Dois poemas de Salvatore Quasimodo

Giuseppe Migneco, Paesaggio di Castelmola, 1951

DOIS POEMAS DE ACQUE E TERRE (1930) DE SALVATORE QUASIMODO
Tradução de Tatiana Faia

VENTO EM TINDARI

Tindari, mansa te sei
entre amplas colinas suspensa sobre as águas
das ilhas doces do deus,
hoje atacas-me
e vens afundar-te no meu coração. 

Escalo picos aéreos precipícios
imerso no vento dos pinheiros,
e a companhia que ligeira me acompanha
afasta-se no ar
onda de sons e amor,
e tu prendes-me
daí tracei eu o meu mal
com medos de sombras e silêncios,
refúgios de doçuras outrora assíduas
e morte da alma.  

Desconhecida para ti a terra
onde a cada dia me afogo
e onde secretas sílabas nutro:
outra luz te desfolha ao alto nas janelas
na tua veste noturna,
e há uma alegria que não é minha
no teu peito. 

Áspero é o exílio,
e a minha busca de harmonia que era
para se encerrar em ti hoje muda-se
num medo precoce de morrer;
e cada amor é tela da tristeza,
silencioso passo no escuro
onde me deixaste
pão amargo para repartir. 

Tindari torna serena;
suave amigo que me desperta
que me puxa
para o céu a partir de um penhasco
e eu finjo medo para quem não sabe
que vento profundo me procurou.

  

ANTIGO INVERNO

Desejo das tuas mãos claras
na penumbra da chama;
sabiam a carvalho e rosas;
a morte. Antigo inverno. 

Procuravam milho os pássaros
e subitamente fizeram-se neve;
assim as palavras.
Um pouco de sol, um halo de anjo,
depois a neblina; e as árvores,
e nós rarefeitos na manhã.

Casas e regressos - Yiorgos Seferis e Salvatore Quasimodo

Nikos Hadjikyriakos-Ghika, Pinheiros em Poros, 1949 Nota: Poros é a ilha onde estava naufragado o barco “O Tordo,” afundado durante a Segunda Guerra Mundial, que dá título a este ciclo de poemas de Seferis, de onde se traduziu este poema. Este quadr…

Nikos Hadjikyriakos-Ghika, Pinheiros em Poros, 1949

Nota: Poros é a ilha onde estava naufragado o barco “O Tordo,” afundado durante a Segunda Guerra Mundial, que dá título a este ciclo de poemas de Seferis, de onde se traduziu este poema. Este quadro e o poema são quase contemporâneos.

Tradução do grego e do italiano (respectivamente)
de Tatiana Faia

A casa junto ao mar

Yiorgos Seferis

 

 

As casas que tive tiraram-mas. Aconteceu
que eram desafortunados os tempos. Guerras exílios expatriados;
às vezes o caçador acerta nas aves migratórias
às vezes não acerta; caçar
era bom no meu tempo, levou muitos o chumbo;
os outros andam às voltas ou enlouquecem nos abrigos. 

Não me venhas falar do rouxinol ou da cotovia
nem da pequenina lavadisca
que na luz traça a soma com a cauda;
não sei muito sobre casas
percebo que têm a sua própria natureza, nada mais.
Novas no princípio, como crianças de colo
que brincam nos jardins com as franjas do sol,
bordam coloridas persianas e as mais luminosas
portas durante o dia.
Quando o arquitecto acaba, elas mudam,
franzem-se ou sorriem ou enchem-se de ressentimento
por quem ficou por quem partiu
por outros que voltariam se pudessem
ou pelos que desapareceram, agora que o mundo
se tornou um interminável hotel. 

Não sei muito sobre casas
recordo a sua alegria e a sua mágoa
às vezes, quando me é dado parar;
às vezes ainda, junto ao mar, em quartos despidos
com uma cama de ferro apenas e nada de meu
observando a tardia aranha, cismo
que alguém se prepara para chegar, que o adornam
de brancas e negras vestes e joias de variadas cores
e à sua volta veneráveis senhoras conversam com vagar
cabelos cinzentos e xailes de renda escura,
que ele se prepara para vir e despedir-se de mim
ou que uma mulher, pestanas tremendo, fina cintura,
regressada dos portos do sul
Esmirna Rodes Siracusa Alexandria
de cidades fechadas como persianas a escaldar,
com os seus aromas de frutos dourados e ervas,
sobe as escadas sem ver
os que adormeceram debaixo dos degraus. 

Sabes as casas ressentem-se facilmente, quando as despes.

 

De O Tordo, Parte I, 1947

 

Os regressos

 

Salvatore Quasimodo

 

Piazza Navona, de noite, deitado de costas
nos bancos em busca de paz,
e os olhos traçando retas e volutas em espiral
uniam as estrelas,
as mesmas que seguia quando menino
estendido sobre os seixos em Platani
silabando ao escuro as preces. 

Debaixo da cabeça cruzava as mãos
e recordava os regressos:
odor de fruta a secar nos varais,
goivo, gengibre, lavanda;
quando pensava em ler-te, mas devagar,
(eu a ti, mamã, num ângulo na sombra)
a parábola do pródigo,
que me seguia sempre nos silêncios
como um ritmo se abre a cada passo
sem querer.  

Mas aos mortos não é dado voltar,
não há tempo nem sequer para a mãe
quando a estrada chama;
e eu partia outra vez, trancado na noite
como a quem de madrugada dá medo ficar.  

E a estrada dava-me canções,
que são de bagos que crescem nas espigas,
de flores que embranquecem as oliveiras
entre o azul do linho e os narcisos;
ressonâncias nos redemoinhos de pó,
cantilenas de homens e estrépito de atrelados
com as lanternas que oscilam escassas
e têm apenas a claridade do vaga-lume.

 

De Águas e Terras, 1930  

Caderno 2

Amadeu Baptista | Andreia C. Faria | Catarina Santiago Costa | César Rina | Daniel Francoy | Dirceu Villa | Duarte D. Braga | Emanuel Amorim | Fernando Guerreiro | Isabel Milhanas Machado | João Miguel Henriques | João Moita | José Manuel Teixeira da Silva | Luís Ene | Manuel A. Domingos | Miguel Cardoso | Nuno Brito | Patrícia Lino | Paulo Kellerman | Paulo Rodrigues Ferreira | Raquel Nobre Guerra | Rui Almeida | Samuel Filipe | Tatiana Faia | Victor Gonçalves | Victor Heringer | György Petri / João Miguel Henriques et al (trad.) | Nick Laird / Hugo Pinto Santos (trad.) | Salvatore Quasimodo / João Barcelos Coles (trad.) | Cassandra Jordão

Capa: João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, Junho de 2014, 124 pp.

6€

Uma versão impressa deste livro pode ser comprada na Fyodor Books ou enviando-nos a sua encomenda para enfermariaseis@gmail.com.

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Salvatore Quasimodo, AUSCHWITZ

Lá em baixo, em Auschwitz, longe do Vístola,
amor, ao longo da planície nórdica,
num campo de morte: fria, fúnebre,
a chuva na ferrugem dos postes
e os enredos de ferro dos recintos:
e não há árvore ou pássaros no ar cinzento
ou acima do nosso pensamento, mas inércia
e dor que a memória deixa
ao seu silêncio sem ironia ou ira.

Tu não queres elegias, idílios: só
razões da nossa sorte, aqui,
tu, branda aos contrastes da mente,
incerta a uma presença
clara da vida. E a vida está aqui,
em cada não que parece uma certeza:
aqui escutaremos chorar o anjo o monstro
as nossas horas futuras
badalar o além, que é aqui, em eterno
e em movimento, não numa imagem
de sonhos, de possível piedade.
E aqui as metamorfoses, aqui os mitos.
Sem nome de símbolos ou de um deus,
são crónica, lugares da terra,
são Auschwitz, amor. Como de súbito
se esfumou em sombra
o querido corpo de Alfeu e de Aretusa!

Daquele inferno aberto por uma inscrição
branca: «O trabalho vos libertará»
saiu o fumo contínuo
de centos de mulheres empurradas fora
dos canis ao amanhecer contra o muro
do tiro ao alvo ou sufocadas gritando
misericórdia à água com a boca
de esqueleto sob os chuveiros a gás.
Encontrá-las-ás tu, soldado, na tua
história em formas de rios, de animais,
ou és também tu cinzas de Auschwitz,
medalha de silêncio?
Ficam longas tranças fechadas em urnas
de vidro ainda cerradas por amuletos
e infinitas sombras de pequenos sapatos
e de xales de hebreus: são relíquias
de um tempo de sageza, de sapiência
do homem que se faz medida de pelas armas,
são os mitos, as nossas metamorfoses.

Nas planícies onde amor e pranto
apodreceram e piedade, debaixo da chuva,
lá em baixo, pulsava um não dentro de nós,
um não à morte, morta em Auschwitz,
para não repetir, daquela cova
de cinzas, a morte.

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Salvatore Quasimodo, À NOVA LUA

No princípio Deus criou o céu
e a terra, depois no seu exacto
dia pôs os luminares no céu
e ao sétimo dia descansou.

Após mil milhões de anos o homem,
feito à sua imagem e semelhança,
sem nunca descansar, com a sua
inteligência laica,
sem temor, no céu sereno
de uma noite de Outubro
pôs outros luminares iguais
àqueles que giravam
desde a criação do mundo. Amen.

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