A mulher dos aforismos

Aquela mulher exalava aforismos como quem prega aos peixes. Era-lhe natural. Uma necessidade que se fazia de respostas, da boca ou do corpo, e que à surdez das pessoas quotidianas, só eu, feito peixe, a ouvia. E tomava nota. 

Tal como o bom pregador, preparava o discurso: Vieira com estudos de retórica, de língua e de exegese. Ela, diriam os académicos, estudou em Nag Hammadi. Também como o jesuíta, para além de todo o estudo, observa com atenção clínica os seus paroquianos. E responde consoante. Para quem esteja atento.

Certo dia comentava eu que a paisagem onde estávamos me fazia lembrar a minha última viagem. E recordava-a com a mesma melancolia de um casamento feliz do qual se enviuvara. Não sabia, no entanto, destrinçar a razão de tamanha felicidade guardada na memória. Se da maravilhosa companhia feminina, já devidamente polida por Safo na lembrança; se do sentimento de fuga do dia-a-dia e da ilusão revolucionária que a sensação de liberdade de duas semanas proporciona antes da contra-revolução; se dos amigos que lá revi; ou da paisagem, essa que lá, tanto como aqui, fazia a ponte entre essa realidade de meia lua e aquela que agora habitava.

"É por isso que não gosto de viajar!", interrompeu ela após o meu silêncio se ter prolongado no olhar lânguido da paisagem. 

Retorqui, instigado pela fundamentação do raciocínio. Sem nunca perder a calma que a caracterizava, prosseguiu.

"Tenho tudo aqui. Por isso escolho onde moro. Escolho a paisagem."

Desmontou-me o raciocínio com a mesma força com que me dissolvia a memória. Não para a apagar. Mas pela coragem de a trocar pela realidade.

"Às vezes tenho vergonha!", disse num sorriso fugidio de embaraço.

"De escolher?"

Fi-la convulsar o corpo todo outra vez. Desta vez sem lhe tocar. Mas não passou de um riso curto e sincero.

"Não! De dizer que não gosto de viajar!"

Nem só aforismos vive o homem, deixava estrondosamente implícito nos seus sermões! Vieira sabia do que falava. Também de partilhar! De vivências. Mesmo desconhecendo a obra um do outro, pareciam por vezes um decalque. Contava-me: 

"Às vezes estou tão excitada que basta tocarem-me nas mãos, apertar-mas com força, e tenho um orgasmo quase instantâneo!"

"A sério? Só de te apertar as mãos?"

"Estavas desatento!"

Fez-se um silêncio risonho. 

"De facto, da forma como falas com o corpo, não pode ser surpresa!"

Corando e apontando o olhar para o chão, respondeu com o tom de uma menina pequena:

"Não dá mesmo para enganar, pois não?"

"Falas como se isso fosse mau..."

"É que assim sinto-me sempre nua!"

"Só os semelhantes se reconhecem entre si."

Agarrou-me no queixo, com modos de quem afaga a barba em tons de volúpia e deu-me um beijo demorado. Não disse mais nada.

Continuava dividido entre o amor que fizéramos por outros mundos de orgasmos cósmicos e o querer dar estado material a esse edifício etérico. A topografia facial detalhava-me as angústias escritas nas palavras do rosto. E ainda que o manto de mento esconda alguma parte, os olhos reflectem para fora a escuridão que vai lá dentro. Desta vez decidiu usar a voz:

"Gostava tanto, tanto, tanto, mas tanto, de fazer amor contigo, que vou dedicar-me a outras actividades corpóreas, como tomar banho e comer!"

Abraçou-me com o mesmo fogo venusiano de sempre que me acende a raiz, levantou-se e foi nascer como Afrodite.

O interruptor silencioso

Acende e apaga. Apaga. Se toca. Sem qualquer ruído. Um rosto ligado com a gaze da loucura. Plano aumentado. O olhar se aguenta, eléctrico – indo, vindo, desavindo, à extrema do lugar máximo permitido pela infra-estrutura do corpo. Se apaga o ruído. Apaga.   

Uma forte dentada, na única bóia de salvação à vista, põe à mostra uma primeira espessura de borracha negra, uma teia de corda branca ainda à mão da fúria, outra espessura de borracha negra, acabando, outra teia menina-do-olho intocada pela lâmina da acção. Acende e apaga. Um qualquer se acende, se se toca. Pedra circular, onde o buraco da mó é esvaziado do sentido motor, empalada até ao limite da escuridão. Sem fim, se toca. Acende e apaga. Apaga.    

Um pedaço de chapa fora de si, recortado sobre a noite, iluminando-a com a ferrugem dos seus tempos mortos. Uma família de aborígenes, um olhar que não aguento, de quem me não lembro digo para mim; fotografia datada no verso, pela mesma mão que os afasta para lá da memória; seus nomes e o meu são mesmos daquilo que desconheço de vista. Acende e apaga. Sem se tocar, ainda assim é um ruído que se acende. Apaga.  

Datas várias, dias seguidos, uns atrás dos outros riscados a lápis, uma conversa ferida aberta sobre a pele escura das palavras. Estou assim, de plantão ao que fica de pé por dizer. Acende e apaga. Apaga.  Os motores coração de tudo a funcionar à mostra de todos. Na ponta da língua, um arrazoado de sentidos disformes, multiformes, múltiplos de zero. Todos os instrumentos de corda, banidos neste dia de calendário. Se tocam. Rápido, uma vez e só. Se apagam. Na parede de material dúctil, se gravam a punho datas de nascimento das coisas já esquecidas, mortas e enterradas, de volta à superfície deste mundo faz-de-conta. O branco tem todas as cores, e nenhuma. No final de qualquer número na parede escrevo INSTÁVEL.  

De encontro à parede INSTÁVEL. Esticar o cordel à primeira fiada, de propósito desviar um nada à linearidade, a puxar ao sentimento do que se traça de INSTÁVEL. Sou de parte INSTÁVEL. Se toca. E sabe. Apaga. Acende e apaga.  

A tinta que há-de cobrir a superfície construída, toma a vida própria do gesto, se manifestando em curvas impróprias para a Grande Velocidade do Verbo. Nunca se tocando. Agora. Toca. Acende e apaga. Apaga.  

Rasga-se, na alvenaria da parede imagética, um vão, sem pressa; se abre aí um céu de poucas nuvens, marcado pela pauta das linhas de Alta Tensão.    

A serpente é avessa às esquinas; toma o lugar do morto às minhas costas, segurando, levando à boca, a máscara desfigurada de expressões minhas. Por cada escama que larga, é uma divisão que se ilumina de sentido. E tudo o que foi dito lá para trás, SE APAGA POR SI. Pois. A loucura é corpo que tem luz própria.     

Chego sempre depois da hora da visita. Depois. Alguma conversa com o porteiro. Conversa. De malucos. Estamos fartos, eu e ele, de manter sempre aquela mesma conversa. Atrasado. Diz-me «ENTRA» e «ALGUÉM QUE TE CARREGUE, NÃO EU, SEU POBRE DIABO». Não se importa e não quer saber, apenas pede que estacione o automóvel lá para os fundos, fora da vista de todos. Para quê tudo isto se não me demoro? Junto ali ao muro, empoleirado numa árvore, está meu pai, se segurando numa só mão a outra mão agarrando um saco de plástico, apanhando fruta da época que bom tempo aqui fora o permite. Sim. O enfermeiro deixa. Só por hoje. Hoje. É dia de vir aqui, visitar meu pai no manicómio.   

Luís Chacho


Já sois chegados, já tendes diante a terra de riquezas abundante

 

José Quarenta, de quarenta anos, antigo José Trinta e Nove, de trinta e nove anos,  lisboeta, desempregado, desterrado em apartamento T-0 em ruínas decorado com bolor e humidade nos tectos falsos e nas paredes e nos móveis e na roupa pendurada no armário, encolhe-se na cama a regressar ao útero materno, morde os joelhos, os joelhos ensanguentados, joelhos feios como a minha cara de velho, falhado, cara de quem não é bebé e perdeu dentes e esperança, acima de tudo esperança, que é o que confere graciosidade a esta mescla de poros e fluidos e ranço, ranço.  O corpo a doer no peito, é isto a ansiedade, um tornado a apertar o crâneo, desesperar por não ser hoje, por não ser amanhã o homem que não se foi em tempo algum. José remastiga palavras de William B. Yeats que descrevem o moribundo como um animal sem temor nem esperança, palavras a zoar desde 1982, ano primeiro de abandonos e de doenças nervosas, sente-se aquele moribundo seco para sensações boas ou más, seco para sentimentos, seco como uma poça exposta ao calor de julho, lama feita barro que se desfaz mediante pisadela.  As semanas passam, ora bolas, semanas a passar, que lugar-comum, que falta de domínio linguístico não ter outra forma de dizer que as semanas se sucedem sem que algo diferente das costumeiras tragédias diárias converta o vazio existencial numa vida interessante e bonita e digna de ser vivida. Os cães ladram, raio dos bichos, nem a lei da pantufa os apascenta, cães frustrados, por passear, a largar fezes pela casa. O carteiro, santo e gordo carteiro, a dormir na caminha até às duas da tarde, sem trazer as cartas fundamentais, cartas das namoradas, por exemplo, cartas que não sejam para pagar a caríssima electricidade. Não o chamam para entrevistas de emprego, para isso não me chamam, ai se chamam, e os caminhos para o dinheiro, que caminhos para o dinheiro? Ao ler numa manchete de jornal que o pessimismo é uma profecia que se realiza, pensa na quantidade de vezes que viu realizadas as suas profecias. Tantas vezes a avistar o apocalipse, a ser profeta da desgraça, a viver o pior, a saborear dores que mais ninguém sofre. José afunda a testa na almofada e diz deus e arrepende-se porque deus não existe ou porque deus é demasiado grande ou porque nada, jura que um dia mata o caniche, o idiota, e desata a correr até à linha do comboio, para fazer o quê não sabe, mas até à linha do comboio, talvez para morrer esmagado (mas o som dos ossos a partir, e a imagem dos olhos nos sapatos do transeunte desencorajam e não devia ser assim tão difícil morrer). Eu o cão, que cão, realidade, estas imagens na cabeça em remoinho, a confundir o passado com o futuro, o menino de quarenta anos a escorregar para dentro da barriga da mamã embarcada séculos antes, mais concretamente em 1504, para Alcácer-Quibir. E nada mais do que isto diz respeito a esta vida.  

 

 

 

 

 

 

 

Crítico de sensações

O teu mijo deve saber a mel, suspirava ele, vermelhusco, atarracado, meio a sufocar dentro do colarinho apertado. Vendia-lhe pelo eBay as minhas cuecas usadas, ruçadas. Quanto mais encardidas, melhor. Cobrava vinte euros pelos portes de envio, mais trinta ou quarenta pelo produto vendido, uma fartura ao fim do mês. Que importava o dinheiro se as cuecas conservassem uma fragrância ou uma emanação da essência orgástica feminina, como soprava ele, iluminado por omnipresente gravata dourada com a sigla T.A.N.G.A estampada na diagonal, totem exibido pelo mais destacado vendedor de seguros associado a firma sediada em Vila Franca de sei lá quantos. A internet constituiu trampolim para faustosos jantares, mariscadas, gambas de meio metro salpicadas de alho frito, pratadas de borrego regadas com jarras de vinho tinto fino, para mim aguarrás, mistela. Narciso, agente de seguros vip, garantia de apólice barata, pau para toda a obra, assim se apresentava este romântico envergonhado, a estender cartão da firma e a corar cada vez mais, quase a explodir. Submisso até mais não, gaguejava sem levantar as pestanas da mesa ou do volante ou da linha contínua a dividir a estrada. Superlativa astúcia e meticulosa planificação requereu arrancar um primeiro beijo. Perguntei se tinha réstias de bacalhau no queixo e, quando o Narciso Valdemar, eis o nome do pitosga, se aproximou para milimétrico exame, estiquei a língua e paralisei com os dentes aquele bigode fujão, a esbanjar pujança. Nasci astuta. A avó Clementina, que deus a guarde ou prenda para sempre, bem dizia que esta menininha aqui nada valia, e eu acolhia as suas palavras aparentemente insultuosas como um canudo académico. Nada valer é sinónimo de esperteza. Valdemar fugia de contactos físicos desses de fundir bocas e fluidos e de apalpar nádegas e de puxar cabelos e de gemer à custa de tanto entrelaçar pernas e de galopar e de truca, truca. As camisas azul bebé impecavelmente engomadas não se lhe desfraldavam. Aquela braguilha de aço intransponível era como um templo sagrado que apenas o credenciado sacerdote manejava. Narciso Valdemar era uma espécie de crítico literário ou artístico ou de esteta vocacionado para a contemplação e para as mais puras sensações. Trincava-me o salto dos sapatos e tinha erecções se o apodasse ao telefone de focinho de porco, pança de estrume ou testículo de rato, e morria de prazer se o filmasse vestido de mulher a limpar o pó. Ensinam os desgostos amorosos que tendemos, seres humanos, a desvalorizar uma felicidade que, não sendo absoluta, é tão real quanto as nossas tão queridas depressões. O velhote era doente por mim. Queria que o tratasse por pila pequena, pila murcha. Oferecia-me vibradores prateados. E eu adorava as prendas e a sua aversão ao ritual de acasalamento, e ainda mais o adoro depois de termos tropeçado um no outro em plena rua Augusta, encobertos por um céu cinzento de Novembro. Ele, condicionado pela mulher e pelos netos, pedia desculpa pelo encontrão e fingia não me conhecer. E eu, tratada na terceira pessoa e por senhora, perdão, cara senhora, de repente excitada e apaixonada e perdida, corria para os meus vibradores ou para os meus sonhos, chorava pelo Valdemar, o poeta, o Van Gogh dos prazeres sexuais, o homem da minha vida. O homem que não voltei a ver.

Diferente em tudo da esperança

Pintura de Eric Zener.

Pintura de Eric Zener.

Terapia, que terapia.  Gatafunhava e apagava, mascarrava a palma da mão e os dedos e a cara, amassava o papel, as palavras falhavam o alvo, atirava folhas ao chão, rosnava bosta de cavalo, escrita de bosta, atulhava de fanicos o quarto da cachopice, roía tampas e canetas, os dentes faziam tic-tic-tic no plástico, escrevia, aquilo não era escrever, grafava uns traços com a ponta da bota, parecia que era da ponta da bota que os rabiscos desabrochavam, e o que se lia no caderno mal abrangia um drama existencial sentido como intransferível para códigos linguísticos: «Se não te vir mais, quero que saibas que te adoro.» Se, horrorosa combinação, estafava começar frases com se. E o adoro, tão meloso. Pensava na separação. «Se um dia me deixares.» Mais uma folha a voar pela janela, pateta. Teria dado jeito aprender a escrever. Se e se. «Se me abandonares, dou um tiro na boca.» Radical, radical seria premir o gatilho sem conversas prévias, evitar teatros. «Salto da ponte.» Jerico. Saltaria da ponte e subiria a serra de bicicleta e rezaria o terço e fornicaria as beatas no fim da missa. Mastigava o papel, mandava as gavetas da escrivaninha contra o estrado da cama. Até a falar para dentro mentia. «Por ti emprego-me nas obras, carrego baldes de cimento. Ver outras mulheres é como ver nenhuma.» Frases de chachada. A cunhada. Pausa para amaciar os testículos. Amava-a e amava a namorada e a sogra e a si próprio, amava e odiava, se calhar odiava mais do que amava, não distinguia sentimentos. Amar. Odiar. Sublinhava, torcia o nariz, os vocábulos sabiam-lhe a algodão doce, a enjoo. Era impossível afastar uma fêmea de perna aberta a disparar ordinarices. Não resistia. Não fazia o esforço. A cunhada a rasgar as meias, as cuecas, a pedir uma demão de vermelho nas unhas, a encaixar nua no macho sentado na sanita. Dizer que não. Que viesse outro e recusasse o filete. «Tu és ela e ela és tu e eu sou as duas e os três somos o mesmo, a soma dos três dá um, na hora da morte seremos pó misturado num balde, e se não estivermos os três a planta seca.» Outra folha rasurada. Plantas secas em vez de peito, de tambor. Parras em vez de tum-tum-tum.  A parra murchou. Substancial alteração. O pénis murchou. O pénis murchou, deu um nó e explodiu. Escasseavam escribas de gabarito, eram tão raros que não escreviam. Dava voltas na cadeira. Não transpunha os sentimentos para o papel, ora que bela terapia. Exercitava a caneta: «Somos as estações do ano, frio, calor, nervo, tremuras.» Que fracasso, a beleza interior esquartejada no papel. Soava ridículo. Somos as estações. De modo nenhum. «A distância assusta, gostar de ti, ires para blá, blá, não te blá, blá, a distância é pânico.» Palha. O tal falhar melhor. Falhar pior. Dizes que te afastas, abres essa possibilidade. «Se não te vir mais. Perguntei se gozavas e disfarçava o pálido incómodo. Conheci-te ontem. Sofia, o meu passado, absurdo, nem tem cabimento mencionar o passado, coisinha deprimente. Não me canso de ti, não me canso da tua irmã. Não me arrependo, não sei quem sou, assalta-me esta dúvida, não sei quem sou, vocês assemelham-se a mim, respiro em ti, nela, pertenço aqui e ao universo. Não saber quem sou, nunca soube, a minha luta deveria ser descobrir-me primeiro, amar-me primeiro e depois aos outros. Ando de olhos fechados. O avião despenha-se no oceano, perde-se a vida, estou de olhos fechados, o autocarro atropela-te, definhas na calçada, não reparo, não compreendo, não fui a tempo de merecer outra coisa para além da culpa. Cercado por quilómetros de mar.» O cidadão universal compunha a gola da camisa, clareava a voz com um escarro e rescrevia cidadão universal, cidadão anão, ninguém. O que de bom acontecia, e era tão pouco, vinha com atraso. As mulheres não escapavam à regra. Duas décadas ou, mais precisamente, três décadas de virgindade atestavam a demora. Trinta anos agarrado à mão, a salivar por rabos e seios fugidios, a acenar à dama do quiosque, adeus, vais tarde, a assobiar à vizinha do cabelo caracolado, comia-te toda, comias nada. Trinta anos a cambalhotar na penumbra. Esquecer os problemas, a infância, a mamã. Renascer. Não mostraria a carta, não existia carta. Retraçava. Comia. Palitava papel. Escrevera mas escrever era transcender a parte animal, prescindir da parte bruta, talvez não tivesse escrito, aquilo não tinha relação com a escrita, gatafunhos, migalhas.