O homem atractivo; O homem de bom gosto; Caderno; Rumor

O homem atractivo

 era um homem grave e com enorme poder de atracção. Caía

                                                                                                   no mínimo

                                                                                                                      cinco vezes por dia

 

 

O homem de bom gosto

 Era um homem de estranhos gostos, mas o que mais apreciei nele, disse ela, foram as suas orelhas em vinagrete.

 

 

Caderno

 Cada caderno novo é um castigo, um projecto de destruição do pensamento ou do sentir, promessa sempre falida, a cumprir, por cumprir. Procura de dizer tudo pela primeira vez como se fosse a última, sabendo, de antemão, pela mão, nada há a dizer, que possas dizer, escrever. Começado, escrito, terminado, as folhas cheias. E debaixo das letras, da tinta, todo o vazio da tua vida.

 

 

Rumor

 canta o mundo como te aprouver, a solta voz, murmúrio ou lamento. Ao fim do dia escuta: ao longe, o longo e largo rumor do mar

Exijo que me tratem pelo nome!

 

Há quem me saúde por “sôtor”.

Há quem me saúde por “sôtor” e incline ligeiramente a cabeça.

Há quem me saúde por “sôtor”, incline ligeiramente a cabeça e coloque a mão no chapéu fazendo menção de o retirar.

Há quem me saúde por “sôtor”, incline ligeiramente a cabeça, coloque a mão no chapéu (e mais do que fazer menção de o retirar) retira-o mesmo.

Há quem me saúde por “sôtor”, incline ligeiramente a cabeça, coloque a mão no chapéu retirando-o e executando todo este malabarismo de honrarias enquanto conduz uma bicicleta.

E ainda há quem ao ver-me aproximar pela mesma calçada prefere, (talvez com o receio de conspurcar a minha passagem), prefere - dizia eu - desviar-se para o meio da estrada. Regressará dezenas depois à segurança do passeio.

Para quem não me conhece, existo


Andar sem respirar. Assim andava apressado horas a fio com o coração na mão em uma manhã esgotada de afazeres e sentimentos tortos. Ainda restaria o dia, tarde e noite, para me surpreender com uma suspiro de vida que conseguisse me manter em pé até chegar em casa. Já pensava na sorte que teria de ir sentada no ônibus mais cheio que promessa para nossa senhora. O calor do ar me esfumaçava a cara e ardia os ventres. O suor descia até os pés que deslisavam nos sapatos secos de tanto calejar escadarias, calçadas e morros. Minhas colchas duras rastreavam fraquezas para respirar em qualquer ato de moleza que pudesse vir e que seria um extremo ato de bondade. Minha garganta seca já se acostumara a seca e guardava as salivas para drenar do subsolo bucal para quando fosse preciso falar. Minhas ortas vermelhas sugavam ar pela mente que não descasava a memória de saber e lidar com a história de onde teria que ir.

Corria em algumas horas para acelerar os passos como se esses fossem patas de cavalos e pudessem resistir o solapar dos pedregulhos que adormeciam a séculos entre buracos descalçados. Instantes depois parei sem parar. Diminui o ritmo e é como se estivesse a estacionar. Os órgãos pareciam rir e festejar com aquele esperado momento. Não fosse a inteligência humana seria uma máquina ao invés de um corpo suado e molhado a procura de um lugar a sombra. Mas não havia sombra nenhuma. O sol se esbeirava até embaixo dos próprios prédios como se fossem luz vinda dos córregos, bueiros, ou raízes abertas. Os cordões do pescoço perdiam ouro e nutria minerais ao corpo para não submeter as desgraças dos asfaltos de puro ardor. Seria ovo frito mais que frito queimado em óleo quente tão quente que sem ter tatuagem misturada a outras gentes seria dificilmente reconhecida pela minha identidade. O documento viraria pó como se fossem cinzas submetidas ao forno para serem jogadas no mar. Aqui sem mar, só me resta os rios, que amanhecidos cruelmente secos eram caminhos largos e fundos de um ar que agora passava cada vez mais baixo sem mais se molhar e tomar banho para virar chuva.

O instante fecundo do algoz que lhe criou foi o torturante engano de que a vida poderia ser mais do que ela nunca foi. A inevitável consoante que atravessou as vogais não são canções prontas para serem entoadas nas vozes dessas mulheres que arreganham os vestidos para irem em busca de uma água para lavar suas roupas. Mas são máquinas de fazerem perfumes aos olhos do povo que não tem nem nariz para cheirar, nem olho para vê, nem paladar para comer nada que vem mais a terra. Porque essa é uma promessa nunca antes escultadas em ouvidos que permaneciam estasiados com o calor que fazia ao todo dia.

O hábito de vestir-se de um personagem só como se tivesse em revista em quadrinhos que achará naquela gama de papeis reciclados parecia tão eu que até achei que aquilo era minha novela. Face ao culto religioso que tentará me converter ao costume horrendo de ser libertada somente durante ao morrer, ignorei a vida para viver só me lamentando dela, ao qual faço parte sem a arte de escolher. Farei mais que andar, irei correr mas não para me catapultar a vala tão esperada, já que sem redenção irei ao inferno e de calor já basta este. Quero frio gelado que apalpe meu corpo e escorra água para meus poros beber. Estarei sozinha, sem mato nem cachorro, a espera de um uivo que me faça de novo amanhecer. Não há mais galinhas nesse entorno, os uivos são dos cachorros, que choram para não morrer. Quando deitar meu corpo não mais fará festa, porque já passará a hora, e felicidade não podem ter.

Obediência 

Haviam-lhe dito que um descanso. E Pedro que sim, que uma paz, embora qualquer som, mesmo que só a antecipação, o arrastar miúdo que vem antes de falarem, o fizesse embater em estranheza. 

Na noite, ninguém que uma palavra. Percebera-o a um toque de batuta que ninguém deu, mas que é o que há quando a mínima suspeição. A busca azeda do fim em que se metera o avô findara. E que com isso um descanso. À reação de Pedro, uma mão toda decisão com um hipnótico, com um apagão. 

Acordara na manhã seguinte montada, igual. Gente como se marioneta, carros rotineiros, ponteiros no sentido comandado de sempre. E com isso a ida para a escola, como se dia. Como se dia, imagine-se. 

(O meu avô morre, procura-se na morte, e há quem coma, quem trabalhe, quem como se nada, como antes de tudo.) 

O absurdo, implodido em elasticidade, prolongara-se anos atrapalhados em anos. E nunca a certeza do que acontecera porque a mão em ordem com o hipnótico e com isso os músculos travados. E a manhã como se fosse possível voltar a ser dia depois de o avô. 

(E a terra? Que restos? Braços ainda que abraçar? Olhos que conforto?) 

Mais anos enovelados noutros numa incerteza de traça de ter de facto havido morte, porque só a ausência, só o nunca mais o ter visto, vendas, partilhas, uma força centrífuga em tios, primos. 

É hoje 8 de dezembro de 2013. Agora o corpo em resignação de uma escrita. Estático. Alguns movimentos desde 23 de março de 1997, mas só coisa de ir passando. Haviam-lhe dito que também Deus e que com isso alguma coisa, mas Pedro que Não, que Se Deus, refinadíssimo, a um deslize, criara a morte, por que motivo a destruiria? Se os despojos de um corpo criação Dele, por que motivo a reconstrução do que está dentro? Por penitência Sua?! E que fazer com o absurdo de tudo isso? 

(Avô?) 

Agora nenhuma paz, todos os sons. Com isso a escrita. 

(Des)sincronia 

Que tinha vindo do lado em que as coisas (não) são de facto, em que os contornos (pouco) exatos porque a criação, daí a festa, a ordem certa, certa, cega, cega, na fila para os braços à volta do corpo da cabeça que chegara. 

Um estremecer das unhas dos pés ao cimo estendia-se. Minto, não se estendia, tremia todo um com o susto de tantos dentes a afastarem lábios. Um, outro, outro e outro, num encaixe perfeito, arestas sólidas. Diferentes em tudo do sítio de onde viera, julgo, moldados, imitados, ao contrário de no outro lado, onde tudo único porque o espaço da invenção. 

Numa euforia estridente, quase em crise, juro-te, que deste lado, do real, sim, é que o queriam, que agora sim, um como os outros. Ah, sim, com isso a meta cortada de estar só. De modo que as felicitações, os dentes de arraial na infância, os braços à roda da cabeça entorpecida. 

Conto-te isto porque fui enchendo o balão de compaixão pelo homem a ponto de não conseguir agora sozinha, porque até na compaixão há diâmetro limite. Eu sentada, as pernas moles da surpresa, e isto tudo na minha sala, acredita. Conto-te como se agora, que é o que se faz quando a teimosia da memória, quando um guizo constante do que se passou. 

De súbito, volta-se e a indignação começa a inchar na multidão que ele, estou certa, não reconhece, porque as feições em pedra inerte de quem na indiferença. Dá as costas, o pescoço na sua missão de segurar a cabeça, a esforços sisifianos, decerto porque o desânimo da repetição dos outros aos outros, do real, corcunda de exatidões a uma medida certinha. Costas dadas porque, penso, a repugnância pelos braços de quem felicita a vinda do fantástico para o real. Estou certa de que lhe pesa a certeza de neste lado não poder ser por inteiro, de no despertar todos escorregarem para a indignação um dia. 

Eu de pernas e braços obedientes de gravidade. Já não bem neste lado, já um adormecimento. Sim, eu já no outro lado, penso. Ouves-me ainda? Dizia-te que eu já não aqui, de modo que a história só isto. E eu em preces para que o homem de novo no adormecimento porque a minha compreensão possível do fantástico como o espaço em que ninguém a sós. Ouves-me?