Alone together

Rousseau sonhou a distância, a solidão,
para acabar com o mal que nos fazemos;
e, em certos reinos, pôs-se o sonho em prática
dum modo incrível que ainda admite o toque.

Vivi uns dias numa terra alta
onde as pessoas, juntas, estavam longe;
notava-se isso nas flexões da voz,
nos gestos e no preço do café.

Vi lá passar amantes enlaçados
com dois alpes nevados entre as almas;
senti calor humano ao ser roubado
por um bandido que imigrara há pouco.

Nunca pensei que a ideia alastrasse.
Mas sim, cá vamos seguindo Jean-Jacques
para nosso bem, para acabar com o mal.
Chamou-se a morte para impor respeito.

E o respeito reina sobre o mundo,
enquanto o amor espera paciente.
Seremos ilhas? Há pouco, no cais,
vi uma gaivota a bocejar de tédio.

28/03/2020

Quatro a começar com S

I

é nos dias de chuva
que penso mais em ti
o calor
muito sol
tempo de praia
deixavam-te impaciente
– clima para infiéis
dizias

com o frio era pior
ficavas quieta
e um pouco mais pequena

e depois vinha a chuva

era a altura das árvores incharem
os montes que se viam da janela
pareciam dromedários a dormir

e então tu querias ver
o teu perfil
ficava encastoado na vidraça
atento ao gotejar no parapeito
ao horizonte
a esfumar-se em teu bafo
e assim
permanecias
vais ficando
uma orla marejada
e um rol de coisas
vindas
à memória

Três melómanos

Às três e meia da madrugada
na Rua da Bica de Duarte Belo
três melómanos discutem música e metafísica.
Já tanta cerveja foi tragada
que nem sempre é rigoroso
um ou outro elo

no encadeamento lógico do discurso.

«A música é
a cara chapada da divindade.
(Não há melhor maneiro de o pôr!)
Ainda ontem, a ouvir Gang of Four,
num segundo me ocorreu o postulado.
Aquela sensação de
eu conheço o sujeito de algum lado

A cara chapada da divindade.»

A segunda respondeu:
«Tu devias ter mais tino.
A ser a música de Deus alguma coisa
não será a cara mas o intestino,
órgão que absorve
elementos de si simples
— ritmo harmonia silêncio histerias —
e os transforma em intrincada energia

que nos aquece,
nos alumia,
nos agarra pela gola.
É um pouco o que sucede com o Piazzolla.

Não a cara mas o intestino.»

E o terceiro:
«Não é bem assim.
A música é é o labirinto que
Deus tece sem fim

pra passear e se perder pra sempre,
para inventar câmaras e antecâmaras
e corredores e novos pátios
e escadarias que dão para certas matas.

Não me surpreende
que vocês isto não alcancem, vocês
que continuam presos ao ardil
do CD. São
coisas que só se entendem em vinil.

Pra passear e se perder pra sempre.»

Passou um gato com um guizo. O guizo
tilintou duas vezes, calou-se,
tilintou a derradeira,
o gato foi-se.

Deixou uma saudade
de som de guizo de gato
reverberando pela
Rua da Bica de Duarte Belo
acima e abaixo.

E acabou a conversa.

Porque
a música é o remoinho que engole a própria metafísica.

De Da Madragoa a Meca, &etc, 2013

Paris à noite revisitado

Ainda ontem tudo era estranho
hoje já me habituei ao barulho das ambulâncias
e às patrulhas da polícia 

viver na grande multitude
também pode ser isto
as coisas irem desaparecendo
com os dias  

acasacados apagamos em cada corpo
uma multitude de vozes e à noite vamos
ao teatro ver as vidas
que o olhar na cidade
teme ou recusa captar 

já não estão aqui os três ou quatro emigrantes
dormindo sobre a grelha do metro
debaixo da ponte de Stanlingrad
onde por vezes ainda nos espia o ténue brilho vigilante
do foco de luz da torre eiffel (ai fel) ou das iluminações
do grand palais (grã pá lê) 

segundo as redes sociais a polícia dispersou o pequeno acampamento
com gás pimenta
especiaria que os portugueses trouxeram da índia

Quelques regrets

Nestas ruas do Poço do Bispo
que, já então, eram feias como agora,
andámos à procura duma loja de instrumentos.
Sonhávamos com música;
a loja, repleta de órgãos partidos e bafientos,
pareceu-nos a caverna de Ali Babá,
preciosa para brincarmos aos conjuntos;
enfim, eu não queria brincar, nem mesmo sonhar,
queria encontrar a música nas coisas palpáveis,
queria ir ter com ela, na vida, e depressa.
Demasiado depressa. Não me acompanhavas.
Ainda nesse Verão, depois dumas horas
a tentar ensinar-te os acordes de “I love her”
disse-te o que ainda hoje dói
e já não se desdiz.
Os prédios, os carros estacionados
ficaram no mesmo sítio,
mas um grande e largo rio
de baba e ranho
correu e separou-nos para sempre.
Dizem que, aqui, o oriente de Lisboa
era lindíssimo antes da indústria.
De olhos fechados, ainda se avista esse lugar ameno,
belo como a tua amizade imerecida.

14/06/2019


O perfil de João Paulo Esteves da Silva pode ser lido aqui.