Para quando parar de sentir

Ler a filosofia estoica sabe-me tantas vezes a regressar à aldeia e à paragem de autocarro que, em finais dos anos noventa, nos servia de baliza. Chutávamos e lá aparecia um velhote a dizer ganha juízo, tem paciência, rapaz, não há mal que dure sempre, sofrer também acaba, e não se acabava o sofrer, era mais como um novelo que eternamente desenrolava, um novelo a crescer, a arribar à vida adulta, a prometer prosseguir até à cova, e o senhor Grosa a ensinar que aquela faca a rasgar o peito de cima a baixo desapareceria, e nós, miúdos de ninguém, a partir vidros de escola à pedrada, a tentar morrer no rio, a perseguir o sol nas nossas bicicletas pasteleira. O que ambicionávamos era rir como os outros, não ser humilhados em casa, ter uma vida boa, mas essa vida boa não existia, não podia ser, ainda não sei porquê, diziam que tomar banho era para quem trabalhava, e que para trabalhar existia o senhor Armando das obras a contratar, diziam também que não se estudava, que não se tinha direito a mais do que àquilo que a natureza oferecia, o vento, as trovoadas, a caça aos coelhos, casar, engordar, morrer, viver em paz, não questionar, sentar ao colo do senhor prior e comer croissants de chocolate para tratar dores de dentes. Não me lembro de se ter chorado por muitos mortos no campo. O Joel, um projecto de James Dean labrego de motorizada, morreu doente e suscitou clamor, peregrinações, bebedeiras, mas não era sentido como razoável chorar, a Carolina morria e estava morta, a Clementina morria e era preciso respeitar o rumo da natureza, ser racional, mesmo que fosse tia, avó, deixa a Clementina descansar, era velha, tinha vivido muito, estava na hora, e morresse quando morresse, a hora era sempre considerada a ideal, nem mais, nem menos, a hora que deus escolhera. Epicuro diz algo parecido sobre a morte de uma criança: para quê chorar se a morte da menina apenas adiantou um fim que para todos é conhecido? Não entendíamos nada, não nos podíamos visitar uns aos outros, um fazia anos e não festejava, o outro apanhava febre e ninguém o visitava, eu tive um acidente de automóvel e não houve um afecto, sempre esta contenção, esta espera, de tanto conter a dor, nem conseguíamos chorar quando a dor chegava, não éramos estoicos, longe disso, as olheiras de uns e de outros eram como o algodão que não engana. Tempos de tanta aflição, aqueles, estes, penso em nós, em mim, como é custoso agir como um estoico quando fomos privados de exteriorizar emoções intensas e nos preparámos para tempestades e para celebrações com a mesma cara apática, sofrida, e o mais extravagante que se podia fazer era permanecer na rua às patadas a uma bola, a partilhar histórias de masturbação, a sonhar com uma carreira de jogador federado num clube de província. 

Quatro poemas de Ismar Tirelli Neto

Os irreconhecíveis

Continuam imóveis, fortificações      
um horizonte espartilhado
Nos poemas, descubro, cai-se ainda do mar
não é tão difícil
quanto se imaginava
                        extraviar-se de alguém
Nesta sebenta província,         o mundo
Perfilado sem falha
No baço das vidraças
(Cai-se ainda do mar)
Com gorda artilharia de gestos, agravamentos
Montes sem relíquia
Acostando-se às estradas
E o desejo
A deformar todas as cidades
Naquela em que nasci

Método

Aos domingos havia tempo para os poemas
o tempo vem se portando bem? pergunta
Ata de cada lentidão
Cada pachorra entre os tempos
Sorrisos do dia laboral
Uma ou outra
Observação rotineira devidamente
Radioscopada
Ocasiões em que se vira tentado
a espalmar-se todo sobre os muros
tentado a leituras
menos vagas talvez
o acaso está já vestido, alimentado? pergunta
as contrafações em dia?
a imagem – saciada?

Cada interpolação entre casa e trabalho
Cômputo de calos
Parques descritos com tambor e fechadura
Mas aos domingos era possível tirar a cera aos ouvidos
Para toarem galantes os muros
O passado dava e sobejava

O Mundo Moral

                        para a Fernanda Mira Barros

Os poemas ficaram pequenos
Não saem muito de perto do fogão
Lá dentro ocidente e oriente

Abreviaram-se também os companheiros
Já não perfazem
Os dedos de uma mão
Mostram-se perplexos
Com tanta retilineidade
Os termos: ocidente, oriente           

Encurtaram os poemas
Ainda assim vão maiores um pouco
Que esta cozinha, esta casa
Maiores uns dedos

Os Nublamentos

Ao dispor de versos
tenho cada vez mais a impressão
de tirar do armário certo
paletó que só costumo usar em funerais.
Trajo para ocasiões graves.
Não pude impedir o verso de tornar-se
com o passar dos anos
ocasião das mais graves.
Com estas mãos não me foi dado
maleá-lo.
Quer-me parecer que
agora, ao escrever um poema, devo
forçosamente, de par
com o poema,
enunciar que o escrevo,
como se lhe faltasse certa medida
de evidência.
                        Àquela mulher
(mal me conhecia e súbito
falava por todos)
não faltava evidência.
Há obra de dois anos, vejam, veio ter comigo
após uma récita.
Disse-me que eu era poeta tolerável, mas
péssima pessoa.
A princípio, fiquei um bocado ofendido.
Senti vagamente que precisava
defender minha honra,
provar para aquela mulher
que ela estava enganada – que eu
era um tipo admitidamente leviano, sim,
mas incapaz de fazer mal a uma mosca.
Em mais de uma ocasião pretendi
discorrer sobre a alegria do engano,
sobre a possibilidade de enganar-se com alegria,
sobre
                        À alegria, vejam,
não falta evidência.
Paletó escuro, talhe inteiramente
a propósito.
Que sabe esta mulher do meu passado?
remoía.
Quando voltou as costas e encaminhou-se
às portas do cemitério,
que longínqua ofensa
remoía?
Por outro lado, valeu-me à grande pensar nos
poemas. Enrijecem. E depois
é o desfazimento.
Há quem pense que só passam a existir
maximamente
quando o poeta, impossibilitado enfim
de opor-se,
perde toda e qualquer evidência, ocasião
de perguntar a alguém
a que horas começa a cerimônia
com que paletó devo ir

com que
paciência com que paciência
esperamos por isso

Maio Revisitado

2002, fado das noites

de segunda-feira: dirigir

até a vídeo-locadora

para restituir os filmes

do final de semana.

Então sentia nos ossos

um prolongamento do estio.

Tinha os olhos embotados

como se alguém lhes soprasse

algo da poeira clara

dos jasmins macerados

e algo da eletricidade suja

da cidade, de seus prédios

brancos como intactos fósseis

de baleia no areal reencontrado.

 

Mirava a luz em torvelinho

nos alto dos postes: neblina

fina, amarela, granulada.

Respirava a desolação

acre das sarjetas:

em meio ao barro que secava

amontado de folhas castanhas,

restos de comida,

cigarros tragados e esmagados

por solas de sapatos

e ainda assim a cidade

esgotada era o meu amor.

 

Da juventude, remanesce

esse sentimento noturno.

Todavia, entre ontem e hoje,

um cais naufragou e não

os barcos que dele partiram.

Conheço apenas a deriva

e há muito deixei de crer.

Não acredito em minhas mãos.

Não acredito em meus amigos.

Não acredito na poesia

como algo que me transcende.

É, antes, a ressonância

da dor que me foi legada

por caber em meu próprio corpo.

 

No entanto, sei.

Maio também é um mês de repetições

e a verdade de suas noites

é caminhar sempre no mesmo jardim.

Idêntica, a relva massacrada. Idêntica

a cor do luar, cobre encardido,

e os ventos dispersos em grãos

de areia negra, poeira de carvão

contra o rosto, contra

uma vaga idéia de abandono,

desamparo, tédio. Idêntica

essa excitação nos ares

que me faz rosnar.

Tenho o coração aguilhoado

e quase me revejo

na noite passa diante de mim:

um espelho de água podre,

um cicio áspero de ramos

quando venta mais forte,

uma luz mortiça no interior

de uma casa em ruínas,

uma estátua na praça

recoberta de lodo e passado,

um fracasso diante de um poema

que exige algo como a fúria

exata e ideal.

 

Mas qual a fúria exata e ideal?

A fúria de ontem, que mantenho

como uma carta a mim mesmo

que o tempo revelou ridícula?

A fúria de agora, herdeira

de lirismos aleijados?

Ainda é fúria o que tenho

ou seria raiva – surda e subterrânea,

sentimento que mais plenamente

me irmana com os homens.

O que sobrevive, afinal?

Ainda tenho os olhos injetados

de poeira e eletricidade

e a noite de Maio, se manto for,

é cravejada de luzes duras

dos faróis dos carros e é

gelada como uma mancha de bolor

na parede do quarto.

 

Luz fuligem ferro carne

no acelerador de partículas

que estrangula a cidade.

Clarão imantado

sou eu próprio a comunhão

que renego, os olhos recobertos

por uma cicatriz de sal

e a língua ferida

por palavras tóxicas.

O céu se dilui em vapores róseos

e a noite é sujeira estática

como há dez anos

e como há dois mil anos.

Dentro de meu coração, grito

para uma fome dispersa em si mesma.

O amor, com a sua magreza de fantasma,

atravessa ossos e tecidos,

chega até a carne, marca o seu sinal,

e no desespero conflui

sonambulismo e insônia.