Auto Retrato de uma Vegetariana no Reflexo da Faca da Minha Avó

Costumavas segurar-lhes as cabeças até a cobardia tomar conta de ti.

O olho do galo reflecte o sol campestre:
como oráculo, a pupila descansada
adivinha o que virá a seguir;
os teus modos infantis não conseguiam compreender
as ondas de calma que banham o corpo de um pária moribundo. Tu

procuras os suaves pontos da carne suculenta
enquanto a tua avó testa a lâmina da faca
com as mesmas mãos que entrançam o teu cabelo âmbar;
os teus modos infantis não conseguiam compreender
a mudança entre cuidar, matar e cuidar de novo. Feita

de penas macias, a pele da besta é mais quente
do que qualquer amante que alguma vez terás.
Digo: que alguma vez te teve.

Esta é a razão para os meus anos de jejum,
para me recusar a mastigar e comer a carne
dos rapazes que quebram como ossos da sorte. 

I’ll Be Your Mirror

I'll be your mirror
Reflect what you are
In case you don't know (...)

The light on your door to show that you're home.

- The Velvet Underground

 

 

Seguro o cinzeiro deixado para trás
por um antigo inquilino do meu corpo
e sobreponho queimaduras maiores
aos pequenos círculos de espectro
- este é o meu território.
A luz da loja de antiguidades
invade este meu quarto vazio,
ilumina a lembrança;
atraio-me facilmente pela oferta
de memórias em segunda mão
em forma de objeto barato.
Canto silenciosamente sob a voz da Nico,
o círculo negro roda,
não sai do lugar.
O carrossel pára,
as vozes calam-se,
viro para o lado B da memória.

Espero que ainda te lembres disto:
fomos juntas remexer os passados dos outros
com dedos pesados e cinzentos,
uma patina de pó do tempo.

(Ainda o tens em casa?
Imagino-te mal-acordada
a rever a noite anterior
na sua superfície cansada.)

Devia ter percebido a deixa:
descobres o espelho entre uma memória e outra,
no seu reverso um fio gasto mas
carinhosamente retorcido, reforçado
reformado, o homem da loja vende-to por uma nota.
Carregas o espelho até casa na mão.
A tua face visita-o,
desaparece
para dar lugar ao céu
depois ao chão
(estico o pescoço para me ver a ver-te).
Breve jeito de mão,
torces a prata,
capturas o sol:
farol quebrado que só aponta,
em frente, em frente.

 

[Ver perfil de Ana Carvalho]

Rotina Matinal

Imito a estrela de rock de Nova Iorque:
cópia a preto e branco,
a5, 300g, grão fino
colada no canto do espelho.

Visto a camisa branca,
aquela que nunca me serviu
larga nos ombros estreitos e o bolso vazio
sobre o coração pesado

ou inverto a ordem secreta das palavras

e visto as calças pretas
cheias de dobras
como a face
do dramaturgo irlandês

ou inverto a ordem secreta das rotinas

e calço os sapatos em primeiro lugar
tal como eles fazem na peça
antes de agarrem a corda
que irá enfeitar o fino pescoço

ou inverto a ordem secreta das ações

e não espero, espero, espero
nem ato a corda:
não há árvore alguma por perto
onde pendurar este baloiço