Lobo Antunes e Dinis Machado, subsídios para mitigar uma possível polémica

Anselm Kiefer

Anselm Kiefer

1- História de uma micro-polémica. A crónica de Lobo Antunes para a revista Visão, n.º 1263, de 18 de Maio, “Subsídios para a biografia de Dinis Machado”, mereceu uma resposta indignada de Rita Machado, filha de Dinis Machado, na mesma revista, n.º 1266, de 8 de Junho (aqui). Os ecos desta polémica não foram, pelo menos por enquanto, muito visíveis, ou audíveis, mas quem sabe, podem chegar brevemente ao lugar errado. Em jeito de possível bombeiro por antecipação (apanhar o futuro é um desejo frívolo, sei-o bem), deixo aqui uma nota de apaziguamento.

2- Je est un autre”. Somos sempre outros, nunca ninguém nos apanhou, do exterior, na pureza de uma identidade fixa, esculpidos em material indeformável. Nem nós o conseguimos ao olharmos para dentro, porque no interior tudo é quântico, resultado permanentemente alterado de combinações possíveis, juntando e dissociando órgãos, ideias, sentimentos, coisas antigas e coisas recentes, olhares fúnebres em direcção ao passado ou cheios de faísca em relação ao futuro. É assim, o “eu é sempre outro”, até o cartão de cidadão, documento que prova o domínio da burocracia sobre os projectos mais modernos, e libertários, de cidadania, tem de ser renovado.

2.1- Não havendo, pois, qualquer centralidade identitária, sendo cada um de nós uma espiral lançada no mundo, constantemente sacudida pelo acaso, que às vezes finge bastante bem ser determinismo ou, pelo menos, livre arbítrio definido pela vontade subjectiva, devíamos doar sempre um eu, uma forma de ser eu, à caricatura. Seria um acto de humildade e generosidade contra todas as formas de fanfarronice e de codificação burocrática. Seria também a maneira de manter uma linha de auto-irrisão sempre viva, quebrando a tentação de nos fixarmos num qualquer panteão auto-referencial.

3- Percebo que a filha de Dinis Machado ache insuportável a pretensa caricatura do seu pai, acusando por isso Lobo Antunes de mau gosto e de pedantismo. Mas percebo também que essa indignação resulte de uma leitura hipertrofiada pela constelação de sentimentos que uma filha normalmente alimenta pelo pai. Tudo legítimo, entendam-me bem, tudo permitido pelas leis da hermenêutica (um texto tem sempre vários sentidos possíveis), da ética (o valor, ou desvalor, de algo é sempre extrínseco) e do amor. Por outro lado, por mais que o queiram as boas-almas, a escrita nunca é pacífica nem limpa. Não sublinhei na minha leitura da crónica aquilo que Rita Machado critica, isto prova que não existe um sentido único no texto. E o pior que poderia fazer agora era ir reler esse mesmo texto, com o filtro da indignação da Rita; certas composições, mais intensivas do que compreensivas, devem ter somente uma leitura, nunca cirúrgica, é preciso apanhá-las como se fossem um organismo vivo a quem vamos dar um abraço ou um murro. Creio ser o caso das crónicas de Lobo Antunes.

4- É só mais uma prova de que o perspectivismo superou as hermenêuticas absolutistas, que acreditam na recuperação pelo leitor da verdade de um texto. Li a crónica de Lobo Antunes sobre Dinis Machado e não senti que estivesse, como pretende a filha, a “Ridicularizar e caluniar” a sua memória. Mas a minha leitura não é melhor do que a da Rita, é somente distinta, feita a partir de outra perspectiva. Esta diversidade de interpretações é tanto mais legítima quanto se trata de um texto que não pretende ser demonstrativo. É verdade que pode dar a entender, até pelo título, tratar-se de um esboço biográfico, mas em Lobo Antunes tudo acaba por desaguar na ficção, há um delírio na sua escrita que impede qualquer rigidez demonstrativa. Ele procura o infinito no finito, por isso não pode ser fiel aos factos (se tal coisa existir realmente). Assim sendo, não se deve realmente acusá-lo, como faz Rita Machado, de confundir “realidade com ficção”, para ele a realidade é só mais uma parcela da ficção. Lobo Antunes constrói narrativas antropológicas possíveis, inventando novos mundos povoados por organismos humanos que já não o são verdadeiramente.

5- Subsídios para uma estética. Lobo Antunes vive da força das suas visões, e nelas sobressaem sobretudo os aspectos caricaturais das personagens que vitaliza (nem sempre de forma cómica). Não se trata, pois, de uma estratégia retórica para “ridicularizar”, mas de estilo, da sua forma de tecer narrativas encantatórias (é uma espécie de realismo mágico que valoriza o disforme, corporal e mental, social e pessoal, mesmo se isso serve por vezes para melhor se cobrir a si mesmo com um verniz de boa ilusão). Lobo Antunes fala-nos simultaneamente, e contraditoriamente, das ruínas do mundo e das pulsões que lhe dão permanentemente uma renovada vitalidade. O sexismo primário do trolha ou a lascívia do velhote enamorado pelas meias de vidro de uma senhora, por exemplo, mostram como o demiurgo se enganou quando criou o mundo, mas, ao mesmo tempo, desenha um feixe de forças arcaicas que só podem provir da fonte mesma da vida, ainda sem moral mas já cheia de pujança inventiva. Lobo Antunes acrescenta realidade ao mundo, desbaratando as regras que os tecelões da verdade instituíram com soberba minúcia, por isso não pode ser fiel aos factos, ou melhor, apanha os factos de través e sacode-os para que formem parcelas das suas narrativas, encaixem no seu estilo e na visão dos mundos que vai fabricando com a sua escrita.

6- Todos estão sujeitos a cair, e a Lobo Antunes não deve agradar o cinto de segurança imaginário de um qualquer panteão. Se lhe interessa o céu, é, talvez, como a Ícaro, para ter altura de onde cair. Por outro lado, percebo neste escritor imenso a maior das qualidades para se fazer alguma coisa de jeito: não ter medo do ridículo. Como escreve o seu amigo George Steiner, “só há profundidade se não houver medo do ridículo”, não de um ridículo vulgar, mas daqueloutro que convive, amando-as, com as vidas disformes expulsas da arena dos bem-comportados. Lobo Antunes mergulha no lodo para aonde a sociedade decente lança os seus detritos, abraçando e rindo com figuras ridículas, é aqui, onde quase ninguém já vai por vergonha, que ele ganha a profundidade inventiva que lhe permite desdobrar o humano como as pregas de um leque. Rita Machado, compreendo-te, admiro até a defesa arriscada e comovente que fazes do teu pai (um escritor de quem gosto muito), mas Lobo Antunes está acima da calúnia, ele cria mundos, tem esse enorme talento, e às vezes salpica de lodo barrento uma ou outra personagem, efeitos colaterais mínimos que nem Deus, tudo o leva a crer, conseguiu evitar.

Donald Trump: o terrorista ambiental

Fui aprendendo que os impulsos ideológicos recuperam sectarismos arcaicos, obrigatoriamente simplificadores do pensamento crítico. Por exemplo, sou filiado num partido ambientalista e animalista, o PAN, que defende igualdades pós-antropocêntricas (entre todos os seres sencientes) e, estatutariamente, uma democracia participativa (em vez da tradicional representativa), há dois anos até entrei na campanha eleitoral. Bom, mas quando chegou a hora da verdade o que decidiu tudo resumiu-se a uma vontade de poder egoísta absolutamente elementar, ideias, princípios, estatutos... foi tudo passado a rolo compressor pelos mais arrivistas. Aceder ao poder deixou de ser um meio e passou a um fim em si mesmo, o poder pelo poder, e, claro, os privilégios, sociais e económicos, associados. Por isso, fui adormecendo as parcelas políticas que me compõem, transladei a sua energia para outros territórios, que considero muito mais férteis, uma vírgula tornou-se mais importante do que um Decreto-Lei ou um daqueles combates retóricos, cheios de bazófia e gesticulações primárias, desenhados para a auto-glorificação, que preenchem os debates na Assembleia da República. Resisti, pois, a escrever, e por vezes até a pensar dentro do mundo da política, a sua irracionalidade intrínseca parece incompatível com análises e interpretações justas.

Por outro lado, apesar de me considerar um conservador vanguardista (um dia escreverei sobre este aparente paradoxo, que recuperei de Peter Sloterdijk), interiorizei há muito as enormes virtualidades da democracia (já escrevi sobre isso aqui). As mais avançadas, orbitando em torno do Ocidente alargado, têm mecanismos de checks and balances capazes de mitigar os assaltos ao poder de cariz totalitário. Além disso, os actos eleitorais e, em muitos casos, a limitação de mandatos, impendem que um indivíduo se mantenha ad aeternum no poder (embora em Portugal tenha havido o quase perpétuo Alberto João Jardim). Claro que há linhas subterrâneas de influências que favorecem certos grupos sociais, reservando-lhe o domínio de uma parte significativa da economia e da opinião vinculativa. Noutros termos, reconheço que até nas democracias avançadas há demasiadas diferenças que se transformam em desigualdades, não sejamos ingénuos. Todavia, mesmo depois de ler Michel Foucault, Gilles Deleuze, Byung-Chul Han ou Slavoj Zizek, não creio que os princípios básicos do “governo do povo, pelo povo e para o povo” estejam total e irremediavelmente capturados por grupos-de-interesse que apenas deixariam viver um simulacro de democracia, tomando-a nós, qual personagens platónicas agrilhoadas no fundo da caverna, por uma democracia autêntica. Claro que existem zonas opacas, claro que os capitais cultural, económico e social, para usar a terminologia quase revogada de Bourdieu, favorecem injustamente uma pequena parte da população. Mas, sem querer retomar Winston Churchill ou Leibniz, creio que ela é o melhor dos regimes políticos possíveis.

Portanto, até hoje deixei Donald Trump (esse cómico involuntário) ou Vladimir Putin em paz, quase não escrevi ou sequer pensei sobre deles. “É jogo político e pouco mais”, disse. Confio na dita sociedade civil, nos indivíduos, nos grupos de pressão estritamente altruístas, como a Quercus em Portugal. Mas subitamente o presidente dos Estados Unidos – representante da democracia moderna mais antiga, chefe supremo da maior máquina de guerra de que há memória e do país que mais poluiu a Terra – decide rasurar o compromisso ambiental que o seu antecessor estabelecera há bem pouco no Acordo de Paris (2015). Num discurso simplório, escrito por vinte ou trinta cabeças semi-ocas, veio dizer-nos, a nós e às gerações futuras, a nós e aos restantes seres vivos, a nós e ao planeta, que por razões económicas (silogismo com uma única premissa) retirava a América, é assim, tomando a parte pelo todo, que gosta de nomear os U.S.A, do mais importante, e vital, acordo sobre alterações climáticas que se conseguiu até hoje. E não se obteve, antes fosse, porque subitamente o mundo se desfez da mesquinhez nacionalista do deve e haver, houve acordo porque não restam dúvidas a nenhum ser com uma sanidade mental média de que caminhamos para um desastre ambiental severo e global. Sabe-se que ninguém tem nada a ganhar com o aquecimento global, sabe-se, aliás, que temos muito a perder, excepto uns cépticos desmiolados, cheios de elucubrações funestas, espalhados por todo o planeta mas que medram bem na terra do senhor Trump, principalmente nos terrenos do provincianismo megalómano. Se nos chateia muito o grau elevado de esquecimento das promessas eleitorais, Trump, neste caso, é irrepreensível, cumpre aquilo que prometeu (normalmente em pacotes de poções obscurantistas), e, em boa verdade, os que olham para o céu e não vêem (o método do olhar) os famigerados gases de efeito de estufa votaram nele e agora foram recompensados. Talvez tenham alguma razão, uma explicação que meta à bulha Deus e o Diabo é, para eles, muito mais interessante e verosímil do que estudos cheios de números e de previsões catastróficas. Tanto mais que o capitalismo mais básico precisa do optimismo como pão para a boca, e não é fácil manter a esperança se nos dizem que vamos começar a assar ou a morrer afogados.

Assim, Trump obrigou-me a retomar um activismo político – sem folclore, a única arruada em que participei pôs-me uma semana de cama –, devo-o à Terra e às futuras gerações, mas também aos mais carenciados que hoje vivem em países sem recursos para mitigarem as alterações climáticas. Designei Trump como um terrorista ambiental, e como tal deve ser combatido. O mal que ele pode provocar leva-me a pensar que abatê-lo pode ser um direito de legítima defesa, se não fisicamente pelo menos retirando-lhe, através de artimanhas se for necessário, o poder que tem. Conheço a minha insignificância, mas milhões, milhares de milhões de insignificantes poderão fazer qualquer coisa. E eu quero juntar-me a eles, formando um vasto espírito de repúdio, de nojo, de combate. Abaixo o Trump, abaixo de qualquer maneira, abaixo que ele é um terrorista ambiental, o pior terrorista que a história do planeta já conheceu. Ele é o perigo de todos os perigos. Contra os tambores tresloucados, marchar!

Manchester

Edvard Munch

Edvard Munch

Subitamente irrompeu uma brecha na luz de Manchester, de onde irradiaram as trevas, aquelas que conhecemos e desconhecemos (pensar o abominável é já, diz-se, desculpá-lo um pouco) e às quais dedicamos cada vez menos caracteres indignados. Se nos habituarmos, vencem-nos. E nós habituamo-nos. A odiosa revelação de um niilismo, preenchido por círculos de escorpiões, que sente comprazimento na razia de vidas quase ainda por viver, vidas de futuro, cheias de entusiasmo e esperança, vem agora ter connosco como um mal esperado. Estamos no limiar de um abanão profundo, convocaremos, porém, ainda velhos rituais de compensação (homenagens, textos fúnebres, vagas policiais, vinganças jurídicas). Mas fazemo-lo sabendo que em breve algo virá novamente comer vidas e alegria, o terrorismo desbragado (acredito num terror que se quer conjurar a si mesmo) é um glutão insaciável, e nós, que vemos Manchester nos mass media, espectadores panópticos, aguardamos tristes pela próxima garfada. As vítimas de sangue (ainda tão juvenil, raios!) deixaram-nos e afogaram de dor quem as amava, como sabemos há muito mais do que 22 cadáveres. Queira alguma coisa bondosa que o magnífico enxame de estrelas, que nos visita tanto melhor quanto a noite for escura, reponha uma certa justiça.

 

Festival Eurovisão da Canção

Escrevo sobre o efeito narcótico de quem sempre esperou o pior do Festival Eurovisão da Canção, o que pode provocar elogios excessivos.

Salvador Sobral ganhou ontem (13 de Maio de 2017), data de milagres quase institucionalizados, o Festival Eurovisão da Canção. Fê-lo acima das habituais pobres possibilidades festivaleiras de Portugal (tínhamos conseguido no máximo um 6.º lugar) e acima (ou abaixo) também da sua consciência, moral e estética, de músico (a 1.ª vez que viu este encontro de música-fogo-de-artifício, como lhe chamou, foi o que venceu). Assim, numa rara imbricação de talento, submissão e revolução, o destino, esse acaso impuro, decidiu fazer uma jogada diferente.

Talento: o de Salvador e, há quem diga “sobretudo”, da Luísa, irmãos de sangue. O Amar Pelos Dois é uma canção talentosa, a música e a letra entram directamente no ouvido, não são necessárias muitas mediações estéticas, tudo parece perfeitamente claro, vibram as emoções que têm de vibrar, instando à convergência, à fusão. Além disso, o jogo corporal de Salvador, revelando no seu minimalismo uma entrega quase mística, está em sintonia integral com a canção. A simplicidade, de que tanto se fala, é uma arte sublime, tanto mais que a canção é harmonicamente muito rica.

Submissão: Salvador Sobral submeteu-se a uma parcela do mundo da música que, segundo ele, lhe é indiferente. Nunca tinha visto este festival, já o disse, e mesmo depois de ganhar, quando se baixam as guardas e se disparam panegíricos e agradecimentos a torto e a direito, manteve uma distância, quase higiénica, em relação à Eurovisão, acabando por dizer que o desejo de vitória que Caetano Veloso lhe tinha endereçado valia mais do que a vitória em si mesma. Certo. Mas foi lá, entrou num jogo que parece não ser o dele, numa constelação musical que lhe é, pelo menos, alheia e que agora marca um pouco aquilo que é. É verdade que se preocupou em descolar o mais depressa possível o rótulo de festivaleiro que lhe caiu em cima, mas ele fez por isso, não foi?

Revolução: “Sem a música a vida seria um erro” (Nietzsche), mas o que ele queria dizer era que “sem uma música adequada a vida era um erro”, prova-o as críticas que fez ao estilo decadente de Wagner. Traduzindo: “diz-me a música que ouves dir-te-ei o que vale a tua vida”. A Eurovisão estimula muitas vidas anódinas, à tradicional “música descartável”, como lhe chamou Salvador Sobral, correspondem com certeza vidas descartáveis. Mas era (é?) este o ADN do Festival: “música ligeira” para entreter as massas, conscientes porém da sua nacionalidade. Ora, Amar Pelos Dois revolucionou o modelo (mesmo não estando nos antípodas), ganhou a música, como referiu várias vezes o intérprete, mais do que a encenação espalhafatosa, ganhou a voz mais do que a beleza do cantante, ganhou a entrega sincera do cantor mais do que uma coreografia de cabaret. E isto é revolucionário, não sei se perdurará, mas por enquanto vale a pena saborear a inversão e, como queria Kant, dando aqui muitas voltas à relação linear, manter a esperança de que a Eurovisão tenha descoberto uma nova vocação, que seria, agora com Nietzsche, tornar-se aquilo que ela é, ou seja, um festival de música.

Para se saber um pouco mais sobre Salvador Sobral, um belo artigo no El País.

Ícaro: ou como ter altura de onde cair

Matisse, Icare, in Jazz, 1943.

Matisse, Icare, in Jazz, 1943.

I

Ícaro, na variação mítica grega mais comum, era filho do arquitecto e inventor Dédalo, encontrou-se com a morte por voar muito próximo do sol. Ícaro nasceu da união entre Dédalo, à época arquitecto do rei Minos de Creta, e uma escrava da corte. Um dia, o seu pai traiu Minos fornecendo a Teseu, por intermédio de Ariadne, o plano que permitiu àquele sair do Labirinto, depois de matar o Minotauro. Furioso, Minos decidiu puni-lo, aprisionando-o no Labirinto com o seu filho, Ícaro.

Mas Dédalo inventou uma forma de escapar: construiu asas de penas coladas com cera. Conta-nos Ovídeo nas Metamorfoses que Dédalo preveniu Ícaro de que não devia voar nem muito alto (o sol fundiria a cera) nem muito baixo (o vapor das ondas tornaria as asas pesadas). Mas no decurso do voo, Ícaro, “tomado de entusiasmo” (Apolodoro), negligenciou os conselhos do pai e aproximou-se demasiado do sol. Esta imprudência fez com que as asas se desagregassem sob o efeito do calor e o jovem caiu e morreu afogado no mar... Icário.

II

Simbolicamente, a história trágica de Ícaro representa os perigos que corre quem está animado de ambição desmedida (a hybris grega, retomada pelo cristianismo em termos mais teológicos e injectando-lhe toxicidade) ou de audácia inconsequente. Em bom português, diz-nos “não te estiques!”, forma de traduzir rapidamente as inúmeras considerações sobre a maldade, quase sempre mefistofélica, da pretensão inchada. Mas é também uma narrativa sobre a ousadia vital do ser humano, outro que o acomodado à repetição confortável do previsível, antes aquele que se mantém na disposição febril de ser diverso, de se aventurar no desconhecido para se reinventar. É assim que leio o belíssimo poema de Marcel Fernandes publicado há pouco tempo na Enfermaria:

Ícaro

descamando o quarto
cavo a cova fria da rotina
despertando a águia que habita
a pele dos lençóis
tudo enfim deverá acontecer
o voo incerto atravessa-me o osso
alado: lanço-me ao sol

Este “lançar-se ao sol” do poema é de um arrojo que prenuncia o trágico, e nem o fatalismo do “tudo enfim deverá acontecer” reduz a infinita paixão temerária de escalar para lá do que se pode. Ícaro rompe a placenta e promete-se a um futuro diferente dos agrimensores receosos e satisfeitos (como o que, no quadro de Pieter Bruegel, alheio à queda de Ícaro no mar continua a lavrar a terra).

Pieter Bruegel, 1555-1560

Pieter Bruegel, 1555-1560

III

O que nos ensina este mito? Os gregos não tinham a noção da nossa liberdade, só era possível escolher dentro do que já tinha sido definido pelo destino, e talvez por isso não houvesse verdadeiros heróis, nem Antígona ou Prometeu o foram (apesar do fascínio que provocaram nos modernos), eles faziam parte das cartas que os deuses queriam jogar. Mas no caso de Ícaro parece existir um ligeiro desvio às fórmulas tradicionais de construir a tragicidade: a queda dá-se porque desobedece aos humanos, a seu pai, e não aos deuses. E se isto introduz uma certa frivolidade, a desatenção de Ícaro revela uma ambição inocente, imagino-o a voar, subindo incandescente nos céus em pura felicidade. Para ter uma dimensão trágica precisava de tensão entre elevação e queda, uma verticalidade indevida, cheia de vigor mas já, também, de vertigem.

De qualquer forma, gosto de ler o mito não como um gesto de criança traquina e desobediente mas como um desafio à normalidade, pagando-se o preço por se elevar à altura do que queria. Mesmo se não é uma leitura filologicamente segura, é a hermenêutica que nos apetece seguir, e como sabemos nos mitos não há a verdade original, os seus sentidos originários têm muitos espaços em branco, é, aliás, por isso que permanecem vivos.

IV

Mas há ainda outras lições a retirar. Aproximando-me novamente do poema de Marcel Fernandes, leio-o como o preço a pagar pela excepção, sair do labirinto pós-moderno, onde se é rebelde com uma carteira vasta de seguros (até um de vida, como se se pudesse extinguir o próprio morrer). O pior é não ter altura de onde cair, ser pobremente rasteiro, aborrecido. Devemos prender-nos a sonhos de altitude, afastar-nos do que vivemos e agarrar-nos com mãos de lenhador ao que esperamos viver. Sem voltar a fumar o opiáceo da esperança, com ou sem Deus, que também tem histórias celestes. Saltar por cima do que somos na secreta missão de renascermos, sem mistificações ou seguidismos, sem nome. Nunca mais nos afogarmos na calmaria da normalidade. Sem o síndroma de Ícaro vive-se numa banalidade desoladora e desastrosa. Por isso leio La Chute d’Icare de Matisse não como ele queria (um piloto abatido caindo do céu iluminado por disparos), mas como esse neófito desobediente que obteve por instantes a felicidade concentrada do universo. Tenhamos, pois, altura de onde cair.

Matisse, La Chute d'Icare, 1947.

Matisse, La Chute d'Icare, 1947.