O editor que namorava com Séfora

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Como sempre, de pronto me surge una agresividad que viene de algún lugar que desconozco. Hoy me peleé con un empleado de la biblioteca que me contestó y al que estuve a punto de golpear.”

- Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi. Años de formación

Quem afirmava que a vida de figura pública era mais relaxada do que a do comum pobretanas, não tinha noção do que era despender quarenta euros em vinho finório porque o fígado não filtrava qualquer zurrapa, do que custava acartar contínuas ressacas, do esforço para fraternizar com a escumalha que abancava à sua beira nos bares e restaurantes, procurando uma palavrinha, um jeitinho para publicar o manuscrito. Em transcendentes pensamentos se recreava Heitor, menos célebre na praça lisboeta pelo trabalho de editor do que pelas épicas carraspanas e cenas de pancadaria com jornalistas e outros divulgadores culturais, quando nos seus ouvidos entrou a asquerosa voz do animal que mais odiava, o Pereira, coordenador do suplemento literário de maior circulação nacional. “Ó Heitor”, exclamava o Pereira, com aquele seu sotaque provinciano que nenhuma admiração por Cortázar diluía. Fingir que não ouvia resultava pior. O Pereira latia mais alto, vagia: “Ó Heitor, tenho boas novas, boas novas a sério, desta vai gostar, recenseei-lhe um livro, uma pedrada no charco, aquilo é poesia a valer, até lhe atribuí cinco estrelas.” Heitor estremeceu com o vocábulo estrelas, como estremecia ao contactar com gente que tratava livros como fardos de palha, jumentos que analisavam literatura à dentada. Mantendo a elevação que lhe era habitual, Heitor passou um primeiro momento de impulsividade em silêncio, assim evitando asneirolas e tentativas de agressão, e ao acalmar-se abriu a enciclopédia britânica que era a sua boca: “Cinco estoiros nessas bochechas de besugo atribuo-lhe eu se não cerrar a bocarra.” Jamais alguém se chocaria com um comentário deste calibre, ainda para mais vindo de um renomado editor que, exceptuando dois ou três escritores cuja genialidade se devia a conhecerem-no da noite, do ambiente de farra, se recusava a publicar fosse quem fosse, mesmo talentos já publicados por outras editoras. Ao Pereira, que se sentia muito, mas muito orgulhoso mesmo do seu posto de coordenador literário, chegando até a confundir o que era a sua pessoa com as páginas do periódico para o qual escrevia, caiu tão mal a fúria do editor que lhe disse de tudo: que depois de Herberto não mais era possível escrever poesia, que a editora de Heitor tinha os dias contados, que aquilo era projecto para os amigalhaços, que lhe recenseava os livros por pena, por apiedar-se da decadência, do que irreversivelmente apodrecia. E desabafou Pereira até perder o pio de tão rouco, até transitar da fase da raiva para a da pena e da amizade que poderia ter sido e nunca chegara a ser por pura selvajaria. Em dado segundo meditou o editor se dariam pela ausência do crítico literário se o ofertasse como sobremesa a porcos. Se matasse à facada aquelas recensões de cinco estrelas. Crítico e editor brevemente se miraram, cada um a avaliar as chances de vitória num hipotético combate, cada um a rilhar os dentes e à espera do primeiro soco. “Inimigos como sempre?”, bocejou o crítico, estendendo o braço para o aperto de mão, como que a concluir a interacção. Heitor, com o famélico estômago às voltas, esgueirou-se para dentro de um táxi sem se despedir do rival e arribou numa tasca, onde o aguardavam um suculento bife frito e duas garrafas de vinho tinto. Ainda durante a madrugada, a cair de bêbedo e sem dizer coisa com coisa, acabaria por colapsar entre os seios de Séfora, terna mulata que o acomodaria, adormecido, em cima das grades de cerveja armazenadas na cave do clube de striptease. 

O Faulkner do Algarve

Página de um manuscrito do Faulkner real

Página de um manuscrito do Faulkner real

Escriba virtuoso, com pancada para o narcisismo e a estracinhar a mioleira com uma obsessão suicida que a medicação acelerava, Franz Santos  —  o Santos herdara do pai drogadinho e o nome Franz fora roubar a dicionário de pseudónimos achado na biblioteca da junta de freguesia —  anexou nota biográfica ao manuscrito enviado a editora de renome, mas não uma nota de somenos, padronizada, antes um punhado de violáceas palavras que resumiam os seus sentimentos a respeito de si mesmo:

“Franz, nascido a 13 de Setembro de 1978, autor de linhas que em estilo e em génio se equipara a uma espécie de Faulkner metido numa casa de putas.”

Lambido o envelope, enviado o manuscrito, rumou ao café da esquina a trincar cigarro, a cuspir fumaça e a convencer-se de que daquela vez é que era, que terminara o tempo do anonimato, que livro tão fibroso e rendilhado como o que escrevera seria o trampolim para uma boa editora, depois para os jornais literários e para as entrevistas e para o Prémio Nobel e para a imortalidade. Apesar de tantas rejeições. Tantos nãos. Apesar dos séculos a alimentar o ego em isolamento, a idealizar o estrelato, a dizer ao espelho tens talento, tens talento. Apesar da pistola no bolso a servir de comprimido SOS, pronta para resolver por via de balázio súbitos anseios relacionados com o paradoxo que era ambicionar conquistar o universo e, ao mesmo tempo, possuir míseros tostões para um bitoque e uma noite quase bem passada em espelunca na companhia de uma romena com tantos calos nos dedos dos pés como dentes na boca. 

A tasca do senhor Fernando, ou melhor, Nicole, esfinge oriunda do Maranhão, empregada da dita tasca, era o centro de todos os escritos oferecidos à humanidade por Franz. Portento de oitenta quilogramas a rebentar pelas costuras, loira de um loiro caseiro (tinta loiro claro, sete euros no minipreço), abonada em termos de peito e de borbulhas, Nicole, de certa maneira parecida com um pónei, figurava nas páginas de Franz como uma guerreira pela pobreza injustiçada, que enfrentava as adversidades abrindo o decote e levantando a saia a troco de dinheiro num prostíbulo. Ao raspar ao de leve no braço do escritor, Nicole, invariavelmente feia e sorridente, ocasionava imaginativo conto de cariz autobiográfico em que Franz se imaginava num quarto vermelho, a lançar notas ao ar e no marmelanço com a brasileira. As suas histórias eram vira o disco e toca o mesmo, Nicole de perna aberta, Nicole a roçar-se, Nicole assim, Nicole assado. Às cartas de editores a aconselhar mais diversidade temática, Franz respondia professorando que, para além de não ter culpa de amar mulheres feias, os seus estudos ficcionais e não-ficcionais em torno de Nicole eram secundários, dado que o que sobressaía ou merecia ser louvado ou apreciado, como música clássica, era a escrita lírica, faulkneriana, mais faulkneriana do que a própria escrita de Faulkner, que nascera na rica América, e ele, Francisco no berço, Chico durante a infância, pertencia ao Algarve. E o pior era não ser compreendido pelos editores, acabar calado, com um copo e uma caneta à frente.

Pátria, pouca terra (ou uma história que me contou o meu pai, alferes)

Santa Apolónia, guerra de África ser nossa.

Tem o peito em ebulição o alferes de convicções empurradas dentro por poderes que se não discutem por serem um murro na mesa. Temos noventa e quatro à nossa responsabilidade, diz um colega que aparenta os músculos flácidos de certeza de a responsabilidade ser do alferes do peito em ebulição.

No ar, só o redemoinhar sonoro do comboio a adivinhar Lamego e a saber o depósito que leva - noventa e quatro, nada prontinhos para a missão da pátria. A prontidão aqui é coisa que pouco importa, tanto faz se quer ou não. Vai. O nosso alferes decide a última bota a entrar na máquina, manda seguir.

Noventa e quatro, o alferes, o colega, o comboio, Lamego, a guerra, África nossa.

Com a voz pouco certa, o colega para o alferes Diz um que quer ir à casa de banho, Quem?, Um dos noventa e quatro, Pois que sim, que vá.

Quando no poder, mesmo que um subpoder, o corpo fica numa retidão inabalável, só o leve sobe e desce da cabeça, pois que sim, que vá, certo, certo de que à pátria nada se nega,  inquebrável, não moldável.

O comboio, Lamego, a guerra, África nossa.

Outro a pedir a casa de banho e Pois que sim, que vá. Seguro, o nosso alferes, apesar de o peito lhe dizer que o medo o invade ainda manso.

O comboio, Lamego, a guerra, África nossa, Santa Apolónia já longe.

E outro que à casa de banho. Outro. E outro. E outro. E assim outro e outro. Que sempre se sabe que as vísceras apertam quando poderes que se não discutem, de modo que uma certa compreensão demove o aço do nosso alferes.

Lamego, já depois de muitas horas esticadas pelo andar de pachorra do comboio.

Quantos homens, meu alferes?, sai do alferes um noventa e quatro que arrasta orgulho. Mandam sair os soldados da máquina e uma mancha menos densa do que em Santa Apolónia. Com isso, a retidão do alferes dobra-se um bocadinho, chega a balançar, o peito que teima em não inspirar.

Em fila, os soldados prontos para a contagem, um, dois, quatro, seis, oito... trinta. Trinta soldados, meu alferes. O peito teima na paralisia, mas nisto o colega de Lamego Quantos entraram no comboio?, Noventa e quatro, estremece o nosso alferes, e vai o colega Está ótimo, está ótimo, há quem tenha chegado com dez, bom trabalho. Embora ainda não certo, o corpo do alferes começa a tranquilizar-se.

Trinta soldados e o campo de treino de Lamego. Quem de noventa e quatro tira sessenta e quatro de vísceras frágeis fica com trinta.

 África quase nossa e vísceras apertadas. Que à pátria tudo se deve.

(Até as vísceras, alferes?)


O Marco Aurélio de Odivelas

O Marco Aurélio de Odivelas, descendente do imperador romano e fervoroso chupador de cigarros sem filtro, navegava no seu Peugeot vintage, colheita de 1994, arrebatado pela música romântica de alto gabarito que roufenhas colunas bufavam, no exacto momento em que uma descarga eléctrica proveniente de um buraco negro no espaço lhe plantou na cachola a ideia de contar à esposa que o batom que trazia na camisa e no focinho pertencia a Adélia, colega de repartição que, desde o seu primeiro dia de contrato, comparecia no trabalho embonecada por saias que lhe revelavam entre dez a quinze por cento das nádegas, e que as suspeitas fragrâncias que por vezes lhe empestavam a viatura cheiravam ao pescoço da tigresa Adélia, setenta e três quilos de pura delícia, e que um bilhete esquecido tempos antes na mesa de cabeceira, contendo a mensagem “rua das viúvas secas, nº 73, 2º esquerdo, abrigo de amor, beijoca grande”, constituía GPS que o remetia para o colchão eléctrico de Adélia, exótica beijoqueira, a pôr língua em tudo, até nos dedos dos pés, e que os amuos recentes, a falta de disposição para conversas, as lambadas na miudagem e os pontapés no rafeiro Scooby tinham origem num ardor que lhe rasgava as tripas ao recordar o cabelo platinado e os saltos altos e os decotes que nunca resguardavam os sedosos peitos da divorciada Adélia.

- De onde caiu o martelo?

Que a esposa estrebuchasse, estracinhasse as vestes à dentada ou pranteasse perpetuamente por sonhos aniquilados, isso compreenderia Marco Aurélio, afinal eram mais de vinte e cinco anos de casório atirados à sarjeta, sem mencionar o luxuoso apartamento junto à Ramada ainda por pagar ao banco e outras dívidas que divórcio algum abateria. Agora que a sua senhora se encrespasse e lhe rachasse a cana do nariz ao murro, com situações dessas nunca a sua alma virada para a moderação contara. Ainda a boca não desembuchara o nome/poema “Adélia” e já uma mão fechada o punha a roncar como um anjinho caído do céu. Este impulsivo, mas nem por isso causador de arrependimento, gesto da desonrada Pureza, logo pelo filósofo de Odivelas considerado mais grave do que adultério e merecedor de queixa na polícia judiciária, inauguraria uma nova fase do seu pensamento, resumida pela seguinte jóia: “És menos responsável pelo que te sucede do que pelas tuas reações aos acontecimentos.”

Aquartelado num t-1 apimponado por jardim e vista para um bairro de lata na Amadora, e por isso a fazer uma vida de solteiro que não apascentava um medo de dormir sozinho nascido na meninice, Marco Aurélio não tardou a ofertar anel de noivado à cavalona Adélia e a dar-lhe rédea solta para o imoderado uso de cartões de crédito, e não muito a seguir vieram o mau-humor e as discussões e desilusões como a de constatar que, desprovidas de meias, as pernas de Adélia exibiam salientes varizes e que os peitaços, aqueles peitaços lindos, agora desciam ao umbigo quando Adélia desmaiava na cama a desfazer cigarradas, e tudo isto acabaria por descambar na revelação de que Adélia encontrara outro garanhão, neste caso não tão garanhão, que o doutor Margaça, desde aquilo da asma e do derrame, desafortunado, safava-se o dinheiro. Marco Aurélio, moderado, aceitou as traições, ele próprio se dirigiria à ex-mulher, pedindo muito moderadamente para regressar a casa, e mais bofetadas lhe inchariam as bochechas.  

- Não perco a serenidade.

Adélia partiu com o garanhão, perdão, doutor Marçal, viúvo, contabilista, pessoa bem-posta na sociedade. Estava-se numa manhã de nevoeiro, Marco Aurélio de Odivelas dizia adeus da janela, adeus à Adélia das fotocópias, e esta, sem olhar para trás, a espetar a língua no bigode do doutor Marçal, um nojo. Também a ex-mulher encontrou novo parceiro, coisa séria, amor em estado selvagem.

- Não há mal que sempre dure.

 Marco Aurélio, sereno como o manso mar das sete da tarde, dava passos curtos e firmes, ia ao fundo, as ondas passavam-lhe por cima, Marco Aurélio não via nada e a água gelada engolia-o e ele engolia a água, lembrava que tudo começara com Adélia e que não se arrependia de nada, que fora feliz na perseguição dos seus desejos, não se arrependia de ter vivido cinco minutos.

O Minotauro arranja um emprego

Léo Caillard (Hipsters in Stone, 2012-2016)

Léo Caillard (Hipsters in Stone, 2012-2016)

...and as he sank below the crust of the visible world, into his dazzling kingdom, he understood that he had travelled a long way from the early days, that he still had far to go, and that, from now on, his life would be difficult and without forgiveness. 

Steven Millhauser, “In the Kingdom of Harad IV”

 

O cerne da questão é que odeio estes homens, que se têm servido do meu tempo como se fosse deles, com as suas perguntas inúteis e impiedosas, que no fim servem apenas para que o seu poder sobre mim seja afirmado, e que me obrigam a dar ordens inúteis e impiedosas a outros, para que o nosso tempo seja controlado, a nossa energia destruída, a nossa criatividade drenada. E eu que até tinha conseguido escapar a isto, a esta vergonha, a esta miséria humana, sou eu também agora um instrumento disto. O tempo que de outro modo eu estaria a empregar em manter-me impecavelmente humano é de outro modo desperdiçado em tarefas que a cada dia me desumanizam e por isso me degradam.

            Nos primeiros dias ainda conseguia parar e chegar-me à janela, agora não consigo suportar o mundo lá fora, tenho inveja da liberdade daqueles que enchem as ruas, daqueles que podem escapar por um minuto. Vivo ultimamente para esse grande dever: escapar por um minuto, porque é só nas poucas horas do dia em que estas funções que me foram conferidas param de me oprimir que estou vivo. Tudo o resto são horas mortas. Nem sequer inveja posso ter do meu chefe, muito menos aspirar a ser como ele, que nas reuniões com clientes e outros chefes tem o hábito de cobrir os genitais, o que, porque ele é alto, o força a curvar os ombros e levantar demasiado os joelhos, como os defesas nos jogos de futebol quando a equipa adversária pode reclamar uma falta ou como um flamingo.

Tudo nestes trabalho é uma arte de cobrança, a cobrança que é necessário exercer a cada erro ou mediocridade que é cometida. Este é um emprego que existe porque as pessoas cometem erros ou fazem algo medíocre e o meu trabalho é vigiar isso, corrigir os erros dos outros, dependendo de quem comete o erro, apontando a sua estupidez com um paternalismo de pendor neocolonialista ou, se o erro é cometido do outro lado da linha de produção, corrigindo o erro sem o fazer notar, o que inevitavelmente gera mais erros. Na verdade, e em última análise, tudo isto é um gigantesco erro, que vem do nosso gosto de mentirmos a nós próprios, enterrados como toupeiras numa rotina que nos anestesia na ilusão de que a vida dura tanto que pode ser completamente desperdiçada em tarefas estúpidas, na completa falta de uma causa que pudesse ser digna do nosso amor. Há dias em que tenho vontade de me trancar na casa de banho e vomitar. Há dias em que tenho vontade de me trancar na casa de banho e embalar-me com choro até ao juízo final. O que é que pode ser a minha felicidade a partir daqui? Não sentir tanta tristeza, aprender na minha vida de indivíduo, na minha vida de alguém que não é um agente ao serviço desta máquina suja, a não oprimir os outros, a deixá-los em paz para que eles me deixem em paz. A ternura a que aspiro agora é essa: deixar os outros em paz para que eles me deixem em paz. É difícil combater a monstruosidade das horas, não morrer de tédio. Reparei há alguns dias que se me posicionar num certo ângulo consigo sentir o coração a bater-me no ouvido, o que me torna num grande tambor vivo, uma máquina só feita de ritmo, mas o ritmo do meu corpo é tempo e é as exigências de merda destes homens brancos, vestidos de fato e gravata, sem sonhos, sem paixão, sem amor por nada que não seja o seu lucro, que, conjugado com a nossa pobreza, lhes permite consumir todo o calor do nosso corpo, até que, pela nossa vez, nós nos tornemos cada vez mais preparados para ser extintos.

Quando atravessei as portas deste gigantesco edifício cinzento pela primeira vez (na verdade é azul, mas só o consigo entender como cinzento), a primeira coisa que eles fizeram foi dar-me um cartão que lhes permite controlar a que horas entro e a que horas abandono o edifício. E foi aí que eu entendi: deixou de ser possível eu desaparecer para qualquer parte a qualquer hora do dia, e deixou de ser possível certas horas da minha vida serem só minhas, numa perspectiva utilitária: usadas por mim no ofício de estar vivo. E este contexto, não haja dúvidas sobre isso, é pensado para uma coisa, e para uma coisa apenas, para nos tornar todos iguais, para nos fazer a todos reagir de certa maneira. Normas e códigos são-nos repetidos diariamente, e protocolos de resposta devem ser decorados para cada situação. Existem guiões, formulários, processos, requerimentos que desencadeiam reacções que devem ser seguidas sempre de acordo com o mesmo padrão. Para que nada atrapalhe o ofício sagrado da grande máquina, ao qual é nosso dever sacrificarmo-nos.

A incapacidade de um asmático de respirar parece-se com as minhas horas de trabalho. A pouca humanidade de que disponho é uma coisa que demora uma incrível quantidade de horas a ser reunida e que se conserva com a precariedade de dentes-de-leão num dia muito vento. Ao fim do dia saio do comboio e corro para a livraria mais próxima e enrosco-me num dos bancos do primeiro andar com este caderno e esta caneta na mão porque preciso de sentir que algo da minha vida, da história do que em mim tem estado vivo, é resgatado por este gesto. Porque é muito pesado o extremo da necessidade que carrego e o meu trabalho é escrever isto, tentar conservar as breves iluminações de humanidade (no caminho para aqui, o rapaz na tasca de burritos, sentado ao balcão num banco alto, com os headphones azuis na cabeça como uma fita, a comer com fome o seu jantar que hoje acontece mais cedo, para onde irá ele a seguir? porquê tão cedo ou tão tarde?, ou os dois velhos bêbados à porta do bar, um deles a segurar o outro enquanto ele chorava) que fugazmente se acendem mesmo diante dos meus olhos. E eu devo dizer que agora preciso, mais do que nunca, que elas se acendam completamente diante dos meus olhos como as imagens no ecrã de cinema para o espectador que se senta na última fila, mesmo em frente ao ecrã. E não, nada disto é sobre luto, é antes sobre preservar quem sou, para que a estupidez em que diariamente tenho desperdiçado a minha vida não me destrua completamente, para que alguma das coisas que têm sido para mim sagradas não apodreçam completamente, não me tornem podre com o seu apodrecimento.

E houve mesmo uma altura em que acreditei que nada podia destruir o meu amor. Percebo agora que me deixei levar. Que o meu amor é constantemente ameaçado e que aquilo que o pode matar não é um golpe subitamente mas a banalidade de cada dia. Os dias despidos de qualquer possibilidade de beleza, conhecimento, encontro, ou descoberta. (Não encontro ninguém há meses, continuo a procurar e não há ninguém.) O frio e o medo são estas coisas e o trabalho da minha morte é o ofício porque eles vieram. Estes dias todos iguais que geram noites iguais umas às outras, que me fitam com as suas caras sem olhos através destas longas filas de secretárias e computadores que mesmo no verão só existem e só prosperam na escuridão de todos os invernos, de toda a falta de ternura, liberdade, ou calor. E podia ser que eu aceitasse que alguém me viesse dizer que nada disto é assim, que isto é apenas uma situação. Mas é isto ser apenas uma situação que permite que esta frase seja aceite, que esta maneira de viver sem sangue, sem amor, sem desejo, nesta perseguição tonta e vazia dos deuses do lucro e da velocidade (o mais importante de tudo é ser muito rápido, para produzir cada vez mais para gerar cada vez mais lucro, do qual, nós que o geramos, beneficiamos numa percentagem ao nível da esmola), seja confundida com a normalidade, com o que uma vida humana deve ser. Não há consolo nenhum para isto e não há nenhum outro perdão que não deixar esta guerra e este ódio crescer dentro de mim, até se tornar no meu jardim, alimentar-me deste total desprezo pela maneira como estou vivo aqui e agora, um desprezo que me inclui, uma vez que eu não tive outra escolha que não aceitar isto, trazer este contexto para cada dia da minha vida, que a partir daqui será cada vez mais difícil e cada vez mais imperdoável.

Oxford, 7 de Novembro de 2015