A educação na serra

I will not play at tug o' war.
I'd rather play at hug o' war,
Where everyone hugs
Instead of tugs,
Where everyone giggles
And rolls on the rug.
Where everyone kisses.
And everyone grins.
And everyone cuddles.
And everyone wins. 

Shel Silverstein

 

 Antes de chegar à casa
para assistir ao leve tremor das araucárias
descubro que a edificação fora projetada por Lúcio Costa
em algum momento perdido do século passado
e que, há poucos anos, o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
decidiu, mesmo sob protestos de moradores locais, erigir uma igreja
ao estilo gótico no frágil coração do bairro
Também descubro que parentes do dono da casa
um imigrante belga que desembarcara na Normandia
para lutar contra os nazistas
ajuizaram ação popular com o objetivo de interromper as obras da igreja
ou de, subsidiariamente, compelir o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
a implementar uma série de obrigações: a construção de estacionamento próprio
para os frequentadores, o isolamento acústico do templo, a adequação
da infraestrutura do prédio à rede de água e esgoto da cidade
etc., etc., etc.
Descubro, ainda, que o dono da casa – hoje quase centenário – casara-se
com uma imigrante americana, de família espanhola, após tê-la conhecido
em um evento da empresa de abrasivos em que ambos trabalhavam
Na época do encontro, ainda não existiam nem a casa, nem a igreja
tampouco L., o neto mais bonito do casal de imigrantes
que aparece, ainda criança, em algumas das diversas fotografias
espalhadas pelos cômodos do lugar, fotografias que aprenderam
a conviver com a farra das traças, com o cheiro da madeira
castigada pela umidade, com os risos que se ouvem
do lado de fora dos porta-retratos
O verão não grita sobre estes pinheiros, recém-plantados
para ocultar a efígie austera da igreja
que o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
mandou erguer nas imediações
As noites também preferem ser compridas
a emitir qualquer barulho que atrapalhe os vagalumes
ou as lagartixas à espreita dos vagalumes
Na rede branca estendida entre duas décadas, Ana P. me lembra Silvina Ocampo
ao brincar de esconder o rosto dos meus olhares, que, mesmo depois
de todo esse tempo, não cansam de cruzar-lhe as poses e as caretas
como a rios tímidos
Então, abandona a rede, joga-se na poltrona e espera a próxima chuva
enquanto J. costura, desmancha e torna a costurar
o sudário de sonhos que vaza dos seus desenhos inacabados
Não se fazem repúblicas sem novos desejos
e foi por isso – e não por causa da insolação – que P. ardeu em febre
dias depois de escutar um poema de João Cabral de Melo Neto
pela primeira vez na vida
Ana C. diz chorar sempre que lê O cão sem plumas
e se depara com aquelas imagens, insistentes feito prendas trágicas
A Ana C. de que falo nunca traduziu Katherine Mansfield
e segue tão viva quanto as esperanças de X., para quem o mundo
continua sendo capaz de fazer charme, apesar de tudo
Não quero ser obrigado a discorrer sobre revisionismo histórico
negacionismo climático ou crises constitucionais
Quero, isto sim, dizer que Clara também carrega, ao menos em parte, o nome
da mulher que amo
E. nos conta da sua infância em Miguel Pereira e de como o seu pai
é loucamente apaixonado pela música Nikita, cantada por Elton John
Com a câmera do seu celular, E. registra todas as nossas horas de distração no quintal
Ao fundo da tela, pode-se ver a arquitetura da igreja
Os pinheiros recém-plantados ainda são pequenos demais
para que se devolva à casa a sua velha paisagem.