O fogo do verso

À hora em que se lava o chão dos talhos
da bílis que sobra da morte
e no céu se rasgam dores
a que as estrelas hão-de dar cautério, penso
na melancólica carne que despes
diante de mim como um fato de tumulto
Penso na tua pele vertida e no brilho
inverso, nas cores que desbotam
nas montras como alguma
há muito tempo exposta
natureza-morta

Sei que amar-te tem que ver com isto:
O camião atravessando à noite a auto-estrada
com os lívidos espíritos de porcos
que se precipitam na cinta das cidades
A polpa triste de um beijo
a acender o coração, cansado
de ser metáfora

Amar-te tem que ver com esta imagem mansa
do terror, contemplada
à distância e a alguma velocidade. Aproxima-se
da desolação da prosa e não,
como se salvaria o mundo, do fogo do verso

Pequena arte de amar

1.

Se alguém, na idade em que se encontra, desconhece a arte de amar, não vá ao médico. O médico fará incidir sobre o seu corpo solteiro e despido da cintura para cima o olhar de quem não ama os poetas, mas a seu tempo os leu, para verificar a universalidade de sensações e eventos fisiológicos. O médico não despreza o diagnóstico da poesia para males sem nome ou gestação. Vir-lhe-á à lembrança o dístico

A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.,

a perturbadora ilusão de contacto que os elementos naturais e alguns objectos concedem às pessoas solitárias. O médico perguntar-te-á se alguma vez sais de casa, se sais à noite, e tu dirás: Caminho com o vento no rosto. Essa impressão de toque é essencial, gentil e áspera, um equilíbrio natural de impulsos que sossega, que comove até.
E, enquanto escuta o lasso tumulto do teu coração, o médico pensará que tem diante de si uma pessoa solitária. Que és culpada da tua solidão – de outro modo não te queixarias dela. Terá piedade de ti e recomendar-te-á que optes pelo duche rápido no polibã, por oposição ao erótico e meditativo banho de imersão.

*

Se for irreprimível o desejo de contacto, fuma um cigarro ou procura um salão de beleza, um cabeleireiro de bairro onde te lavem a cabeça. As massagens no couro cabeludo são um excelente bálsamo contra a angústia e contra a solidão. São geralmente hábeis as moças que lavam cabelos, quando afinal apenas queremos que nos toquem habilmente, que a velha e ferrugenta fechadura em nós se abra com um único som estremunhado (essa rotação tão íntima, perguntaria o médico, é difícil ao teu corpo reconhecê-la?).
É-se muitas vezes surpreendida pelas mãos másculas da moça que nos lava os cabelos. Confiamos nos gestos lisos e impessoais. Entregamo-nos com alegria e desdém, como não nos entregaríamos a nenhum amante. E, como depois do amor, fechamos os olhos e caímos na antecâmara do sono. O mundo é um lento céu sem nuvens, gira como um carrossel vazio, máquina nova e por estrear, com as suas formas muito argutas e recortadas que se oferecem ao nosso desejo; um carrossel vazio e contemplado sem ciúme ou cobiça, porque existe para nós apenas e ninguém o montará, aos seus cavalos e cisnes. Para nós existe o seu aprumo, o seu fulgor. Por nós roda eternamente e vaza a pachorrenta melodia. E o nosso desejo, liberto de avidez, não é dor, não sofre humilhação.

*

Penso no desejo como um homem incapacitado contemplando os girassóis. Penso no desejo como um homem prostrado na sua cadeira de rodas – um animal mitológico contemplando os girassóis. Um homem que se compromete solitariamente, por capricho, ao comprar os girassóis e, numa banca de artesanato mesmo ali ao lado, um anel muito simples, nem sequer de prata. Esse anel impende melancolicamente sobre todos os seus gestos. É a prova de um matrimónio de que o tempo e o hábito se encarregaram das cerimónias, mas lhe não trouxeram o par.

The other fervor leaves us
at risk, in love, and alone.
Married sometimes forever.

O homem sozinho e aleijado lê poesia, nisso consiste parte do hábito e da intimidade. Anoitece no vidro da janela do comboio. Os lábios próximos do vidro, a respiração acre de muitas horas sem comer ou beber – um homem sozinho esquece-se de comer, parece-lhe indigno comer, e fá-lo apenas em casa, apenas quando necessário.
Lá fora, nos campos por onde o caminho-de-ferro abre passagem, ele vê as chaminés das fábricas e as bocas de rega, os ribeiros, as pontes, os cabos de alta tensão. A própria cadeira de rodas, de onde se ergue já sozinho para sentar-se no lugar de passageiro que lhe está reservado, e que dobra para não atravancar o corredor de passagem – há em tudo uma inegável simetria. O homem nada pode contra a existência solidária das coisas. Nada pode contra a plenitude de uma peça que se encaixa noutra peça, nada pode contra a arquitectura, contra a engenharia, contra as asas das borboletas, contra o próprio rosto dos homens e dos animais. Contra as preferências do mundo, este homem sabe que tem de render-se.
Lá fora a noite caiu bruscamente – é Inverno – e assim, com os óculos de ler – porque tenta ler durante as viagens de comboio, mas acaba sempre por distrair-se a olhar pela janela – e os girassóis abraçados ao peito, parece outra pessoa. Sobressalta-se – estão há tantas horas com os rostos juntos e calados que o homem sente que começa a desejá-lo, a esse outro que o olha a partir do vidro.
O desejo e a menor arte são filhos do homem incapacitado que contempla os girassóis, e o flanco da mulher nasce quando o homem abre a mão e reconhece nela o golpe que ergue o antúrio. Ah, o desejo é uma colagem: cuspinhar anjos em papel pardo, enfiar mãos nos bolsos, apalpar discretamente o forro dos vestidos, analogia vã da seda dos gatos que amámos na infância e dos quais aos rapazes, às actrizes que sorriem nas revistas, rasgamos os olhos pela semelhança, a macilenta dor que investigamos sem que se descubra a imperfeição da causa.

*

Falava então da grande vantagem de usar os cabelos longos. Se te sentes só e carente deixa que te cresçam os cabelos, para que te comovam os movimentos de avanço e recuo da moça que tos lava. Se estiveres de bom humor, encontrarás nestes movimentos o consolo de um equívoco jogo de sedução.
Deixa derramarem-se nas mãos da rapariga os teus longos cabelos molhados. Ela apartar-te-á da boca os fios soltos, unindo-os num feixe como se se preparasse para o galope. Os teus lábios começarão a pulsar. Alguém respira perto de ti. Tu inspiras o ar que ela sobre ti expira e prendes nos pulmões o monóxido desse estranho beijo, devolves-lho para recebê-lo mais quente, ardente, saturado, até ao desmaio. Procurarás ocultar da rapariga o desejo que afinal não sentes (a verdade é que estás só um pouco carente), mas ela pousa a sombra da sua atenção sobre a tua garganta arqueada com a silenciosa persistência de uma Hallelujah.
Ainda que a moça que te lava o cabelo nos fundos de um salão de bairro demonstre a ordinária compaixão das moças que lavam cabelos e dos médicos, ainda que tagarele um pouco, em todo o caso mais alegremente que o médico, ela vai deixar-te comovida, confusa, rubra de um pudor inesperado. Partirás convicta de que um prazer novo e ilícito teve ali lugar, como o de duas meninas que brincam juntas no pomar e provam as primeiras carícias. Sobretudo se és mulher de rosto limpo ou rapaz que sonha com o amor cortês, se não sabes o que é o amor e há muito que andas à procura dele, é também possível que partas mais confusa e desesperada do que quando entraste.

*

Regressas a casa a pé. Caminhar imprime o justo ritmo aos pensamentos. Enquanto caminhas rememoras a ocasião mais pura e já petrificada da tua existência. Consegues senti-la ainda como uma promessa, como uma aventura. Essa ocasião é o amor, e ainda não aconteceu.
Chegas ao apartamento quando a noite já caiu, não porque sintas tal prazer ao caminhar que percas a noção das horas – o prazer está-te interdito, o prazer nunca te foi mais do que uma irritação – mas porque é Inverno e o Inverno, como um mover de ancas mais brusco, como um mal calculado lance de sedução, traz a cada dia prematuramente a noite e a tristeza.
Preparas o que comer e em seguida deitas-te na banheira cheia de água quente. Parada, escutas os ruídos cristalinos da água. O teu corpo surge acompanhado pela transparência, pela ondulação, pela presença ampliada e distorcida de si mesmo. Algo na carne serena e livre de perigo que é a tua faz pensar em mutilações antigas, em cicatrizes brancas. A ideia é disparatada ou mesmo obscena, pensas. Vives num tempo sensato, numa cidade segura, rodeada de todos os confortos, e o perigo é para ti uma história tão distante e inofensiva quanto as histórias de ciganos e de monstros que te contavam na infância os teus pais, para te obrigarem a comer. Nunca correste perigo. Não combateste nem desertaste da frente da batalha, nem tão simplesmente, como se o ar, a casa, a mesa e a cama se tivessem tornado insalubres, desapareceste um dia sem deixar rasto. Mas o teu próprio corpo nu e vencido é avistamento tão raro que não podes impedir-te de contemplá-lo. Vives numa cidade pacata, mas é como se o teu corpo regressasse ferido de uma batalha e fosse, como víscera ou borra de café, um oráculo. Quando as feridas cicatrizarem, pensas, quando os cotos sararem e a pele nova tapar a carne como se a emudecesse serás um animal submerso, trazendo aos homens e às mulheres notícias quietas do fundo do mar, já não capazes de esclarecê-los mas de infundir-lhes, pelo medo, outra espécie de prazer.

*

Apercebes-te de que é a encenação do teu corpo perante si mesmo que te leva a ver as feridas, a sofrê-las e a aceitar sem contradição a longevidade que para ele se adivinha.
Não é por isso urgente que descubras o objecto do teu amor. Não terás por certo, desde que os alvores da adolescência tomaram de assalto as tuas coxas, feito mais do que procurá-lo. Julgas tê-lo experimentado sob diversas formas. Mas o amor é dissipação. Se pudesses guardá-lo tempo suficiente para dele fazer prova, não encontrarias prova de coisa alguma. A menos que estendas à janela do teu quarto um lençol tingido de sangue ou de esperma, ninguém fará registo do teu amor. Porque do amor, como de qualquer negócio, há que tirar lucro; mesmo um desgosto ou uma traição, sob certa perspectiva, significam lucro. Menos do que isso nem serve o florescente exercício da confissão entre amigos às primeiras horas da madrugada.

 

2.

Acreditei que rejeitá-lo me faria digna do amor. Acreditava que o amor fosse o vento açoitando o tronco da nossa natureza. Acreditava em Deus – Deus é uma grande tentação para os solitários. Mas que não procure um padre quem procura amar. O padre dir-te-á: “Hás-de amar. É teu dever amar”. E tu não o compreenderás de imediato. Tais palavras não servirão de consolo à tua incapacidade de amar – essa incapacidade tem uma precisão cortante, definitiva, e um sentido inequívoco, o da solidão, de que se regozija o padre, mas não tu.

*

Depois, caminhando pelas zonas altas da cidade, procurando as melhores vistas sobre o rio, espantei-me que não tivessem ainda derrubado os bairros insalubres da encosta para construir condomínios de luxo – quem vivesse dormiria de olhos limpos pelo rio e de costas para a pobreza da cidade. É por causa dos aluimentos, pensei. Chove muito e o terreno é instável. No Inverno há sempre notícias de derrocadas e de gente soterrada. Pensei que o amor não seria a criação de um espaço mas o afundamento do que existe já. Que o amor é um acidente, a terra dobrada, a supressão do lugar.

*


“Prosterna-te”, dizia o padre, “esse é já um estilo de amar. E tu hás-de amar. É teu dever amar”. E eu pedi a Deus que me mostrasse o amor frugal ao próximo, o amor do filho pela casa, do cordeiro pela lâmina. Mas pensava no conhecimento cruel que cada amigo tem do seu amigo. Pensava nos dedos ásperos e deformados do meu amante, nas varizes da minha mãe, no suor enegrecido pela fuligem das fábricas nas camisas do meu pai. Pensava nos operários de todo o mundo regressando a casa de camioneta ao fim do dia. Pensava no hálito forte deste homem, na verruga no rosto daquela mulher, na fácil e traiçoeira compaixão que se sente às vezes por um desconhecido.
Tinha dito o padre que o amor é um imperativo. Não uma aptidão, uma faculdade. Nem sequer mencionara a hipótese de uma humilde aprendizagem.
O padre tinha razão. Com o tempo também eu deixei de acreditar no amor que, como uma gramática, se decora, obediente e sereno. Deixei de acreditar na espera e no gosto adquirido. Soube que o amor viria como veio, sem qualquer cedência da minha parte, sem paciência, ou então não viria.

Pavões

1.

Quero poder usar a palavra espírito, disse ela. Quero nomear sem medo a penumbra e a vizinhança da carne. Mesmo que o espírito morra, quero a disciplina indolente e viva, que tanto se confunde com a própria vida, de ter e nutrir um espírito.
Estávamos sentadas no jardim debaixo da ameixoeira, observando os pavões. Observávamo-los com zelo, imóveis, para não lhes causar perturbação. Passávamos as tardes livres no jardim, o próprio terreno dos pavões, o chão que eles debicavam com fastio. Sentava-me ali com ela à sombra da ameixoeira – precisamente o lugar para onde, se numa vida paralela eu nunca a tivesse encontrado, estaria, da janela do meu quarto, a olhar – a fumar e a ouvi-la, e, se os pavões passavam perto, eu não estremecia de prazer nem de repulsa. O golpe de verde e de bronze com que o abrir de asas de um macho surpreenderia até o mais experiente observador não me intrigava – a caprichosa e rarefeita demonstração de beleza da ave deixava de conter sinais de um mundo a que eu não tinha acesso, esse mundo de que antes eu conseguia apenas, aleatoriamente, um cruel vislumbre. A beleza do pavão era normalizada pela beleza dela, da minha amiga, era engolida e explicada pela beleza dela, e já nada tinha que me assombrasse.

*

Não é de menosprezar a influência da beleza nas mais íntimas, meticulosas, em teoria livres decisões que tomamos. Antes de tê-la encontrado, eu espiava os pavões com devoção imperturbável. Observava-os da janela do meu quarto, ao poente, de tal modo que os seus gritos guturais, despudorados como goelas de flores que se abrissem de um só golpe do clima, se conjugaram para sempre na minha imaginação com o cair da noite e com a poeira desolada que um pôr-do-sol deixa a descoberto, como num quarto que se abre ao fim de muito tempo sem luz. Os pavões eram para mim uma provocação, um enigma. De onde lhes vinha a beleza? Não seria do rosto – pequeno, oblongo, ladeado por linhas brancas, como que a indicar à mão o sítio por onde deveria empunhar um objecto na aparência ergonómico como um guarda-chuva. Eram as asas do pavão o seu rosto latente, um rosto sem semelhanças, que nunca chegava a revelar-se; um pano exótico e poeirento que descobríssemos sobre uma mesa, coberto por velharias e quase completamente oculto, e que nos surpreendesse com um padrão trompe l’oeil, para depois nos sossegar por ser apenas um trapo garrido, liso, sem profundidade.

*
Até que ponto eu a tinha escolhido pela beleza, não era exacto. A beleza fazia com que condescendesse com trejeitos, hábitos, atitudes que noutras pessoas me teriam sido intoleráveis. Pequenas traições eram nela sinal de carácter. Se me pedia dinheiro emprestado, eu não lho negava. Se se esquecia dos nossos encontros, eu não via nisso humilhação. A sua amizade prestigiava-me, a sua companhia divertia-me, e eu chegava a acompanhá-la ao cabeleireiro, pelo simples prazer de, sentada atrás da cadeira, poder contemplá-la no espelho.

*

É claro, disse ela, que o espírito deve observância à carne. A beleza da carne é um trabalho do espírito, disse.
A noite caía, inteira, sem aviso, como um bêbedo ou um trabalhador braçal caem num sono impenitente. Ela temia o colapso da sua juventude. Acabará por perdê-la, e sentirá por essa perda a pena que sente a cabeleireira quando uma rapariga lhe pede que corte curtos os seus cabelos longos. Será discreta em relação a essa perda, porque perder a juventude é um pouco como perder a dignidade.
Mas domará a carne com um ardor de mística. Hei-de afinar a minha nudez, disse. A nudez é intemporal, sobrevive à juventude. E eu pensava num daqueles aparelhos de rádio pesados, sensuais, que reuniam as famílias em redor para ouvir as notícias, durante a guerra, um aparelho grande e patético, comovedor. O pai tenta sintonizá-lo, ao rádio, de respiração suspensa – é uma arte um pouco solene. Hei-de afinar a minha nudez porque a nudez é a penumbra e a vizinhança da carne. A nudez é o mais perto que se há-de chegar do espírito. E eu quero poder usar a palavra espírito, disse. Se a nudez é o instrumento do espírito, quero poder usá-la.

*

Não, não podemos excluir a beleza da equação única de cada acto nosso. A beleza suspende qualquer julgamento de que parecíamos ser capazes. Porque aceitamos o outro – o belo – sem qualquer critério, somos livres. O mesquinho beco de cada pensamento, de cada perspectiva, deixa de tentar-nos. Pela contemplação, pela prolongada convivência com a beleza, tornamo-nos puros, tolos, beatíficos.
Flannery O’Connor, que durante boa parte da sua vida conviveu com pavões, explicava a raridade e arbitrariedade com que o macho, de outro modo deselegante, incerto, como que vagamente insatisfeito consigo próprio, abria o leque da sua cauda. Era pelo menos raro e arbitrário que o fizesse diante de olhos humanos, e a escritora pôde observar nesses encontros inesperados diferentes reacções por parte dos espectadores. Ora uma negra, para quem a miríade de cores do pavão equivalia a um milagre, se ajoelhara no campo a rezar aos céus, ora um camionista, que se limitava a lançar às coxas da ave o mesmo tipo de comentário grosseiro que lançaria às coxas de uma rapariga.
Eu podia explicar tais reacções antipódicas. Eu própria vivia entre o susto e a indiferença.

 

*

Estávamos sentadas debaixo da ameixoeira, pressentindo, nos gritos crepusculares dos pavões, as dores vindouras da carne, quando na penumbra irrompeu dela o riso largo: se eu me deitasse contigo, disse ela, seria com desdém, sem esforço, delicadamente. Para não te magoar. Porquê, perguntei. Porque a violência não está na tua natureza, disse ela, não está na tua natureza lutar.
Era Verão. Eu podia sentir-lhe o suor indolente das axilas. Sentada ao seu lado debaixo da ameixoeira que agigantava a promessa de escuridão, eu pensava em mim própria como numa dessas mulheres que temem e adoram os homens de grande força física, porque sabem que nem o amor que tenham por eles os impede de um dia quebrar-lhes os pulsos, de desarticulá-las.
Era Verão e ela encolhia os ombros. A sua nudez crescia e assombrava-a, como um poeta cego ou uma mulher muito bela. Existia em imanência, causa dentro da própria causa.

Peixe-lua

Quando o sol se pôs eu estava a assar o peixe-lua.
Tinha acordado de manhã a pensar no destino que havia de dar ao peixe-lua e no cru instante em que a primeira luz entrou pela janela tomei a decisão. Ia livrar-me dele pelo fogo. Ia assá-lo.
Ao levantar-me, encontrei-o pousado na mesa da cozinha, tal como ali havia sido deixado na noite anterior. Estava cortado a meio de alto a baixo, com a linha de precisão e simetria que apenas a perfeita indiferença da faca poderia ter alcançado. Era um peixe-lua jovem; teria alastrado como um fantasma pelo fundo do oceano, se o tivessem deixado crescer. Ainda assim, o seu corpo aberto em dois ocupava toda a extensão da mesa da cozinha, deixando de fora, suspensas do tampo de madeira, a cauda e a carantonha duplicadas, o sangue pingando nas lajes do chão.
O céu da manhã estava baço e mortiço, estagnado. Preparei o fogareiro no quintal e deixei que a leve brisa que corria entre as árvores acicatasse as brasas. Eu sabia que um peixe-lua não é comestível. Ninguém, que não a faca, sentira alguma vez desejo de prová-lo. Enquanto as brasas se acendiam, pus-me a olhá-lo pela janela da cozinha. Ali estava ele: murcho e aberto, metade do corpo com as entranhas para cima como uma cabeça de medusa, a outra metade recatada, apenas a carcaça visível, recamada ainda das cintilações azuis e loiras que lhe pusera o mar.
A lua cheia desta noite será a maior do ano, rezavam as notícias de há dois dias atrás. E o peixe-lua, após anos de mergulhos profundos, tinha vindo à superfície do oceano. Tinha-se deitado de lado a flutuar para aquecer-se na maré tocada pelo luar. Assim deitado, o peixe-lua sonhava com a faca, a lâmina correndo até ele ao longo de toda a margem do rio. A faca roçava-se nas pedras como se sentisse saudades de outra coisa indizível. Como se o mar ao longe a mordesse, a faca andou toda a noite até dar com o peixe-lua que se banhava à luz da lua. O animal, raiz ou sombra, recebeu-a com a alegria inexplicável de quem acolhe o golpe e deixou-se abrir a meio, de tal forma que, quando o encontrei de manhã, se diria haver amor na lâmina.
Ao vê-lo, o meu corpo tingiu-se da tristeza daquele corpo opaco e indolor, insolente na serena inocência com que se deixara matar e mutilar, e com que agora dormia, violado, exposto, na penumbra da cozinha, confiante de que a lua cheia continuava a banhá-lo. Reconhecia, sem saber de onde, o gesto impessoal de amor que quebrasse e contornasse os meus ossos, que cindisse em silêncio a minha carne sôfrega.
Entrei na cozinha e com as mãos nuas arranquei pedaços da carne do peixe-lua. Afundei os dedos na polpa mole e repisada das suas entranhas. Era diferente de tocar algum homem ou animal terreno. Era carne intangível, oca, desassombrada como um balão que se desprende das mãos de uma criança. A carne abundava, era suficiente para um imenso banquete, e eu estava sozinha, vivia sozinha na casa e não havia ninguém que eu pudesse chamar para comer comigo. Mas, no momento em que as brasas tocaram as pontas da carne no fogareiro, os cães dos quintais vizinhos começaram a uivar.
Assim, todo o dia retalhei o peixe-lua e arrumei a carne nas brasas com a paciência de um estivador. Parti os ossos e lancei-os como aperitivo aos cães. Depois, lancei-lhes também a carne ainda em brasa, e os olhos, grandes e inertes, parados como se nunca se tivessem fechado, como se nunca tivessem estado tão vivos que pudessem agora estar mortos, arranquei-lhos da cara com a ponta da faca e lancei-os também aos cães.
Quando o sol se pôs eu estava ainda a assar o peixe-lua. Mas os cães calavam-se, e pesava-me a solidão. Tinha nos membros o torpor da faca como um presente, uma ameaça. Tinha o corpo tomado desse rigor que abrira o peixe-lua, de tal forma que, mesmo sem já quase sobrar vestígio dele, se podia voltar a uni-lo na imaginação sem que o golpe fosse notado.