Parque Eduardo VII

Sentado num banco, a dominar a cidade,
deveria acalentar meus sonhos de grandeza,
ver-me rei do que avisto, até à Arrábida; em vez disso,
sinto cobrir-me um manto, um peso estranho
que traz algum alívio à raiva e à teima dos últimos dias,
nos quais abri e folheei obras curiosas
sobre como fabricar uma bomba nuclear
(coisa cara e que, confesso, não será o que me falta
para a vida, agora, pendente das estatísticas;
com a curva de estupidez a subir, vertiginosa).
Estes enormes obeliscos encimados por louros,
hão-de estar alinhados com o cais das colunas,
numa grandiosa perspectiva à la française,
(Isto suponho, não estudei o assunto),
o que sei é que andam escavadoras lá em baixo
a revolver o Tejo e a transformar o cais, talvez,
numa marina, num polo de atracção acrescida
para as hordas de turistas que (pois é, desapareceram)
hão-de voltar cheias de apetite. Deus não permita.
Entre os enormes falos coroados, havia, no Natal,
um presépio gigante, não sei se ainda há,
o que há, aqui na minha frente, é uma asserção em pedra
do pénis em ruína do João Cutileiro, bem escorado,
e que terá causado escândalo e polémica,
sem que eu me tenha comovido um pêlo.
Porque nem todos os pénis chegam a falo,
e o pobre amontoado, junto aos quatro obeliscos
altíssimos, perde à partida a luta pelo símbolo
e nem chega a ser insulto, para não falar em arte.
Que me perdoem os que amam a obra, eu amo
Lisboa e, pelos vistos, finjo honrá-la, falando.
Já vejo que a tarde não me cura totalmente
a raiva que crescia. Não me vale o peso do manto inverso,
faltam-me uns olhos melhores, dois faróis
que me lessem por dentro até eu adormecer.

17/11/2020

Cormac McCarthy, elogio fúnebre

Morreu Cormac McCarthy, os que lerem este texto sabem-no já quase de certeza, o autor de livros que redesenharam uma parcela importante da literatura americana e mundial, que temos a sorte de estar inteiramente traduzida em português continental por Paulo Faria.

A Enfermaria escolheu fazer o elogio fúnebre pedindo emprestada a palavra a Isabel Lucas, Paulo Faria, A.O. Scott (The New York Times) e Eduardo Lago (El Pais). Dos dois primeiros, resumimos muito o que publicaram há poucos dias no jornal Público (deixamos os links e esperamos que possam ler os artigos na íntegra, vale a pena); dos segundos, propomos uma tradução de Victor Gonçalves (também com o link para os originais).

Isabel Lucas diz que os livros de McCarthy contêm qualquer coisa de indomável, são um retrato do caos humano. «Obra fundamental para a literatura deste tempo.» Morreu, refere ainda, um escritor de outro tempo, pré-digital, enamorado pelos sentidos das coisas tangíveis. (Artigo aqui)

Paulo Faria, por sua vez, tradutor e discípulo, assegura que «uma imensa tristeza desce sobre nós.» Alarga também este desaparecimento a «um certo tempo, uma certa literatura». Uma literatura alimentada pelo mundo das coisas próximas, sem qualquer tipo de computação a mediar entre o fora (mundo físico) e o teclado da máquina de escrever. Ele que era um cientista amador, atento, pois, à vanguarda teórica. (Artigo aqui)

By A.O. Scott (The New York Times)

  • June 14, 2023 (aqui)

Uma página de Cormac McCarthy pode por vezes ser tomada como ou poesia ou como prosa: as frases curtas; a pontuação esparsa; a margem direita recortada. A dicção, especialmente nos livros que se seguiram a Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985), é ao mesmo tempo austera e lírica, despida do ruído da vida moderna e sintonizada em frequências elementares e metafísicas. Mesmo na sua expressão idiomática mais precisa — gerúndios com g's soltos, «could of» por «could have», «it was» em vez de «there was» — a sua linguagem pode parecer intemporal:

«The boy stood up. He looked off up the meadow. There were two ravens sitting in a barren tree. They must have flown as they were riding up. Other than that there was nothing.
Where do you reckon the rest of the cattle have got to?
I dont know.
If they’s a dead cow in the pasture will the rest of the cattle stay there?»
McCarthy, como todos os escritores, pertenceu ao seu tempo, mesmo quando, talvez mais intensamente do que a maioria dos escritores, se esforçou por criar uma obra que lhe sobrevivesse. Numa crítica astuta e céptica de No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005) no The New York Review of Books, Joyce Carol Oates observou que «tal como o seu quase exacto contemporâneo John Updike escreveu com uma ternura extática sobre o amor físico heterossexual, também McCarthy escreve sobre a violência física com uma atenção que não se encontra em nenhum outro escritor sério que eu conheça, excepto Sade».

A autora prossegue citando uma passagem memoravelmente sangrenta — «He lay half headless on the bed with his arms outflung, most of his right hand missing» — num livro notavelmente brutal, mas é a justaposição desses nomes improváveis que chama a atenção. Colocar McCarthy, o moralista taciturno da fronteira do Sudoeste, na companhia de Updike, o sensualista de língua prateada dos subúrbios americanos, pode parecer quase perverso, a não ser que se considere a quase coincidência dos seus aniversários como algo mais do que mera coincidência.

E devo dizer que o considero. A comparação casual de Oates contém uma verdadeira visão histórico-literária. Estes dois escritores fazem parte de um grupo geracional que reescreveu o genoma da prosa americana, alargando o seu leque temático e recalibrando, ao nível do estilo e da sintaxe, o que ela podia fazer. Hesito em afirmar que os ensaístas e escritores de ficção nascidos na primeira metade da década de 1930 constituem uma grande geração literária, mas consideremos esta meia dúzia de nomes, listados por ordem cronológica de nascimento: Toni Morrison (1931); Updike (1932); Susan Sontag, Philip Roth e McCarthy (todos em 1933); e Joan Didion (1934).

Poder-se-ia continuar a avançar pela década, acrescentando à lista (para começar) Don DeLillo (1936), Thomas Pynchon (1937) e a própria Oates (1938). Mas aqueles seis constituem um cânone formidável por si só. Não que se assemelhem remotamente uns aos outros: cada um representa uma sensibilidade singular e uma voz original, uma personalidade própria que é inconfundível e inimitável.

O que partilharam foi a capacidade de sintetizar influências heterogéneas — os grandes romancistas europeus do século XIX, as vanguardas transnacionais do século XX, Moby-Dick e Henry James, Hemingway, Faulkner e Huckleberry Finn — com uma confiança que pode parecer, no nosso ansioso momento actual, quase uma arrogância. Divergindo dos cânones do realismo americano e dos dogmas do modernismo internacional, embora incorporando aspectos de ambas as tradições, não se filiaram a nenhuma escola ou movimento. Sem coordenação, e com uma idiossincrasia tenaz, redesenharam as fronteiras do mainstream literário.

Em comparação com os outros, McCarthy foi um pouco tardio — o último de entre eles a alcançar o reconhecimento da crítica, a celebridade (que desdenhava) e o estatuto de grande escritor. A sua ascensão coincidiu com uma mudança na sua escrita em termos de região, género, forma e precursor essencial. Passou do Sul para o Oeste, do gótico fronteiriço para o épico fronteiriço, do lúgubre para o oracular, de Faulkner para Hemingway.

A Trilogia da Fronteira — All the Pretty Horses [Belos Cavalos], The Crossing [A Travessia], e  Cities of the Plain [Cidades da Planície] — alargou o seu número de leitores, em parte porque, sem piscar o olho ou ser paternalista, explorou uma estirpe potente e mítica da cultura popular. São romances de cowboys, cheios de estoicismo viril, violência implacável e evocações elegíacas e quase sentimentais da natureza, da geografia e da história dos índios:

«In the evening he saddled his horse and rode out west from the house. The wind was much abated and it was very cold and the sun sat blood red and elliptic under the reefs of bloodred cloud before him. He rode where he would always choose to ride, out where the western fork of the old Comanche road coming down out of the Kiowa country to the north passed through the westernmost section of the ranch and you could see the faint trace of it bending south over the low prairie that lay between the north and middle forks of the Concho River.»

Ao ler estas frases de All the Pretty Horses, pode ver o filme a desenrolar-se na sua cabeça. A versão para o ecrã de 2000 — dirigida por Billy Bob Thornton e protagonizada por Matt Damon e Penelope Cruz —- não é excelente, mas McCarthy tem sido mais bem servido por Hollywood do que a maioria dos seus contemporâneos. Morrison pode ser o único laureado com o Prémio Nobel do grupo, mas até agora McCarthy é o único cuja obra deu origem a um vencedor do Óscar de melhor filme. Os irmãos Coen, que adaptaram No Country for Old Men, descreveram o processo de escrita como «Joel segura o livro aberto pela lombada» enquanto Ethan o reescreve, e parece haver uma afinidade natural entre o trabalho posterior de McCarthy e as inclinações do cinema contemporâneo.

No Country, The Road e The Counselor [O Conselheiro] — um conto pós-apocalíptico encabeçado por duas histórias de crime hard-boiled (a última escrita directamente para o ecrã) — constituem uma segunda trilogia, preocupada com a persistência do mal e o colapso da ordem moral. Esta é definida, de forma bastante explícita, como uma crise do patriarcado, uma erosão da autoridade dos pais e dos seus homólogos, uma perda da possibilidade de heroísmo.

O conservadorismo desta visão é evidente e sugere outra ligação geracional, entre McCarthy e Clint Eastwood, que nasceu em 1930 e cuja mistura de pessimismo metafísico, humor duro e estilo despojado faz com que alguns dos seus últimos filmes pareçam mesmo McCarthyescos. Ambos podem parecer — e têm-se apresentado como — os últimos de uma raça. Mas cada um deles inventou algo novo. Eastwood deu nova vida a formas cansadas. McCarthy escreveu livros que pareciam ter existido sempre.

Obras mais influentes de Cormac McCarthy

Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985). Baseado vagamente em eventos históricos, o romance acompanha um jovem fictício de 14 anos, referido apenas como «o garoto», enquanto ele percorre o sudoeste americano. «Blood Meridian deixa claro que o Sr. McCarthy sempre nos pediu para testemunhar o mal, não para o compreender, mas para afirmar a sua realidade inexplicável», escreveu Caryn James na sua crítica para o The Times.
All the Pretty Horses [Belos Cavalos] (1992). Este best-seller é uma história de aventuras sobre um rapaz texano que parte com o seu amigo para o México. «A atracção magnética da ficção do Sr. McCarthy vem em primeiro lugar da extraordinária qualidade da sua prosa», escreveu Madison Smartt Bell na sua recensão.
The Crossing [A Travessia] (1994). O romance começa numa pequena fazenda de gado no Novo México, nos últimos anos da Depressão, e segue Billy Parham, um vaqueiro adolescente que atravessa repetidamente a fronteira com o México. «The Crossing é um milagre em prosa, um original americano» [an American original], escreveu Robert Hass na sua recensão.
No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005). Esta história rápida e violenta centra-se num assassino frio como gelo, num xerife de uma pequena cidade e num cidadão comum que tropeça numa mala de couro com mais de 2 milhões de dólares. "No Country for Old Men é uma variação tão estimulante destas ortodoxias [de roman] noir como qualquer fã do género poderia esperar», escreveu Walter Kirn na sua recensão.
The Road [A Estrada] (2006). O livro é um relato desesperado de um rapaz e do seu pai que atravessam a paisagem fria, miserável, cheia de cadáveres e cinzenta de um mundo pós-apocalíptico. «O Sr. McCarthy convocou as suas visões mais ferozes para evocar a devastação. Dá voz ao indizível num conto de advertência conciso que é demasiado potente para ser entorpecente», escreveu Janet Maslin na sua recesão.
A.O. Scott é crítico geral da Book Review. Entrou para o The Times em 2000 e foi crítico de cinema até ao início de 2023. É também o autor de Better Living Through Criticism.

EDUARDO LAGO (El Pais)
Nova Iorque - 13 JUN 2023 - 21:52 CEST (aqui)

Cormac McCarthy morreu ontem na sua casa em Santa Fé, Novo México, aos 89 anos. A morte foi anunciada por um comunicado da sua editora, a Penguin Random House, que não indicou uma causa específica. O lugar de McCarthy na literatura do seu país é irrepetível. Um dos rasgos que definem a sua obra narrativa é a sua capacidade para explorar em profundidade o lado negro da natureza humana. Fê-lo numa dúzia de romances espantosos, tão poéticos e pungentes como brutais, tornando a leitura das suas obras uma experiência estética tão poderosa como angustiante, mas, em última análise, redentora, por aquilo que era, no fundo, uma fé profunda nos valores do humanismo e na capacidade da arte para os reafirmar.

Podem distinguir-se várias fases na sua carreira. A primeira, a mais enigmática e sombria, inclui romances como o semi-autobiográfico Suttree, integrado nos bosques do Tennessee e no cenário urbano de Knoxville. Esta fase da carreira de McCarthy termina com uma obra-prima absoluta, Blood Meridian. De leitura hipnótica, mas capaz de afastar muitos pela desolação selvagem das imagens, este romance dá-nos a medida do seu talento. Para Harold Bloom, foi um dos maiores romances americanos de todos os tempos, um herdeiro directo do que Melville alcançou nas suas próprias investigações sobre a natureza do mal. O protagonista, o juiz Holden, é a reencarnação de Ahab, o centro de gravidade de Moby Dick. Esta não é uma literatura para pusilâmines. A certa altura, as hostes sanguinárias que desfilam nas suas páginas deparam-se com uma árvore de cujos ramos pendem os corpos espetados de vários bebés.

Nascido em Providence, Rhode Island, em 1933, foi um dos quatro grandes nomes que definiram o rumo da literatura americana do nosso tempo, juntamente com Don DeLillo, Thomas Pynchon e Philip Roth. O quarteto, validado por figuras como Harold Bloom e David Foster Wallace, é problemático, pois ancora o código estético exclusivamente em figuras masculinas, brancas e heterossexuais. Isto deve ser interpretado como um sinal de carácter apocalíptico, o mesmo que preside à sua obra.

Com ele desaparece outro dos pilares de uma forma de entender a literatura que é hoje insustentável. Apesar de tudo, McCarthy continua a ser leitura obrigatória, pela grandeza da sua escrita e pela honestidade da sua indagação radical acerca da natureza humana. A sua morte deixa um vazio profundo. Reservado, recluso, ciumento da sua privacidade até ao paroxismo, Cormac McCarthy fazia parte do círculo de lendários reclusos literários a quem, por tanto o desdenharem, a grande maioria dos seus colegas escritores cobiça tudo: o dinheiro, a fama, a atenção, a veneração do público e dos media. Tal como J. D. Salinger ou Thomas Pynchon, Cormac McCarthy escreveu de costas para os seus leitores, ignorando as modas e as exigências comerciais, fiel exclusivamente a si próprio e às exigências da sua vocação artística. É a coragem de tal postura que deve ser apreciada.

Até pouco antes do seu 60º aniversário, era um pobretão. Viajava numa carrinha a cair aos bocados, escrevia em quartos de motel e até cortava o seu próprio cabelo quando era preciso. Os seus livros vendiam entre 2.000 e 3.000 exemplares, na melhor das hipóteses, apesar da imensa estatura literária de todos eles, incluindo várias obras-primas. Os críticos sérios viram desde o início que McCarthy estava ao nível do melhor que a literatura americana tinha produzido.

A segunda fase da sua obra começou com uma mudança significativa. Com a publicação de Belos Cavalos (1992), o primeiro volume da sua Trilogia da Fronteira, a vida do romancista sofreu uma viragem inesperada. Os prémios começaram a chegar. Os seus livros chegaram a vender-se aos milhões. Hollywood começou a cortejá-lo. Por instigação do seu agente, deu a primeira entrevista da sua vida. Incomodados com a sua celebridade, muitos dos seus fãs sentiram-se traídos, e é verdade que, embora o mérito literário da Trilogia seja inegável, ao entrar numa zona mais luminosa, o trabalho de McCarthy perdeu algum do seu vigor. Cidades da Planície, o último volume da Trilogia, foi publicado em 1988.

Futuro pós-apocalíptico

No século XXI, McCarthy publicou Este País não é Para Velhos (2005) e A Estrada (2006). Com A Estrada, uma narrativa sobre um futuro pós-apocalíptico em que os Estados Unidos surgem como um país habitado por sobreviventes envolvidos em práticas funestas como o canibalismo, Cormac McCarthy ganhou o Prémio Pulitzer e foi convidado para o programa de televisão de Oprah Winfrey. McCarthy aceitou de bom grado o convite. Algo parecia ter mudado no escritor anteriormente esquivo. Na noite da gala dos Óscares, onde triunfou o filme Este País não é Para Velhos, em que Javier Bardem desempenha um papel inesquecível que lhe valeu o Óscar de Melhor Actor Secundário, estava acompanhado pelo seu filho de oito anos. A Estrada foi transformada num filme realizado por John Hillcoat e protagonizado por Viggo Mortensen, Charlize Theron e Robert Duvall.

Seguiram-se 16 anos durante os quais McCarthy não publicou nada, embora durante todo esse tempo escrevesse incessantemente. Todos os dias ia para o Instituto de Santa Fé, onde era o único escritor num mundo ocupado exclusivamente por cientistas. Foi a sua aproximação à ciência que definiu uma estranha mudança de personalidade. Nessa altura, Cormac McCarthy já não era dono de si. Tinha entrado na lenda.

A publicação simultânea de O Passageiro e Stella Maris foi um novo tipo de desafio. Como disse Czeslaw Milosz quando falou do «segundo espaço», McCarthy já tinha passado para o outro lado da vida e estava a escrever a partir daí. Nem todos foram capazes de o seguir, embora houvesse entre os seus leitores alguns tão apaixonados como sempre. São, no fundo, dois grandes livros, apesar das suas irregularidades.

Com McCarthy, não desaparece apenas um grande narrador, mas também uma forma de enfrentar a obscuridade com as armas mais difíceis de sustentar, as que são empunhadas em nome de um ideal alheio às leis que regem o mundo.

Quatro a começar com S

I

é nos dias de chuva
que penso mais em ti
o calor
muito sol
tempo de praia
deixavam-te impaciente
– clima para infiéis
dizias

com o frio era pior
ficavas quieta
e um pouco mais pequena

e depois vinha a chuva

era a altura das árvores incharem
os montes que se viam da janela
pareciam dromedários a dormir

e então tu querias ver
o teu perfil
ficava encastoado na vidraça
atento ao gotejar no parapeito
ao horizonte
a esfumar-se em teu bafo
e assim
permanecias
vais ficando
uma orla marejada
e um rol de coisas
vindas
à memória

Três melómanos

Às três e meia da madrugada
na Rua da Bica de Duarte Belo
três melómanos discutem música e metafísica.
Já tanta cerveja foi tragada
que nem sempre é rigoroso
um ou outro elo

no encadeamento lógico do discurso.

«A música é
a cara chapada da divindade.
(Não há melhor maneiro de o pôr!)
Ainda ontem, a ouvir Gang of Four,
num segundo me ocorreu o postulado.
Aquela sensação de
eu conheço o sujeito de algum lado

A cara chapada da divindade.»

A segunda respondeu:
«Tu devias ter mais tino.
A ser a música de Deus alguma coisa
não será a cara mas o intestino,
órgão que absorve
elementos de si simples
— ritmo harmonia silêncio histerias —
e os transforma em intrincada energia

que nos aquece,
nos alumia,
nos agarra pela gola.
É um pouco o que sucede com o Piazzolla.

Não a cara mas o intestino.»

E o terceiro:
«Não é bem assim.
A música é é o labirinto que
Deus tece sem fim

pra passear e se perder pra sempre,
para inventar câmaras e antecâmaras
e corredores e novos pátios
e escadarias que dão para certas matas.

Não me surpreende
que vocês isto não alcancem, vocês
que continuam presos ao ardil
do CD. São
coisas que só se entendem em vinil.

Pra passear e se perder pra sempre.»

Passou um gato com um guizo. O guizo
tilintou duas vezes, calou-se,
tilintou a derradeira,
o gato foi-se.

Deixou uma saudade
de som de guizo de gato
reverberando pela
Rua da Bica de Duarte Belo
acima e abaixo.

E acabou a conversa.

Porque
a música é o remoinho que engole a própria metafísica.

De Da Madragoa a Meca, &etc, 2013

Uma questão de sobrevivência: a propósito de um poema de Yiorgos Seferis e outro de Alexandre O’Neill

Este é um pequeno texto sobre dois poemas acerca de dois pequenos países como fonte de dor. Um dos poemas foi escrito em 1936, pelo poeta grego Yiorgos Seferis, e o outro em 1958 pelo poeta português Alexandre O’Neill. Nenhum deles foi leitor do outro. Comecemos com outro exemplo. Em A Beleza do Marido, Anne Carson, que é muito provavelmente leitora de Yiorgos Seferis mas nunca ouviu falar de Alexandre O’Neill, começa o seu livro com a imagem de uma ferida: “Uma ferida exala a sua própria luz/ dizem os cirurgiões./ Se todos os candeeiros nesta casa fossem desligados,/ seria possível fazer o penso a esta ferida/ com o que brilha a partir dela.” Estes versos são precedidos pelo título longo e peculiar desse primeiro poema: “Dedico este livro a Keats (foste tu quem me disse que Keats era médico?) porque uma dedicação tem de conter uma falha se um livro é para permanecer livre e para a sua rendição geral à beleza.” Quando estava a traduzir este livro, em 2019, assumi que esta expressão sobre ferida e luz era idiomática e que devia ter um exacto equivalente em português. Perguntei à minha irmã e ao seu companheiro, ela enfermeira numa unidade de cuidados intensivos de oncologia na altura e ele um médico de clínica geral agora no internato de cirurgia, e nem um nem outro ouvira falar de tal expressão. Mas ambos concordaram que teria algo a ver com o modo peculiar como a luz incide sobre uma ferida num campo operatório, e com um certo sentimento de empatia para com os doentes, algo que ver com o modo como as feridas contam histórias.

2. Em 1936, Yiorgos Seferis já sabia qualquer coisa sobre poemas enquanto instrumentos cirúrgicos. Já tinha escrito, no ano anterior, o seu ciclo de poemas mais famoso, Mythistorema, o The Waste Land da literatura grega: é na terceira secção desse poema que ele fala da relação muito peculiar da literatura grega da sua época com a literatura clássica. Ele representa a tradição como uma cabeça de mármore que repousa sobre o colo do narrador, que não sabe onde a pousar. Surrealismo e literalidade eram, muitas vezes, o método de Yiorgos Seferis. O método ficou cristalizado em Mythistorema. Em 1936, Seferis escreveria um dos seus poemas mais famosos, “À Maneira de Y.S.” Este é o único poema que Seferis escreveu “à maneira de,” mas o Y.S. não é outro poeta, é Yiorgos Seferis.

Um dos grande críticos de literatura grega moderna do século XX, Yiorgos Savidis, num artigo intitulado “The tragic visions of Seferis” definiu suncitamente o contexto político em que este poema apareceu: “O poema foi escrito em 1936, depois de Mythistorema (ao qual alude) e pouco antes do começo da evitável ditadura de Metaxas.” Savidis pensa que o título contém um traço de auto-paródia e cita Seferis, que terá dito: “Não há nada de engraçado no que estou a tentar dizer... mas, pelo amor de deus, porque é que eles não sentem que o tentei dizer de forma engraçada?”

Há algum tempo que ando a pensar na função da auto-paródia neste poema. O poema abre com um dos versos mais famosas de toda a literatura grega moderna: Opou kai na taksidepso I Ellada me pligoni. “Para onde quer que viaje, a Grécia fere-me.” Savidis, que conheceu bem Seferis, diz que ele não era nem “pessimista nem lacrimejante” mas que lhe agradava “ter uma visão trágica própria.” Se um poema sobre uma ferida é sobre o modo como ela exala a sua própria luz, a que há para ser encontrada em “À maneira de Y.S.” deriva da tensão entre o impulso para a auto-paródia e a resonância da tragédia grega antiga. O poema olha para a sociedade, sobretudo a ateniense, da época como teatro. O título acrescenta um tom auto-depreciativo que minimiza o estilo mais elevado que vem das referências a mitos gregos trágicos. Vale a pena citar aqui o núcleo mítico do poema, que é a segunda estrofe:

Para onde quer que viaje, a Grécia fere-me.

Em Pélion entre os castanheiros a camisa do Centauro
caiu por entre as folhas para se enrolar em redor do meu corpo
enquanto subia a encosta o mar perseguiu-me
subindo ele também como mercúrio num termómetro
até que encontrámos as águas da montanha.
Em Santorini tocando ilhas que se afundavam
ouvindo uma flauta tocar algures na pedra-pomes
a minha mão pregou-se à amurada
por uma seta subitamente disparada
dos confins de uma juventude desaparecida.
Em Micenas ergui as grandes pedras e os tesouros dos Atridas
e dormi com eles no hotel “Bela Helena do Menelau”
só de madrugada desapareceram quando Cassandra gritou
um galo pendendo da sua negra garganta.
Em Spetses, Poros e Míconos
deixaram-me doente as barcarolas.

A única imagem em todo o poema que não é inteiramente sobre uma ferida metafórica é aquela imagem da mão, perfurada por uma seta que uma mão invisível dispara dos confins de uma juventude perdida. Quando li pela primeira vez o poema, a teia de mitos homéricos, tal como adaptados por Ésquilo na Oresteia, um ciclo trágico muito caro ao pensamento ético e político de Seferis, é imediatamente reconhecível. Também é fácil de reconhecer a alusão à túnica do centauro Nesso, que se colou ao corpo de Héracles, matando-o em As Traquínias. Mas esta seta talvez não seja esse tipo de seta mítica. A juventude de Seferis foi uma juventude difícil. Marcada por muita errância, por períodos extensos de estudo em França e em Inglaterra, e pela Catástrofe da Ásia Menor, em 1922, por uma relação difícil com o pai, e por um regresso a Atenas meio à deriva, para um trabalho que ele não queria. Sob a ditadura de Metaxas, daria por si brevemente, e enquanto funcionário público que depois passaria mais tarde a uma carreira diplomática, a trabalhar no equivalente ao ministério da propaganda, um período infeliz que se alongou até ao início da Segunda Guerra. A vertigem de febre que é evocada pelo verbo que eu traduzo por “deixaram-me doente,” χτικιασαν (um verbo difícil de traduzir, pode querer dizer “estar doente” no sentido de estar cansado, farto, mas também quer dizer “sofrer de tuberculose”), pode ser metafórica, mas tem decididamente qualquer coisa de biográfico. Esta seta, no entanto, que vem dos confins de lugar nenhum, liga-se a todas as referências homéricas que vêm a seguir. É uma seta que me faz pensar em todas as setas disparadas nos mitos homéricos: as que Apolo dispara quando é o protagonista de um dos símiles mais belos, e mais letais, da Ilíada, aquele em que o poeta o descreve descendo sobre o exército grego como a noite no Livro 1, para disparar as setas que espalham a peste, há as setas de Filoctetes, que hão-de ajudar a destruir Tróia, Filoctetes ele próprio vítima de uma ferida infecciosa, que o ostraciza do exército grego. E, finalmente, as setas dos dois arqueiros homéricos, que são também as duas personagens em Homero mais capazes de ambiguidade moral, Páris e Ulisses. É uma seta disparada por Páris que matará Aquiles e é com o seu arco e flechas que Ulisses mata os pretendentes dentro da sua própria casa, no banho de sangue do fim da Odisseia.

Esta seta, que é disparada dos confins de uma juventude perdida, podia vir carregada com a ressonância de qualquer uma das setas homéricas, mas o que é certo é que deixa o narrador pregado num ponto fixo. As barcarolas, que deixam o narrador doente, são as primeiras de uma linha de embarcações problemáticas neste poema. Os barcos são uma fonte de loucura colectiva em “À maneira de Y.S.” (há nas últimas estrofes aqueles que se afogam tentando nadar atrás de um grande navio e aqueles que se cansam esperando por navios que não hão-de zarpar dos portos). (Barcos de resto, têm uma longa tradição poética que se fixa no modernismo, de Rimbaud a Pessoa, a Montale, a Rilke (veja-se a este propósito o livro de Michael Hofmann, Messing About in Boats).)

Cenários sociais são observados através da lente de uma lucidez afiada e amarga: “Entretanto a Grécia viaja,/ e não sabemos de nada, não sabemos que somos marinheiros que ficaram sem trabalho,/ não conhecemos a amargura do porto quando todos os navios partiram;/ escarnecemos dos que sabem.// Estranha gente que dizem que estão na Ática/ mas não estão em parte nenhuma...” Seferis usa neste poema imagens que exploram, e vão para lá, de um sentido de deslocamento interno num período severamente marcado por migrações de refugiados na história da Grécia, os que viviam na Ásia Menor e que de lá vieram depois da derrota na Guerra Turco-Grega de 1919-22, que resultou numa troca de populações. A própria família de Seferis era oriunda de Esmirna. Os mitos de que este poema mais fala são os da Guerra de Tróia. Há uma citação directa de um verso do Agamémnon de Ésquilo “e se vemos “o Egeu florescer com cadáveres.” Esse é um verso proferido pelo mensageiro para descrever o naufrágio dos navios de Menelau no seu regresso de Tróia. A última imagem que pertence à semântica da doença vem nos versos finais do poema “Para onde quer que viaje a Grécia fere-me,/ cortinas de montanhas arquipélagos granito despojado.../ Chamam ao único navio que viaja AG ONIA 937.” O local onde o poema foi escrito também está anotado, “A bordo do Áulide.” Áulide é, segundo Homero, e mais tarde na versão de Eurípides, o nome do local de onde os Gregos partem para Tróia e é onde Agamémnon mata Ifigénia, que é motivo por que ele é morto no regresso pela sua mulher, Clitemnestra, num crescendo de violência que só termina com o julgamento de Orestes, que adoece de loucura por causa das Fúrias, porque tem de vingar o crime do assassinato do pai matando a mãe, e com a sua absolvição, que encerra o ciclo de violência com aquele que é o mito da origem de uma instituição ateniense, o tribunal do Areópago. Os mitos que dão estrutura à Oresteia estão entre os mais opressivos dos mitos gregos, falam de uma epidemia de violência ancestral que pesa sobre a casa dos Atridas. Se “À maneira de Y.S.”  tenta dar um diagnóstico para uma ferida e para o modo como a sua dor se manifesta, também podemos dizer que na sua narrativa de indiferença social – vale a pena mencionar a piada política no curto diálogo de duas personagens em Atenas, em que uma personagem pergunta a outra, na afectada língua artificial e conservadora que era a norma oficial do katarrevousa, se um vem da Praça Omónia (da Harmonia) e o outro responde que não, que vem da Praça Syntagma (da Constituição) – o poema tenta falar de uma forma de doença colectiva. Perguntar que tipo de luz uma ferida dá é uma forma de entender o seu significado e a sua dimensão. Sempre que leio “À maneira de Y.S.” lembro-me de uma coisa que Jean-Paul Sartre escreveu em 1961, no seu prefácio a Os Condenados da Terra  de Frantz Fanon: “Quando Fanon diz, pelo contrário, que a Europa caminha em direcção ao desastre, longe de isto ser um grito de alarme, ele está a oferecer um diagnóstico.”

3. Em 1958, Alexandre O’Neill tinha 34 anos e publicava um dos seus poemas mais famosos, “Um adeus português.” É um poema onde não se fala de dor, mas três imagens ficaram-me facilmente na memória: a da angústia no olhar no início, desses olhos que são a princípio descritos como “altamente perigosos,” a da “pata ensanguentada que vacila/ quase medita/ e avança mugindo pelo túnel/ de uma velha dor” e aquela imagem de uma pequena dor à portuguesa, “tão mansa” que é “quase vegetal.”

Às vezes releio esse poema, e penso que O’Neill não estava interessado em história da Europa, ou em oferecer qualquer tipo de diagnóstico quanto ao contexto político em que estava a viver, pelo menos não directamente. Acho que onde o poema de Seferis tem qualquer coisa da articulação desesperada, mas lógica, de um diagnóstico, de uma explicação, o de O’Neill não aceita explicações, é um poema que avança ferozmente através de descrições de rigidez e imobilidade. Fecha-se na sua propria dor e dispensa-se de explicar qualquer coisa que não seja a descrição e a denúncia da corrupção moral que era a do regime totalitário sob o qual O’Neill estava a viver. Onde o poema de Seferis procura uma tradição, de resto apropriada até à náusea pelo regime de Metaxas, numa tentativa de a reclamar de volta, o de O’Neill recusa genealogias literárias. É imediato e directo como se um poema pudesse existir sem família poética, como se a ausência dessas ressonâncias fosse uma recusa, uma maneira de falar sem artifício de uma solidão absoluta e de uma perda absoluta. A genealogia cultural verdadeiramente óbvia deste poema pertence a imagens que remetem para descrições de tortura medieval (a roda, em que se gira e se apodrece). Em 1985 em Uma coisa em forma de assim, O’Neill falaria das origens biográficas do poema, de Nora Mitrani, da oposição de alguém na sua família a que ele partisse para Paris, de ser detido e interrogado pela PIDE, e de ter durante anos o passaporte negado. Ultimamente, quando penso em passaportes, penso em O’Neill. Penso numa frase desse texto que ele escreveu em 1985, que se chama “A história de um poema, em que ele diz: ” “Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes.”

 

Reparo que tanto o poema de Seferis como o de O’Neill lidam com a imobilidade, que é o contrário da liberdade, reparo como falam de uma fixidez imbecil que traz com ela a infelicidade. São dois poemas que não oferecem soluções. Os críticos de literatura grega ainda hoje discutem o que quer dizer ao certo o número do navio, 937, que talvez seja uma alusão ao ano seguinte, 1937. Os últimos versos de resto contêm outro trocadilho, AG ONIA é a forma diminutiva de AGIA ONIA, Santa Onia, na forma abreviada, AG., tantas vezes assim grafada nas proas dos barcos gregos, equivalente ao nosso St., que permite que a palavra se leia AGONIA: “Chamam ao único navio que viaja AG ONIA 937” é o último verso do poema. Há poemas que nem sequer nos salvam, como me disse uma vez uma amiga minha que é poeta: a poesia não serve sequer para lavar os dentes. Sobreviver não é uma salvação. Mas podem servir para reconhecer a vulgaridade do que nos rodeia, a que O’Neill talvez tenha chamado de “amor mal soletrado” e resolver não acrescentar nada ao seu veneno absurdo. Podem ser, quando parecem não ser mais nada, apenas uma mera questão de acessório de higiene, o espelho diante do qual lavamos os dentes. Mas os poemas bons são sempre isso e tão mais do que isso:


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

             Atenas/Amorgos
Maio/Junho de 2023