupação natural fora da escola. Esse gosto era mantido por uma mãe, ela mesma grande leitora de romances, entre duas clientes da sua loja, preferindo que eu lesse em vez de costurar e tricotar. O preço elevado dos livros, a desconfiança a que eram submetidos na minha escola religiosa tornavam-nos ainda mais desejáveis ​​para mim. Dom Quixote, As Viagens de Gulliver, Jane Eyre, contos de Grimm e Andersen, David Copperfield, E Tudo o Vento Levou, mais tarde Os Miseráveis, As Vinhas da Ira, A Náusea, O Estrangeiro: era o acaso, mais do que prescrições escolares, que determinava as minhas leituras.

Afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita

A escolha de estudar letras foi a de permanecer na literatura, que se tornou um valor superior a todos os outros, até um modo de vida, que projetava num romance de Flaubert ou de Virginia Woolf e vivê-los literalmente. Uma espécie de continente que inconscientemente opunha ao meu meio social. E só concebia a escrita como possibilidade de transfigurar a realidade.

Não foi a recusa de um primeiro romance por duas ou três editoras — romance cujo único mérito era a procura de uma nova forma — que diminuiu o meu desejo e o meu orgulho. Foram situações da vida, na qual ser mulher pesava muito na diferença de ser homem numa sociedade cujos papéis eram definidos segundo o sexo, a contraceção proibida e a interrupção da gravidez um crime. Casada, com dois filhos, uma profissão de docente e o fardo da gestão familiar, afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita e da promessa de vingar a minha raça. Não podia ler “a parábola da lei” no Processo de Kafka, sem ver nela a figuração do meu destino: morrer sem ter passado pela porta que foi feita só para mim, o livro que só eu podia escrever.

Mas isso não tinha em conta o acaso privado e histórico. A morte de um pai que perece três dias depois de eu chegar a casa de férias, um trabalho como professora em turmas cujos alunos vinham de origens populares semelhantes à minha, movimentos de protesto mundiais: tantos elementos que me trouxeram de volta por caminhos imprevistos e sensíveis ao mundo das minhas origens, à minha “raça”, e que dava ao meu desejo de escrever um carácter de urgência secreta e absoluta. Desta vez, não se tratava de me entregar a este ilusório “escrever sobre nada” dos meus 20 anos, mas de mergulhar no indizível de uma memória reprimida e trazer à tona o modo de existir dos meus. Escrever para compreender os motivos, dentro e fora de mim, que me afastaram das minhas origens.

Precisava de romper com o “escrever bem”

Nenhuma opção de escrita é evidente. Mas aqueles que, imigrantes, já não falam a língua dos pais, e aqueles que, trânsfugas de classe social, já não têm realmente a mesma língua, pensam-se e exprimem-se noutras palavras, todos se deparam com obstáculos suplementares. Um dilema. Sentem, de facto, a dificuldade, até a impossibilidade de escrever na língua adquirida, predominante, que aprenderam a dominar e que admiram nas obras literárias. Tudo o que se relaciona com o seu mundo de origem é um primeiro mundo feito de sensações, de palavras que descrevem o quotidiano, o trabalho, o lugar social. Por um lado, há a língua com que aprenderam a nomear as coisas, com a sua brutalidade, com os seus silêncios, aquela, por exemplo, do encontro face a face entre uma mãe e um filho, no belíssimo texto de Albert Camus Entre o sim e o não [capítulo da primeira novela do autor, L’Envers et l’Endroit, 1937]. Do outro, os modelos de obras admiradas, interiorizadas, aquelas que abriram primeiro o universo e às quais sentem dever a sua elevação, que muitas vezes consideram mesmo a sua verdadeira pátria. Nos meus estavam Flaubert, Proust, Virginia Woolf: [mas] quando chegou a hora de retomar a escrita, não me ajudaram. Tive de romper com o “bem escrito”, a bela frase, aquela mesma que ensinava aos meus alunos, para erradicar, expor e compreender a angústia que me atravessava. Veio-me espontaneamente o alarido de uma língua carregada de raiva e irrisão, até grosseria, uma língua de excesso, insurgente, muitas vezes usada pelos humilhados e ofendidos, como a única forma de responder à lembrança dos desprezos, da vergonha e da vergonha da vergonha.

Muito rapidamente, pareceu-me evidente — a ponto de não conseguir vislumbrar outro ponto de partida — ancorar a história da minha angústia social na situação que tive enquanto estudante, aquela, revoltante, à qual o Estado francês sempre condenou as mulheres, o recurso ao aborto clandestino nas mãos de uma fazedora de anjos. E queria descrever tudo o que tinha acontecido ao meu corpo de menina, a descoberta do prazer, a menstruação. Assim, nesse primeiro livro, publicado em 1974, sem que eu o soubesse então, foi definido o campo em que colocaria o meu trabalho de escrita, um campo simultaneamente social e feminista. Vingar a minha raça e vingar o meu sexo seria doravante uma só coisa.

Como não se questionar sobre a vida sem questionar também a escrita? Sem perguntar se ela reforça ou perturba as representações aceites e interiorizadas sobre os seres e as coisas? Será que a escrita insurgente, pela sua violência e irrisão, não refletia uma atitude de dominada? Quando o leitor era um privilegiado cultural, mantinha a posição de superioridade e condescendência relativamente à personagem do livro e da vida real. Foi, portanto, originalmente, para contrariar esse olhar que, lançado sobre o meu pai cuja vida queria contar, teria sido insuportável e, sentia-o, uma traição, que adotei, no meu quarto livro, uma escrita neutra, objetiva, “plana”, no sentido de que não continha metáforas ou sinais de emoção. A violência já não era exibida, vinha dos próprios factos e não da escrita. Encontrar as palavras que contivessem tanto a realidade quanto a sensação que a realidade proporciona tornou-se, até hoje, a minha preocupação constante na escrita, seja qual for o assunto.

O desejo de me servir do “eu”

Para mim, era necessário continuar a dizer “eu”. A primeira pessoa — aquela pela qual, na maioria das línguas, existimos, desde o momento em que sabemos falar até à morte — é muitas vezes considerada, na sua utilização literária, como narcisista quando se refere ao autor, que não se trata de um “eu” apresentado como fictício. É bom lembrar que o “eu”, até então privilégio dos nobres que contavam grandes feitos de armas nas suas Memórias, foi em França uma conquista democrática do século xviii, a afirmação da igualdade dos indivíduos e do direito de ser sujeito da sua história, como o reivindica Jean-Jacques Rousseau neste primeiro preâmbulo das Confissões: “E que ninguém objete que, sendo apenas um homem do povo, não tenho nada a dizer que mereça a atenção dos leitores. (…) Nalguma obscuridade que possa ter vivido, se pensei mais e melhor do que os reis, a história da minha alma é mais interessante do que a deles.”

Não foi esse orgulho plebeu que me motivou (embora…), mas a vontade de usar o “eu” — forma simultaneamente masculina e feminina — como uma ferramenta exploratória que capta as sensações, aquelas que a memória recalcou, aquelas que o mundo à nossa volta não cessa de nos dar, em tudo e sempre. Este pré-requisito da sensação tornou-se para mim ao mesmo tempo o guia e a garantia de autenticidade da minha pesquisa. Mas com que propósito? Para mim, não se trata de contar a história da minha vida nem de me libertar dos seus segredos, mas de decifrar uma situação vivida, um acontecimento, uma relação amorosa, e assim revelar algo a que só a escrita pode dar existência e transmitir, talvez, a outras consciências, outras memórias. Quem consegue dizer que amor, dor e luto, vergonha não são universais? Victor Hugo escreveu: “Nenhum de nós tem a honra de ter uma vida que lhe pertença.” Mas todas as coisas sendo vividas inexoravelmente de modo individual — “acontece comigo” —, só podem ser lidas da mesma forma se o “eu” do livro se tornar, de alguma forma, transparente e o do leitor ou leitora vierem ocupá-lo. Que esse “eu” seja, em suma, transpessoal, que o singular alcance o universal.

Assim concebi o meu compromisso com a escrita, que não consiste em escrever “para” uma categoria de leitores, mas “a partir” da minha experiência de mulher e imigrante do interior, da minha memória, doravante cada vez mais longa, dos anos atravessados, desde o presente, incessantemente provisores de imagens e palavras de outros. Este compromisso como penhor de mim mesma na escrita é sustentado pela crença, que se tornou certeza, de que um livro pode contribuir para mudar a vida pessoal, para quebrar a solidão das coisas sofridas e recalcadas, para se pensar diferentemente. Quando o indizível vem à tona, é político.

A forma mais violenta e mais arcaica

Vemos isso hoje com a revolta dessas mulheres que encontraram as palavras para inquietar o poder masculino e se ergueram, como no Irão, contra a sua forma mais violenta e arcaica. Escrevendo num país democrático, continuo, porém, a questionar-me sobre o lugar ocupado pelas mulheres, inclusive no campo literário. A sua legitimidade para produzir obras ainda não está adquirida. Existem em França e em todo o mundo intelectuais masculinos para quem simplesmente não há livros escritos por mulheres, nunca os citam. O reconhecimento do meu trabalho pela Academia Sueca é um sinal de justiça e esperança para todas as escritoras.

Ao trazer à tona o indizível social, essa interiorização das relações de dominação de classe e/ou racial, também de sexo, que é sentida apenas por quem é seu objeto, há a possibilidade de uma emancipação individual, mas também coletiva. Decifrar o mundo real despojando-o das visões e dos valores que a língua, qualquer língua, carrega, é perturbar a ordem estabelecida, perturbar as hierarquizações.

Mas não confundo essa ação política da escrita literária, condicionada na sua receção pelo leitor ou leitora, com as posições que me sinto compelida a assumir em relação aos acontecimentos, conflitos e ideias. Cresci na geração do pós-guerra, onde era natural que escritores e intelectuais se posicionassem relativamente à política francesa e se envolvessem nas lutas sociais. Ninguém pode dizer hoje que as coisas teriam sido diferentes sem as suas palavras e os seus compromissos. No mundo atual, no qual a multiplicidade das fontes de informação, a rapidez da substituição das imagens por outras acostumam a uma forma de indiferença, concentrar-se na sua arte é uma tentação. Mas, ao mesmo tempo, assiste-se na Europa — ainda mascarada pela violência de uma guerra imperialista travada pelo ditador que governa a Rússia — a ascensão de uma ideologia de ensimesmamento e fechamento, que se alastra e ganha cada vez mais espaço nos países até agora democráticos. Fundada na exclusão dos estrangeiros e imigrantes, no abandono dos economicamente débeis, na vigilância dos corpos das mulheres, impõe-me, a mim, como a todos aqueles para quem o valor do ser humano é o mesmo, sempre e em todo o lado, um dever de vigilância. Quanto ao peso do resgate do planeta, em grande parte destruído pelo apetite do poder económico, não pode pesar, como é de se temer, sobre os que já estão na miséria. O silêncio, em certos momentos da história, não é apropriado.

Uma vitória coletiva

Ao conceder-me a mais alta distinção literária que existe, é um trabalho de escrita e uma pesquisa pessoal realizada na solidão e na dúvida que aparecem na grande luz. Ela não me deslumbra. Não considero que a atribuição do prémio Nobel a mim seja uma vitória individual. Não é orgulho nem modéstia pensar que se trata, de alguma forma, de uma vitória coletiva. Partilho o meu orgulho com aqueles e aquelas que, de uma ou de outra forma, querem mais liberdade, igualdade e dignidade para todos os seres humanos, independentemente do seu sexo e género, da sua pele e da sua cultura. Os que pensam nas futuras gerações, em salvaguardar uma Terra que a ânsia de lucro de um pequeno número continua a tornar cada vez menos habitável para o conjunto das populações.

Se olhar para trás, para a promessa feita com 20 anos de vingar a minha raça, não saberei dizer se a cumpri. Foi dela, dos meus antepassados, homens e mulheres duros, com tarefas que os fizeram morrer cedo, que recebi a força e a raiva suficientes para ter o desejo e a ambição de lhe abrir espaço na literatura, neste conjunto de múltiplas vozes que, desde muito cedo, me acompanhou, dando-me acesso a outros mundos e outros pensamentos, inclusive ao de me rebelar contra ela e querer modificá-la. Registar a minha voz de mulher e de trânsfuga social naquilo que se apresenta sempre como um lugar de emancipação, a literatura.»