Nuthin’ but a G thang, baby

Para Sabotage

Amor e ódio
sobre os ombros
pus à partida, 

e na pele as dores
numa cruz

(algo do que fiz
dos erros que cometi). 

Os abutres reconheci
pelo caminho
e os saqueadores. 

E então fiz algo
com isto e aquilo: 

restos de duas  
jornadas, 

sete vidas
bandidas

e umas tantas  
vidraças partidas; 

com isto, 
isso, aquele
e aquilo outro: 

jogos de amor
para o morto
ou de sorte – 

um cinco sete  
palavras roubadas
ao carro forte.

Ederval Fernandes

[Perfil de Ederval Fernandes na Enfermaria 6]

Tabula rasa: II. Silentium – Senza Moto

Sobre Arvo Pärt

Nos ouvidos que nada renunciam canta Senza Moto

Navego, então, sobre o mastro que se lança do bico de proa para frente, no veleiro, no plano longitudinal, com uma inclinação de cerca de 90° acima do plano horizontal: gurupés.

Navio que, trôpego, deleita-se ao vento sob o sol sem sombras;

sem direção; sem âncora; raízes: teixos sem solo.

Olhos lacerados e esquálidos, reverentes somente ao Mar.

O simulacro de execução de Fiódor Dostoiévski

Se existe um romancista onde os termos “sofrimento” e “redenção” fazem sentido, é seguramente em Dostoiévski. Pela sua vida e pela sua escrita, muitas vezes imbricadas, levou até às últimas consequências a velha dicotomia moral bem/mal, daí o choque (fisiológico e não simplesmente estético) que provoca nos seus leitores. Não se sai intacto da sua obra, tornamo-nos outros depois de o ler, se formos verdadeiros leitores, isto é, se entrarmos genuinamente na história que ele conta.[1] Se assim for, múltiplas personagens excepcionais, extremas na bondade ou na maldade, às vezes nas duas, percorrerão a vida connosco (o Príncipe Míchkin, Aliocha Karamazov, Raskólnikov, Stavróguina, Dolgorouki, Valkorskii, Ivan Karamazov...). Dostoiévski reuniu um conjunto de personagens ambiciosas e sentimentais, ateias e crentes, revolucionárias e conservadoras, místicas e materialistas... trazendo-as para o século xx, o mais diabólico, irrisório e vertiginoso de todos os séculos. Apesar de magnéticas, nunca se apanha nelas um traço caricatural, parecem todas enraizadas na vida real, amando, odiando, sofrendo, devendo, trabalhando, equivocando-se, transbordando de filosofia ou reduzindo-se a um senso comum elementar... Suficientemente complexas para se desviarem de um possível pastiche heróico, vivem numa dispersão vital que as mostra torturadas pelas contradições, dúvidas, angústia, quimeras... São, numa palavra, personagens humanas, demasiado humanas.

Filho de um médico alcoólico, parece que o jovem Fiódor sempre desejou secretamente matar esse pai terrível que batia na esposa e nos filhos. O pensamento de poder ter sido um parricida bastou para marcar a ferros a sua consciência moral,[2] tanto mais que ele acabou por reproduzir alguns dos comportamentos do progenitor que odiava. Irascível, pobre, orgulhoso, susceptível, o jovem Fiódor era quase associal (isolando-se no meio dos livros de Shakespeare, Victor Hugo e Schiller)[3], mas a publicação do seu primeiro romance, Gente Pobre (1846), torna-o, aos 24 anos, admirável e invejável, o mundo das letras russas, sobretudo os críticos maiores Belinski e Nikitenko, recebe-o como o novo Gogol.[4] Os dois trabalhos seguintes goram as expectativas, passando subitamente de adulado a desprezado. Será um pouco assim toda a sua vida, uma permanente montanha-russa, elevação e declínio, poder e submissão (conhecia alturas de onde podia cair). Acrescentem-se as terríveis dificuldades económicas que sempre o acompanharam, porque não herdou capital económico, porque se dedicou totalmente à escrita, porque era um jogador inveterado (O Jogador) e, entre outros, porque sofria de epilepsia. Porém, tudo o que de extremo viveu nunca quebrou a sua incomensurável ambição de ser um escritor superior, nem a prisão siberiana, Gulag da época, apesar do trabalho esgotante, do frio e da fome, removeu esse destino auto-fabricado. A glória como retribuição de anos de miséria, uma embriaguez da metamorfose.

Para o que nos interessa aqui, na ressaca do fracasso literário pós Gente Pobre, sem acreditarmos numa simples relação de causa-efeito, Dostoiévski começa a frequentar um grupo de jovens intelectuais contestatários, impregnados de socialismo progressista (o círculo socialista de Petrachevski de São Petersburgo, na verdade bastante heteróclito, com liberais, anarquistas e socialistas), desenvolvimento rizomático do sopro revolucionário que varreu a Europa em 1848. Mas a 23 de Abril de 1949, a polícia prende-os, incluído Fiódor. No seguimento de um julgamento obscuro, vê-se condenado à morte e em 22 de Dezembro do mesmo ano é levado com alguns camaradas para o local da execução. Na verdade, a sentença era um simulacro, depois da encenação perfeita (leitura da condenação falsa, saco de tecido na cabeça, subida para o cadafalso...) acreditou realmente que ia morrer, mas no derradeiro instante ouve dizer que a pena (fictícia) tinha sido comutada, pelo “misericordioso” imperador Nicolau I, em prisão com trabalhos forçados num campo da Sibéria (onde permaneceu quatro anos, activando uma força espiritual sem ressentimentos). Este inimaginável suplício psicológico será retratado pela voz do Príncipe Míchkin no O Idiota (mais no sentido de ingénuo do que de ignorante, uma simplicidade que abre para a mensagem evangélica).[5] O grande biógrafo dostoievskiano Joseph Frank (a quem devo parte destas informações) vê no livro, o mais autobiográfico de todos, a reprodução e imortalização do momento trágico que ele viveu no simulacro de execução.

Este acontecimento, em pleno Inverno russo (estação do trágico frio glaciar), renovado mais tarde, mutatis mutandis, pela morte da esposa do do irmão amado em 1864, “regenerou as suas convicções”. Escreve ao irmão defendendo que a vida é sagrada, que cada minuto contém uma “felicidade eterna”, dispondo-se a “renascer sob uma nova fórmula”. Envolve-o um vitalismo religioso, uma paixão pela vida viva, dom e dádiva de Deus, a vida prova a existência de Deus em cada indivíduo (conversão de Dostoiévski). A confrontação directa, inevitável, com a morte destaca, com uma luz que alucina, a positividade da vida. Pede então uma nova oportunidade, jurando que “transformará cada minuto num século de vida”, como diz em O Idiota. E foi isso que escolheu, o simulacro de execução fê-lo renascer para uma nova relação com a vida, amando o mundo, dando graças por poder olhar para ele, cheirá-lo, tocá-lo, numa espécie de vertigem imanente suportada pela magnificência do transcendente.[6] A ausência de sentido, niilismo que inspirará Nietzsche, alojada na falta de reconhecimento, será substituída pela simplicidade luminosa, entregando-se à totalidade como uma criança fascinada com a existência. Só quem sentiu a morte envolvê-lo com garras infernais pode retornar à inocência que julgava perdida. Mas tudo é frágil e efémero, por isso se invoca o amor cristão, perdoando sem porquê, activando uma partícula da misericórdia divina no indivíduo (como o Príncipe Míchkin).

A pergunta que muitos fazem é sobre a importância do simulacro da execução na vida e obra de Dostoiévski, teria ele sido o mesmo sem essa deriva mortífera? Sabemos pelo menos que o Dostoiévski socialista e revolucionário se esvaneceu nesse dia, dando lugar ao Dostoiévski crente, russófilo[7] e conservador. Em vez da revolução política, propõe uma solução teológica na aceitação do sofrimento e no valor intrínseco da redenção (estoicismo cristão, uma ascese atípica). Sabemos também que sem essa experiência O Idiota, Os Irmãos Karamazov (morre pouco depois da sua publicação, em Janeiro de 1881) e Os Demónios não teriam provavelmente sido escritos. Talvez Raskólnikov não sofresse também os pavorosos e inultrapassáveis problemas de consciência por matar uma usurária, desaparecendo assim o centro metafísico do castigo (que a leitura marxista empobreceu terrivelmente, reduzindo-a à luta de classes espoletada pelo “odioso capitalismo”). Os maiores desvios morais abrem, paradoxalmente, para a redenção, só depois da vertigem do pecado se pode ter consciência da alma e procurar o perdão teológico, o mal parece ser, pois, o meio para chegar a Deus. A esta linha de pensamento, Dostoiévski juntou uma exaltada tendência para a interrogação infinita, hipertrofiando as dúvidas e as contradições. É, aliás, a sua veia inquisidora, à procura de mapear toda a amplitude do ser humano, que o torna excepcional também fora do reduto nacionalista, isto é, lhe dá um carácter universal. Recusando as morais cristã ou socialista nas suas vertentes simplistas, procurou desesperadamente Deus ao mesmo tempo que nunca deixou realmente de duvidar da sua existência. E isto é imenso. Se o devemos ao simulacro de execução, escreveu-se direito por linhas tortas. E creio que nem Saramago seria capaz de criticar o meio que levou ao fim, como o fez em relação ao Convento de Mafra (simplifico).

[1] George Steiner, em Dostoiévski ou Tolstói, assegura que estes são os dois maiores romancistas de sempre, vértice do triângulo mágico da arte da palavra, composto ainda pelas tragédias gregas e pela dramaturgia shakespeariana. Steiner antagoniza os dois autores russos porque ao apelo pelo transcende de Dostoiévski se opõe o apelo pelo materialismo racional de Tolstói. Para este crítico, as duas visões do mundo resumiriam uma espécie de dicotomia estrutural onde caberia viver cada humano, no fundo seríamos ou dostoievskianos ou tolstoianos, e nada mais. Cf. a entrevista em francês de Steiner sobre o livro.

[2] Isto mesmo é indicado num texto de Freud, “Dostoiévski e o parricídio”, onde finalmente o psicanalista dedica mais tempo à epilepsia de Dostoiévski e a um romance de Stefan Zweig do que ao tema do artigo. Não obstante, esse título moldou a perspectiva de muitos leitores em relação ao escritor russo.

[3] Em O Adolescente descreve-se como sombrio e fechado. Desejando isolar-se da sociedade. Não vendo razões para o filantropismo, já que as pessoas são menos belas do que se pretende.

[4] Sobre a recepção entusiasta, escreve ao seu irmão (Mikhail): “Vêem em mim uma corrente nova, original, que consiste em que eu procedo por análise e não por síntese, isto significa que aprofundo e, passando em revista átomo por átomo, questiono tudo; Gogol, por seu turno, apanha imediatamente o todo, é por isso que é menos profundo do que eu.”

[5] Por exemplo, diz o Príncipe Míchkin, encarregado da narração: “Pegue num soldado e vá pô-lo em frente do canhão no campo de batalha e dispare contra ele: o soldado terá esperança até ao último instante; mas leia a esse mesmo soldado uma sentença definitiva, e ele enlouquece ou chora. Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem o enlouquecimento? Porquê esta profanação monstruosa, inútil, absurda? Talvez haja alguém a quem tenham lido a sentença, tenham deixado sofrer, e depois disseram; ‘Vai, estás perdoado.’ Talvez esse alguém o possa contar. Desse tormento e desse horror também Cristo falou. Não, não se pode fazer isso a uma pessoa!” (Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra para a Editorial Presença, Lisboa: 3.ª ed. 2004, p. 27). Mas para o que vimos narrando, as páginas mais elucidativas são, da mesma edição, as 64-71.

[6] Curiosamente, o Príncipe Míchkin, acaba por dizer às suas interlocutoras que afinal a personagem que prometera viver “contando cada minuto” se desviou, sem surpresa, dessa mesma promessa. (Cf. idem, p. 66).

[7] Nos seus derradeiros anos de vida fez discursos inflamados louvando a alma e o povo russos, a superioridade do “génio russo”, com o papel messiânico de compreender as outras culturas sem perder a sua especificidade, trazendo a felicidade à humanidade

Rebanhos rebeldes; Relógios; Teologia para peixes; Meditações metalinguísticas

Rebanhos rebeldes

Almas desesperadas eu vos amo.
Murilo Mendes, Mapa

Isto não é um poema.
Isto é uma compilação
de bilhetes suicidas.

Homens aflitos,
meus irmãos de lama,
emprestai-me

        vossos oráculos.

Anjos degredados das Américas,

ex-votos irrecuperáveis,
andrajos em romaria,
somos a membrana esticada sobre o fuste,
não o som que o tambor produz.

Gloriosas vozes da África,

    o que é o talento
        para os acumuladores compulsivos?

– Ave, parricidas sanguinários!
– Ave, renitente pedra de Sísifo!
– Ave, Imperator, morituri te salutant!

Totens – sem tabus – da Europa,

cujas fornalhas devoram
os melhores exemplares
das melhores estirpes
                e cospem

    peles & ossos & falos
            condecorados,

lede, na fachada
das repartições públicas
e nas sedes
das burocracias,
as austeras letras garrafais:

        ARBEIT MACHT FREI.

Sábios camaleônicos da Ásia,
Crusoés tatuados da Oceania,

Manoel de Barros está morto.
E morreu porque ainda preferimos
a funcionalidade dos manuais de especulação financeira
à beleza humilde

                das lagartas.

Inércia, meu único destino.
Inércia, o único destino dos homens
de meu tempo, de meus iguais.
Ao menos, conforta-me a fantasia de que os mártires também
teriam lamentado a partida definitiva do poeta se tivessem
idade suficiente para entender o que ela representa.

Gondwanas tresloucadas,
Laurásias perplexas,

em uma surrada tira de papel, designei-vos
algumas tarefas:

    1. arrancar da mão do professor misericordioso o giz;
    2. ressuscitar Lázaro;
    3. trocar a lâmpada queimada no quarto de hóspedes;
    4. do barro, fazer um deus que se admita negligente.

Sou aquele a quem tentam convencer
de que não sou,
uma palavra à qual se impõe

                univocidade.

Falsas Pangeias globalizadas,

deixai-me admirar, delirantes
como magníficas alucinações,

    as hecatombes.

Ei-las, à sombra imortal
das pirâmides do tempo,

    as hecatombes!


Relógios


All those times I was bored
out of my mind.

Margaret Atwood, Bored


Em cima do piano, eis um relógio. A cada rotação,
                seus ponteiros
                    me massacram.

    Alguém me fala sobre doenças
    e sobre consultas médicas, 
    sobre planos de saúde
    e sobre seguros de vida.

Alguém me fala sobre os preços dos remédios,
        que aumentaram por causa dos altos índices
                        de inflação.

            Alguém me fala sobre meus amigos;
e, ao que parece, quase todos já honraram
    o famigerado axioma bíblico: ao pó retornaram.

            Alguém me fala sobre reencarnação.

        E salienta que, de acordo com determinadas
                            [religiões,
o fenômeno do crescimento vegetativo a nível mundial
                explica-se
            com base na transmigração dos espíritos.

    Confesso: com o fim do espaço público,
    a ideia de um amplo câmbio interplanetário de almas
    (versus a intimidade de minha casa)
                    me tira o sono.

        Prefiro ser enganado pelas manchetes
        e pelos anúncios publicitários
        de meu próprio planeta.
        Prefiro os mortos
        de meu próprio planeta.
        Prefiro também os relógios cruéis
        de meu próprio planeta,

muito embora suas engrenagens,
gáveas de presas anônimas,
ainda conspirem por minha capitulação,
independentemente de qualquer teoria fabulosa
acerca do além-túmulo.

            A arquitetura da tabacaria
            é rude, quase vulgar,
            mas preciso reconhecer: tê-la,
            em sua frouxa metafísica, põe
            minhas cicatrizes em estado
            de graça.

    Olho para mim.
    Olho para meus mortos.
    Olho para o relógio em cima do piano.
    Que tédio.


Teologia para peixes


Minhas nadadeiras, na forma de arpéus,
Enfrentam as surdas correntes do mar.
Arrastando grãos de sal e de areia,
Guelras e escamas seguem a riscar
As águas turvas, a noite cheia.

Dou meio giro, viro-me e miro,
No rosto do céu, sardas prateadas.
Abre-se a mim constelada cidade;
Porém, peixe genioso, prefiro as arcadas
Do santuário devotado à eternidade

Que os pescadores, funestos algozes,
Conhecem pelo nome de estaleiro.
Suas sólidas vigas de ferro fundido
Formam o mapa de um reino estrangeiro,
Abstração cartográfica de autor esquecido.

Confabulemos, companheiros de cardume:
O que são pontos acesos em infinita
Abóbada, isolados, intangíveis, distantes,
Se comparados ao espetáculo que agita
A razão de todos nós, os navegantes?

Pois se volto contra o inquebrantável
Colosso a ponta de meu atrevido nariz,
Tremo em ardoroso, íntimo clamor.
Suas luzes são raras crisálidas febris
A pender das pálpebras do Criador.

E que Criador seria esse, ó mar confidente,
Se me assalta a nítida impressão de que fora
O próprio estaleiro o artesão de todas as coisas?
Perdoe-me tamanho desabafo, mas a aurora,
Quando desponta, sujeita-me a tão duras inquisas.


Meditações metalinguísticas


[ a ]

Fazer poesia é observar a criança levar
a maçã madura à boca e mordê-la
com excepcional ímpeto.

Fazer poesia é dizer à criança da estrofe
anterior: menino, tome cuidado que,
se cair na roupa, deixa nódoa.

Fazer poesia é pendurar os versos
no varal, oferecê-los ao Sol, esperá-los secar;
e, depois, retirá-los, um a um, para sentir
o cheiro fresco de lavanda, que é efeito
do novo amaciante.

[ b ]

Fazer poesia é desfazer nós na garganta
e atá-los e desfazê-los novamente,
sucessivamente, remexidamente,
até a corda puir e sobrar apenas
a garganta.

[ c ]

Fazer poesia é sair à rua para cometer
pequenos delitos, como surrupiar
o volume de preço astronômico que
acumula poeira na estante da livraria.

[ d ]

Fazer poesia é desvendar a paixão
que esteia os sobreviventes
das grandes catástrofes
        – mistério telúrico.

[ e ]

Fazer poesia é saber a hora de parar de
fazer poesia é saber a hora de parar de
fazer poesia.


Cartas de Hamburgo

I
nada aqui falta excepto um encordoamento
de afinidades
a casa leva o seu tempo
ergue-se da secura de lágrimas
um lago de sal vertido
enche-se de empréstimos
doações objectos indesejados e a barca
que nela aporta sobe e desce o canal
sôb bátega vento ou tímida estrela
atravessou já países em cada a desilusão
se plantou no casco fungo em árvore
alastrando as suas fibrilas até estrangular
com paciência a via da vida

voga e vai vazia nas vagas
nenhuma amarra a sustém
caronte não pesa nas suas tábuas
ficou na margem guiando barcos de papel em poças
em cada inscreve um nome que se dilui
amigo pai mãe irmão irmã mortos
nomes como deus ar no oco do corpo
ou batida da língua nos dentes com sopro sibilado
tanto a carregar no porão e vai cheio de nada
e o poema que se escreve é uma onda que recorda
as falsas despedidas prolongando as declarações
com a duração do momento
fósforo para a noite da esperança


II


desafiei a verticalidade inerente ao género
ergui braços para envolver o mundo dar sombra
ao caminhante atear a chama dos sonhos do cérebro
de uma criança ser morada do rato pardo
do esquilo do corvo respigador

os meus séculos anelares suportam-se de tanto
desejo com hastes de aço mártires e amantes
inscreveram com estilete ou chama as suas promessas
muitas delas hoje estão junto do meu coração
ou calam-se esperando o vento como mensageiro

vi impávida pacífica neutra
a ascensão e queda do terror
e permaneço ainda atenta ao que perdura
disfarçado como o outono pelos lábios
das folhas no entardecer do verão

tenho o dever de preservar a dinâmica dos pulmões
e tantas de mim se deram ao milagre da escrita pública
persisto no parque da cidade menos esquecida
por esta mão falando por mim enquanto de si
anseio as minhas raízes se ponham a andar


III


considerai as efémeras e sua loquacidade
a emergência vital por sobre as águas
bailado de instante em sua potência
de olhos distorcidos posso dizer é isto
esta enchente de corpos seguindo
a prédica de Sankt Pauli
a vida tem dois momentos
o entardecer e a aurora entre sexta e domingo

deixo-me ficar sentada no patamar povoo
o público e o privado ou o meu e o vosso mundo
atento aos passos moendo dentes
sendo senão garrafas estilhaçadas sob os pés
estrelas irradiantes à luz passageira
o babelismo da rua acode-me emudecem-me
as seduções e o asco de quem me observa
na oscilação do longe ao perto

nunca estou tão por dentro
como quando a química me enleva
numa homeostasia de pequenas percepções
leio cada mínima variação dos poros
a temperatura as dilatações da menina-do-olho
todos os signos de um outro alfabeto
desenrolando-se em silêncio e no escandecer
dos corpos pela minha vista de muybridge

sou o arco sobre o qual assenta a ponte
da realidade o frio a tremura conhecem-me
a pouco e pouco toda e agora mais sou o sentido
dos sentidos da história da vida do pensamento
estou além escutem considerai
as efémeras à medida que o coração descobre
a linha tendendo para o zero e a manhã
chega no canto da sereia


IV


a proibição tinha lugar pelo jardim
abriam-se porém adendas ao fechar dos olhos
mão enrodilhada na certeza e o tempo
afundando os arroios do rosto
aí espelhou-se o lamento rangente de árvores
um timbre harmonizado com o tambor do corpo

de entre a lama e erva azul de gelo pespontava
a brutalidade do amarelo e branco de narcisos
a nervosa segurança de coelhos e esquilos
julgando os teus passos o fungar o aroma
do batôn cerzidor da fenda do inverno nos lábios
moldados para o beijo o silêncio o chamamento

também outros animais te observam
e vigiam os gestos com medo e desagrado
são como tu mas não retribuis a interrogação
buscas a familiaridade e segues sereno de olhar
perdido em aterragens de patos nos esforços da galinhola preta
mergulhada nas águas desses falsos lagos de superfície vidrada

o mofante riso das cotovias e o saltitar dos destemidos
corvos alegram-te o passeio pelo parque
estes momentos são-te importantes dizem-te
ser este o caminho do desnudamento começando
por te livrares do peso do julgamento do outro
até que a trama da mão se alargue a todo o corpo

ao saíres és confrontado com a suja rudeza
do alcatrão cintilante de vidro e beatas cuspo e vómito
o patético fausto das luzes da dome as buzinas a vozearia
os encontrões e os ainda mais inquisidores olhares ensurdecedores
forçando-te a esquecer e desistir dos alvitres do amor e do futuro
ao longo das ruas de Sainkt Pauli até à montanha de Hamburgo

passas pela efémera ainda presa no seu instante
com ranho a escorrer numa pose de estátua de Gomorra
sobes os degraus de madeira e linóleo vibrando sob o peso da música
interminável e nessa casa de empréstimo aguardas a sua chegada
e do embate da rua o seu olhar e o mundo que és nasce uma resiliência
aderindo e cercando o nó enrodilhado da certeza na mão


V


não te aproximes demasiado
destas águas escorrendo lamacentas
por elas cruzam a obra do homem
e a cada vez a terra é galgada pela luxúria
                            e o suplemento

a queda é vertiginosa
dois três passos e és sorvida
pelo depositado lentamente no fundo
raízes troncos restos de vida
o vidro o plástico o ferro
outras obras desnecessárias
                     um poema
uma carta ao pai pedra para saltar
na superfície quando nela nada
passa
         um olhar perdido no que passou
e verteu amargura nos dias vindouros
um suicida eufórico cães ledos correndo
pela areia fora em saltos
luminosos com o seu pêlo negro

as mãos doadas inoculando o doce
no coração amargo levado pelo olhar

ao redor tudo é aquoso
do céu ao rio e ao teu rosto
um tempo líquido que nos enleva
este e já nenhuma falua nos torna
até belém    a mentira da inocência
já não encontra morada
na boca           que fazemos aqui desenraizados
quanta terra há a percorrer

erigimos uma casa na solidão aguardando
uma visita e ninguém se aproxima destas águas