mil pesetas

Para a Jillian Saucier 

1.

mil pesetas
mil pesetas espanholas
qualquer coisa
como seis euros hoje 

2.

o dinheiro é a coisa mais suja do mundo
digo-te eu enquanto atravessamos
aquele parque onde a primavera
parece estar sempre
prestes a começar 

o dinheiro é a coisa
mais limpa do mundo
dizes tu
e lava tudo 

não, é sujo, insisto eu
mesmo ao manusear uma moeda
sabes que ficaste com as mãos sujas
e sempre que uma te cai nas mãos
trocaste por ela qualquer coisa sem preço 

mas pode ser reconhecimento dizes tu
mas pode ser um reconhecimento continuo eu 

mas como reconhecimento
é a coisa mais fria do mundo
a minha primeira moeda
de cem escudos
e a tua primeira nota de um dólar
talvez tenham sido a nossa
primeira lição
em egoísmo e medo de viver 

é belo o dinheiro, dizes tu
faz o mundo girar 

é feio, respondo eu
como fim
e muitas vezes como meio

3.

natalia ginzburg tinha razão
é preciso ensinar as crianças
a ter desprezo pelo dinheiro
ganhá-lo para o gastar
gastá-lo como coisa
muito subserviente
a uma arte de viver 

4.

uma nota de mil pesetas espanholas
com a cara de benito pérez galdós
datada de 1979
impressa em madrid
na misteriosa caixa de dinheiro estrangeiro
da minha mãe
entre algumas libras inglesas
e moedas de um país do leste da europa
difícil de identificar
naquela casa pequeníssima
com um jardim obsessivamente cultivado
onde às vezes as árvores de fruto falhavam
misteriosamente
dionisicamente
dando ou não frutos
consoante assim o entendiam
onde tantas vezes não havia
dinheiro para comer  

e onde ela foi vertiginosamente adoecendo
até ser uma mulher que já não viajava
que acreditava que o mundo
era um lugar que não valia a pena visitar
o sítio onde um filho primogénito talvez
nascido por volta desse ano de 1979
repousa para sempre sem lápide
entre as austeras campas de tijolo
caiado de branco
dos avós e dos tios-avós 

mas também o sítio onde não sei como
três filhas não morreram de fome
e talvez não tenham enlouquecido 

o dinheiro diante da pobreza
devia mesmo ser
como a poesia diante da morte, jillian 

5.

mil pesetas espanholas da década de ‘80
são muito melhores do que mil pesetas espanholas
da década de ‘90 

digo isto apenas
porque acho a cara de benito pérez galdós
que está impressa numa
bastante mais tolerável do que a cara
de hernán cortés na outra 

6.

não sei como se expressava
a soma de mil pesetas espanholas
naqueles dias do final de agosto de 1936
em granada
isto é não sei que notas ou moedas
seriam necessárias para perfazer essa quantia
que no valor relativo de hoje
seria qualquer coisa
como quinze mil euros 

mas tenho a certeza
que isabel roldán
prima de federico garcía-lorca
e que angela cordobilla
a empregada na casa
de manuel fernandéz-montesinos
(cunhado de lorca
executado poucos dias antes dele)
que levou a lorca comida e roupa
todos os dias
enquanto ele esteve preso
no governo civil
se lembrariam 

porque é a soma que ambas recordam
com uma raiva indignada
vir pedida como doação
para a causa nacionalista na carta
que o pai de lorca recebeu
das mãos de um guarda
em calle de san antón
lavrada na letra do filho
que se despede dele com amor 

ian gibson
biógrafo de lorca
especula que quase sem dúvida
foi esta a última coisa
que lorca escreveu neste mundo 

e isabel roldán recorda
como não teve coragem
de dizer ao pai
para não doar aquele dinheiro
porque ela sabia
mas ele ainda não
que aqueles homens
que agora lhe extorquiam doações
três ou quatro dias antes
tinham levado o filho
um pouco para fora da cidade
e entre as oliveiras
em fuente grande
tinham sido eles
quem o tinha assassinado

Oxford, 30 de Julho de 2023

Crítica Cultural

Usarei a enunciação «crítico da cultura» devido à incapacidade (impossibilidade?) de encontrar outro sintagma para definir aqueles que formal ou informalmente diagnosticam, avaliam e propõem uma cura para a cultura (aqui sinónimo de cultura erudita). Seguindo Friedrich Nietzsche, o crítico da cultura será um médico da cultura.

A produção e circulação de informação tem-se deslocado da imprensa, rádio e televisão, com trabalhadores por «conta de outrem», para uma pletórica produção de conteúdos transmitidos, por vezes ao acaso (sem um público-alvo definido), nas redes sociais. Multiplicaram-se, pois, os críticos da cultura, muitos deles com uma produção descontínua, efémera e até única. Mas a disseminação dos críticos e das críticas, num caos que parece criar uma pan-estimulação avassaladora, capaz de sufocar qualquer leitor que arrisque ceder ao apelo deste abismo (vertigem do scrolling), acaba por ser organizada em bolhas. Os grupos de «amigos», «seguidores» e «leitores» selecionam, com critérios que não cabem num pequeno catálogo, os «seus» críticos, que seguem de forma mais ou menos intensa. Há seguidores fanáticos, outros indiferentes, outros escrutinadores, alguns, poucos, por óbvia contradição nos termos e nas atitudes, críticos. Tudo dentro da lógica agónica que compõe uma parcela essencial das redes sociais digitais: os conteúdos devem gerar atração ou aversão, nunca indiferença, e devem fazê-lo em torno de no máximo dez preconceitos.

E o que faz esta legião de críticos da cultura (nos restos de uma pós-modernidade que se quer mais performativa do que explicativa)? Fundamentalmente duas coisas: 1- enaltece e engrandece qualquer acontecimento (cinema, teatro, literatura…) no qual participe, à semelhança de um dos síndromas de férias mais recorrentes: não se diz mal do que experienciamos, pois isso iria desvalorizar-nos; 2- desconsidera quase tudo o que se faz fora do seu círculo existencial, a partir de critérios que não se dão ao trabalho de desocultar, a linguagem é muitas vezes de combate físico e os ataques são sobretudo ad hominem. Estão sedentos do infortúnio dos outros. Esta maledicência seria irrelevante se a imprensa de «referência», a rádio ou a televisão públicas, sobretudo o Canal 2, contrabalançassem este histrionismo, espontaneamente maldoso ou bondoso, com documentos, em vários suportes, que descrevessem e avaliassem, com o devido rigor, atividades e produtos da cultura erudita. Não é o caso, salvo honrosas excepções (Ípsilon, Nada Será como Dante, revista Electra, Pedro Mexia no Expresso, por vezes o Jornal de Letras… esqueço-me certamente de algumas, mas não serão muitas), temos uma incipiente crítica cultural efectiva, talvez também porque a nossa cultura é pouco vibrante e lhe falta um público.

Não me querendo alongar no «falta um público», creio que não temos críticos, a exercer realmente essa tarefa sem os códigos demasiado fenomenológicos (mesmo quando parecem só gostar de hermenêutica) da Universidade, que além de observar e catalogar quisessem também avaliar aquilo que se faz a partir de um patamar que os colocasse ao nível e acima da obra. Ao «nível» para compreender as suas linhas de força próprias. «Acima» para enquadrar a obra no ecossistema de que actualmente faz parte e projetar, com as justas temeridade e ousadia, como visionários, as forças que emergirão no seu ciclo de vida (dependendo tanto de si como dos leitores, de hoje e de amanhã). Bem longe, portanto, de ou fazer um retrato ditirâmbico, ou queimá-la numa fogueira da santa inquisição do gosto subjectivo (redes sociais). Mas evite-se também o rigor mortis (Universidade).

Tal não significa que o mundo da cultura seja o mundo das delícias. O culto ascético da perfeição indispõe os criadores para a fraternidade ou sequer a tolerância do outro, mais azarado ou mais genial. Não há, com as excepções que tantas vezes destroem a beleza dos imperativos categóricos, trabalho colaborativo na cultura erudita, mesmo quando é necessário colaborar para apresentar um produto final (por exemplo, no teatro, ou na música sinfónica). Mesmo se é verdade que a «ansiedade da influência», como a entende Harold Bloom, nos revela que ainda que os criadores desejem ser um «Adão logo pela manhã», «Não pode haver escrita forte, canónica, fora do processo de influência literária.» (O Cânone Ocidental, Temas e Debates, 2012, 20). Certo, mas isto é um processo de apropriação cultural (uso o termo fora do movimento de hipersensibilidade Woke), uma apropriação oportunista, parasitária muitas vezes. E não um processo de colaboração criadora.

Bem sei que Bloom, como qualquer um que se atreva a fazer um cânone artístico, teve uma boa dose de incriminações, que hoje não está sequer no campo do «talvez seja recomendável». Mas ele é um modelo de crítico da cultura. O que fez para a literatura, o estudo denso e profundo de 26 escritores (incluindo Fernando Pessoa, relembre-se), serve de modelo (sendo que um modelo não se imita, inspira-nos) para outras áreas. Não são 26 escritores isolados, apesar de serem únicos, mas que se influenciaram (Shakespeare é a grande fonte, «escreveu a melhor prosa e a melhor poesia da tradição ocidental», idem, 23), muitas vezes agonicamente, de forma que cada um atingisse as suas máximas individualidade e grandeza. Cito-o novamente: «As nossas instituições condenam a competição tanto na literatura como na vida, mas o estético e o agonístico são uma única coisa, como nos é dito por todos os antigos gregos e por Burckhardt e Nietzsche, que recuperaram esta verdade.» (idem, 18). Tentemos fazer um pouco aquilo que ele fez, à nossa medida, a partir dos nossos possíveis (por vezes tão acanhados). 

É verdade que há um conjunto de críticos portugueses que cumprem perfeitamente uma parte do trabalho de Harold Bloom, mas de uma forma ou de outra estão demasiado condicionados por funções e estilos académicos, fazendo avaliações neutras, esgotando-se nas descrições (por mais interessantes que sejam). À medida que o mundo da crítica foi sendo preenchido pelos professores universitários as críticas afastaram-se da vida. Os bisturis analíticos apresentam a cultura, naturalmente orgânica, como pouco vivível para os espectadores. Ainda assim, quero citar alguns, e nem todos cabem na figura do curandeiro desastrado por excesso de diagnóstico: António Guerreiro, Augusto M. Seabra, Eduardo Coelho, Eduardo Lourenço, Jacinto Prado Coelho, João Bénard da Costa, João Barrento, Joaquim Manuel Magalhães, Jorge de Sena, Jorge Leitão Ramos, José Augusto França, Lauro António, Vasco Câmara… [Acrescento sugerido por Tatiana Faia: Agustina Bess-Luís, Rosa Maria Martelo e Maria Irene Ramalho]. [Acrescento meu: José Gil, Diogo Ramada Curto].

Ao longe um cão ladra às estrelas — Haikus

 

À beira do rio

o reflexo

de todos os verões.

 

No telhado do velho palheiro

dormita

um jovem gato.

 

Dourado

sobre a vinha velha

o último sol do dia.

 

Passa o rio­ —

onde o reflexo

da minha juventude?

 

No monte ao sol

a pele de uma cobra —

preservativo seco.

 

Festa na aldeia vizinha

grilos no jardim

da velha casa.

 

Ao longe

um cão ladra

às estrelas.

 

No bairro abandonado

os gatos vadios

são reis.

 

Na aldeia

uma de cada vez

amadurecem as framboesas.

 

Rio abaixo

levada pela corrente

uma abelha.

 

Abre a framboesa

antes de a meteres

à boca.

 

A Lua há momentos

em cima de um pinheiro

agora noutro.

 

No poço

cai uma maçã —

que terei esquecido?

 

Ouvir os outros

como se ouve

uma tempestade.

 

Como se ouve

o vento

ouvir o vazio.

 

Ouvir palavras vazias

como se ouve

o vento.

 

O caminho mais longo

é o do silêncio —

regresso a casa.

 

A videira abraça

ausências

e distâncias.

 

Longo é

o caminho

do silêncio.

 

À sombra do negrilho

que secou

a infância.

 

Horas em branco

preenchendo

páginas de vazios.

 

Quanto teremos

que acabar

até ao evidente?

 

Acordar com o som

da primeira água

da agueira.

 

Ao sol três caixas de figos

e as mãos do meu pai —

anoitece.

 

Termina o torneio

de sueca

o sol põe-se.

Portugal, Agosto 2023

Alone together

Rousseau sonhou a distância, a solidão,
para acabar com o mal que nos fazemos;
e, em certos reinos, pôs-se o sonho em prática
dum modo incrível que ainda admite o toque.

Vivi uns dias numa terra alta
onde as pessoas, juntas, estavam longe;
notava-se isso nas flexões da voz,
nos gestos e no preço do café.

Vi lá passar amantes enlaçados
com dois alpes nevados entre as almas;
senti calor humano ao ser roubado
por um bandido que imigrara há pouco.

Nunca pensei que a ideia alastrasse.
Mas sim, cá vamos seguindo Jean-Jacques
para nosso bem, para acabar com o mal.
Chamou-se a morte para impor respeito.

E o respeito reina sobre o mundo,
enquanto o amor espera paciente.
Seremos ilhas? Há pouco, no cais,
vi uma gaivota a bocejar de tédio.

28/03/2020

Tradução literal

Terminei há pouco a tradução de O Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche, um livro que coloca imensos problemas de tradução, porque é de Nietzsche, porque é em alemão (uma língua e uma cultura mais afastada da nossa do que, por exemplo, a francesa, inglesa ou espanhola) e porque é de 1872. Por isso, faz sentido pensar com vocês sobre se é possível, e desejável, desenvolver uma metodologia que tornasse as traduções menos dependentes do talento e das convicções individuais do tradutor. Algo, aliás, que talvez esteja contido na sugestão, que se tornou quase lei, de traduzir literalmente. Por outro lado, nalguns aspectos, parece que desaprendi uma certa arte de traduzir que tinha como designo pessoal quando escrevi em 2014 um texto para a Enfermaria 6 sobre o traduttore traditore.

Neste mini-ensaio, em parte presente na nova tradução de O Nascimento da Tragédia, direi por que razão julgo que as traduções não podem ser literais. Sendo, pois, sempre mais o resultado de um gesto artístico do que metodológico.

Guio-me metodologicamente pelo princípio, um pouco a contrapelo de uma nova escolástica, de que se a preocupação com a literalidade do que traduzimos está no início da nossa ação, ela não estará, contudo, no fim. Isto é, devemos pretender fazer uma tradução literal, sabendo, porém, que é impossível levá-la a cabo. Fundamental e incontornavelmente porque passamos significados e sentidos de uma língua e, igualmente importante, de uma cultura para outra. Podemos aplicar à tradução aquilo que Pierre Hadot diz do filosofar: «filosofamos sempre no interior de um jogo de linguagem, ou seja, para retomar a expressão de Wittgenstein, no seio de uma atitude e de uma forma de vida que doam sentido ao nosso discurso».[1] Por isso, como referem Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e John Austin (1911-60), com terminologias diferentes, o significado é dado pelo uso. Sabemos, assim, o quão difícil é traduzir, e nunca literalmente, palavras (e muito mais do que isso, algumas são autênticas visões do mundo) como «Dasein», «garde-fou», «underdog, ou sencillo (bem sei, «simples», mas…).

Não nos esqueçamos que o termo latino translatio tinha originalmente o significado de «transporte», ou de «transferência de dinheiro entre bancos», mas também de «enxerto botânico», ou «desenvolvimento de um campo metafórico». Será isto que leva Umberto Eco (1932-2016), em Dire quasi la stessa cosa. Esperienze di traduzione[2] (Dizer Quase a Mesma Coisa) à ideia de negociação, como se faz no uso quotidiano da língua.

Desde modo, talvez George Steiner (1929-2020) não tenha razão ao defender, em After Babel (Depois de Babel), que a boa tradução escreve na língua de chegada aquilo que o autor teria dito se a falasse.[3] Prefiro, sem minar a inteligibilidade, levar o leitor ao texto original, como defendia Schleiermacher,[4]  em vez de o autor à cultura e à língua de chegada, Por outro lado, recupero de Jean-Paul Sartre, mitigando um pouco a posição de Schleiermacher, a ideia de que as línguas não são códigos abstratos, elas devem ser subjetivadas: «[S]aber falar uma língua não é ter um conhecimento abstrato e puro da língua, tal como a definem os dicionários e as gramáticas académicas: é fazê-la nossa através das deformações e seleção regionais, profissionais e familiares.»[5]

Talvez por isso, Jacques Derrida, em O Monolinguismo do Outro, diga que «Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é um outro nome do impossível[6] Fernanda Bernardo, a nossa principal tradutora de Derrida, sintetiza o problema da tradução como um desafio permanente, «um compromisso possível, mas também sempre irremediavelmente imperfeito entre dois idiomas […] partidários que somos de traduções fidelíssimas na sua inevitável infidelidade».[7] Permito-me subscrever aquilo que diz esta filósofa.

[1] Exercices spirituels et philosophie antique. (Paris: Albin Michel, 2002), 368.
[2] Milão: Bompiani, 2003.
[3] Cf. Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução. Trad. Miguel Serras Pereira (Lisboa: Relógio D’Água, 2002), 376–77.
[4] Cf. Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir. Trad. notas e apresentação de José Miranda Justo (Porto: Elementos do Sudoeste, 2003).
[5] O Ser e o Nada. Trad., prefácio e notas de Victor Gonçalves (Lisboa: Edições 70 1022 [1943]), p. 614.
[6] Citado por Fernanda Bernardo, «Nota sobre a Edição e Tradução Portuguesa», in Jacques Derrida, Vadios (Coimbra: Palimage, 2009), p. 13.
[7] Idem, pp. 13‑14, 17.