A verdade custa

Fui deveras mimado na meninice ou, parafraseando um senhor muito chegado ao meu coração, tive tudo e não tive mais porque fui madraço e nunca quis mexer um dedo.  Uma criança de doze ou mesmo de catorze anos que não labute a carregar tijolos é alguém que não vai a lado algum na vida. É de pequenino que se torce o pepino. Sofro por ser este triste que para aqui anda e sempre andará (não sei citar melhor), condenado a não saber rebocar uma parede ou conduzir um autocarro. Angustiado por me ter tornado nesse zé-fernandes que auguraram que seria, deambulo pelas ruas de Lisboa buscando consolo em insignificâncias como, por exemplo, a obra de Yourcenar que trago na mochila. Não contrariei as pragas. Tentei a magia do sapo mas não resultou. Cuspi no prato. O que merece quem cospe no prato? Deram-me tudo e não estive à altura das circunstâncias. Recordo a ternura de quem me criou e aperta-se-me o peito. Recebi mensagens comoventes, a roçar o romântico: "Falso mentiroso epócrita nunca mais cá venhas."  O que merece um desertor? Os melhores croissants que comi foram aqueles que me ofereceram na infância. Só os comia quando tinha dores de dentes. Como não se lavava os dentes lá no cortiço, achavam que se tratava o nervo afectado pela cárie atirando-lhe açúcar para cima. Bastava começar a zurrar para me atufarem de doces.  Eu cabeceava os joelhos, desesperava, pensava no dente e na dor e na vontade de arrancar o dente de qualquer maneira. Como o ser humano é piedoso e faz os possíveis para auxiliar o próximo, traziam-me croissants de chocolate. Come, miúdo, que a dor passa num instante.  Ai se passava. Uivava o dia todo. Bochechava com aquele liquído verde que na aldeia servia para qualquer problema relacionado com a boca. Felizmente, existia o dentista sapateiro, alma caridosa, que por quase nada arrancava o dente. Muito rude da minha parte tornar públicas certas coisas. Até a madrinha ficou perplexa com esta falta de senso. As velhotas da junta de freguesia juntaram-se num cordão humano para impedir o mal de lá entrar. Pondero procurar uma bruxa para me livrar deste espírito maligno. Sai de mim, demo, liberta-me do ve-ve-ne-no, permite-me ser outra coisa que não co-co-bra ser-pen-pen-pen-te. Mas é cara a consulta na bruxa e, confiando mais nos químicos, talvez mais valesse telefonar a um psiquiatra. Certo, certo é que assim não posso continuar. Estou cada vez mais maricas, leio um Lobo Antunes em dois dias,  em breve uso lingerie ou roupa apertadinha ou meto um risco ao meio no cabelo ou começo a citar Joyce em público. Numa ocasião, fui interpelado por uma indiana que me fanou cinco euros, mais dois para umas flores brancas e mais dois para umas "novenas" que me limpariam do negro negro negro que me cobria a face. A indiana rezou tanto pela minha face que comecei a ficar sem barba. Quem a avistar que lhe diga para parar de rezar a meu favor, pois o negro está a desaparecer-me do queixo e não da alma. Pelo andar da carruagem, isto já só se cura com Minoxidil. Como terminar de forma a que se entenda a mensagem que pretendia transmitir? Talvez dizendo que a verdade custa mais a engolir do que as patranhas que acumulamos ao longo da vida. Eles vencem sempre que nos calamos.