Filosofia como Modo de Vida - nota de leitura

Sabemos, sobretudo pelos estudos de Pierre Hadot e Michel Foucault, que os gregos tomavam a vida, enquanto bios, como matéria, material, e não como zoe, sequência biológica, determinismo psicológico. Um bios enquanto material dúctil, modificável, vulnerável. Por isso, a ética designava para eles um processo, um esforço de transformação individual com implicações coletivas. Que cada cidadão se imponha as suas próprias formas, maneira de educar para a temperança, o que trará ordem à Polis. A ética, na leitura que Foucault faz dos gregos, seria um trabalho sobre si-mesmo, lento, paciente, progressivo. Estas «técnicas de si» que o pensador francês descobre e trabalha na década de 80 do séc. xx fá-lo reconsiderar a filosofia como arte da existência, ela escolheria e acompanharia as técnicas a aplicar sobre si para traçar as linhas éticas essenciais de cada um que filosofa. Prolongando as linhas socrática, estoica, epicurista e cínica (Aristóteles interessa-se mais pelo funcionamento do mundo).

Reparem como estamos longe da filosofia como profissão professoral ou atestado de erudição numa linguagem para iniciados. Para Foucault e Pierre Hadot, como antes deles para Sócrates, Montaigne ou Nietzsche, ser filósofo é uma arte, no sentido de prática artesanal que deve ocupar-se de ir definindo a ética de cada praticante.

Escrevi a minha última Nota de Segunda Feira, aqui na Enfermaria 6, em torno disto, reincidi, num café filosófico que mantenho na livraria Snob, Lisboa, cerca de uma semana depois. E eis que ontem, talvez levemente guiado por um zum-zum amigo, encontrei na Almedina do Saldanha a Filosofia como Modo de Vida. Ensaios Escolhidos, organização de Federico Testa e Marta Faustino, editado pela Edições 70. E aí pensei: não há mesmo duas sem três. Claro que há, mas fiquei contente com esta trilogia, uma consistência que nasceu das minhas vontade e interesse, mas também do acaso. E, como dizia Nietzsche, é «preciso amar o acaso».

O livro agora editado «pretende dar expressão, em língua portuguesa, às principais linhas do pródigo e multifacetado debate contemporâneo em torno da filosofia como modo de vida» (p. 43) Assim, «Tomando como ponto de partida e inspiração esta reinterpretação da história da filosofia, o volume que aqui se apresenta consiste numa colectânea de ensaios subordinados ao tema “filosofia como modo de vida”, escritos por alguns dos mais renomados autores do debate anglófono contemporâneo, nomeadamente, John Sellars, Michael Chase, Ian Hunter, Daniele Lorenzini, John Cooper, Martha Nussbaum, Julia Annas, Matthew Sharpe, Martine Béland, Michael Ure, Keith Ansell-Pearson, Tobias Dahlkvist e Arnold I. Davidson.» (da contracapa)

Os ensaios versam sobre metafilosofia (o que pode ser e como pode funcionar a filosofia como modo de vida) e, sobretudo, sobre pensadores bem conhecidos que, de um ou de outro modo, se relacionam com o tema: Pierre Hadot, Michel Foucault, Sócrates, Séneca, Nietzsche, Bergson, Cioran e Primo Levi.

Despeço-me com uma citação de Hadot: «para permanecermos fiéis à inspiração profunda — socrática, poderíamos dizer — da filosofia, seria preciso propormos uma nova ética do discurso filosófico, através da qual ele renunciaria a tomar-se a si próprio como fim em si mesmo ou, pior ainda, como meio de ostentação da eloquência do filósofo, tornando-se antes um meio de autossuperação e acesso ao plano da razão universal e da abertura aos outros.» (p. 31 / La philosophie comme manière de vivre, pp. 102-103)