crítica do juízo

é como descer a ladeira,
“descer a ladeira”, você diria;
e tem razão,
e todos os nossos dias já contados,
          grão a grão,
degraus na escadaria.

 e você, tão delicado, tão afeito ao certo
          ou necessário
requer algum dénouement,
velha honra em velho código
― guerreiro ou cavalheiro ―
mesura no gesto de lenço
ou o toque na aba do chapéu
           (capricho no desuso): 

jardins com etiqueta de botânica;
doses breves,
           mas intensas,
de café após o almoço
e ao fim da tarde.
           “ o acaso agora é regra,
não surpresa ou exceção;
           tudo é cor demais, a toda parte,
e a esquecida arte da grisaille?”

 ordem do requinte, o seu cinzento,
ou o prever de dobras num panejamento;
           havia planos para o cosmos e a cidade.
tentaram tudo e fracassaram
docemente: a rédea morre antes do cavalo,
e o resto, você diz, é natureza.

Crônicas mineiras

1.      A VIAGEM 

Como é praxe em todos os feriados prolongados, passei os dias de folga na pequena cidade de São Tiago, encravada no interior de Minas Gerais, onde Ana nasceu. Saio de casa na quinta-feira do lava-pés logo após o almoço. A profunda alma de Minas Gerais começa a me ser anunciada já algumas horas antes da minha chegada, mais precisamente a partir da parada para um lanche rápido e abastecimento num posto de estrada localizado já no fim da represa de Furnas, a poucos quilômetros da entrada de Capitólio. Do posto, tem-se uma visão ampla de um açude que se estende, silencioso, como uma pequena faixa de oceano. A intervalos, passam os carros em alta velocidade. Pedimos duas empadas e café preto, que é servido diretamente de uma garrafa térmica. Na hora de pagar, a balconista me cobra apenas as empadas. Digo que ela se esqueceu do café, ao que ela me diz que o café preto, por aqueles sítios, é uma cortesia. Agradeço e sigo viagem. O anoitecer vem quando estou em Itapecirica. A entrada e a saída da cidade são marcadas por igrejas, a da entrada mais solene, barroca, a lembrar as construções de São João Del Rey, enquanto que o templo da saída da cidade é uma casa oculta por um largo muro caiado onde estão inscritos os dez mandamentos. Sei que é a chamada hora do rush, mas o movimento de gente é mínimo. Numa esquina, um sujeito coloca, na carroceria da camionete, três cachorros. Algumas donas de casa andam à esmo. Um grupo de velhos espera, de cócoras, a culminância do crepúsculo. Um vento frio corre rente ao chão e o céu tem aquela frialdade violácea que convida ao sono e ao tédio. Com a noite alta, serpenteio por estradas sinuosas, entre massas de sombras e veículos que, no sentido oposto, cegam-me com os seus faróis de neblina. Quase chegando, é preciso desviar de um boi que, pastando, ocupa metade da pista. Finalmente em São Tiago, o frio é úmido como se houvesse acabado de chover, criando uma expectativa de orvalho. Pouco há para se fazer na semana santa, sobretudo nos últimos dias da quaresma, quando as pessoas cumprem as penitências que se impuseram como prova de fé. A maioria  das penitências consiste em ficar longe de bebidas alcóolicas. As mais singelas privam o penitente do açúcar. As mais violentas, ou tradicionais, dizem respeito à abstenção de comer carne vermelha. Sei que, na sexta-feira da paixão, é proibido o desempenho de qualquer atividade mercantil, de modo que se criou a seguinte tradição: as pequenas propriedades rurais da região doam aos pobres a produção de leite do dia. Todas essas pequenas propriedades, que doravante chamarei de roças, distam quilômetros da cidade e a elas apenas se chega por estradas de terra. A tradição ainda exige que os pobres a quem é destinado o leite caminhem até as roças antes do alvorecer da sexta-feira. Uma dessas roças pertence a uma tia de Ana e, mal chegamos após a extenuante viagem, somos convidados a irmos para lá ainda durante a noite para ajudarmos, durante a madrugada, na doação do leite. Argumentamos que o nosso cansaço é grande. Em Minas Gerais todas as relações sociais parecem orbitar em torno de negociações que, não fosse a alma barroca dos debatedores, sequer seriam necessárias, e o resultado dessa minha negociação por migalhas de sono é a promessa de que iremos para a roça na manhã do dia seguinte. Tudo parece calmo e resolvido. Estou dormindo no quarto  quando sou acordado, em plena madrugada, pelo meu cunhado, que, remexendo as gavetas, procura qualquer coisa que não pode esperar o amanhecer, e mais tarde pela mãe de Ana que, com uma alegria devota, entra gritando no quarto, confundindo sair na manhã de sexta-feira com sair às quatro da madrugada. É com um fiapo de consciência que relembro que, em Minas, os quartos de dormir gozam de uma ausência de privacidade apenas comparável a encontrada em qualquer hospedaria da ficção kafkiana. Finalmente, deixam-me dormir, ou melhor, a mim é concedido que eu durma como se eu fosse uma criança de cinco anos ignorante dos compromissos do mundo adulto.

Ah, o campo

I.

 

Não sinto a menor falta do campo. Com morar lá tantos e tantos anos (uma eternidade aproximada), acabei por me render a toda espécie de dualismo fácil. Envergonha-me dizer que houve para mim, em algum momento, o campo – e para lá da rodovia, uma cidade, o seu plural, acidentes (as estradas que nos cintavam). Rapidamente se impôs a necessidade de rarefazer um pouco as coisas, sutilizá-las – afinal, era uma vida que não se colocava, dava-se ao fim e ao cabo em qualquer canto. Suavizada a luz a que me apareciam de costume estas questões, pude finalmente concluir que toda terra é estrangeira para alguém. Reconheço, não é difícil atinar com este raciocínio; há mesmo nele certo ranço a lugar-comum; torná-lo uma segunda natureza – não precisar remontá-lo a cada vez, por exemplo, que pego numa câmera – isto sim me custou um bocado. 

II. 

Não sei se entendi a sua pergunta. Você quer dizer estes retratos? Não, não sei de quem são, são meus irmãos, foram passar o ano-bom no sítio de um amigo. Sim, parecem muito felizes.

Sebastianópolis abandonada

É tamanha coisa o Rio de Janeiro da boca para dentro

(Gabriel Soares de Sousa)
 

                I 
         De madrugada mataram um rapaz aqui na rua. Os vizinhos me disseram que ele foi tirado da cama aos berros, todo mundo ouviu. Aí atiraram nele. Morreu de pijama, quase na altura da avenida da praia. Não tinha família, pelo menos isso – os vizinhos disseram. Assim ninguém sofre.
          Anteontem (23/05/2013) deixaram a cabeça de outro rapaz no colo da estátua do José de Alencar, ali perto do Lamas. Tenho o hábito de acenar para a estátua quando passo por ela. É quase sempre uma saudação morna – vivemos perto um do outro, olá, eu te reconheço e reconheço a cidade porque você está sentado aí há mais de um século. Raramente passamos da troca de cortesias. Anteontem eu acenei para uma cabeça decepada. Mal consegui almoçar.
          A estátua é verde. Tem uns olhos entediados, as coxas magras de quem passa muito tempo sentado. Um caderno quase caindo da mão esquerda. Parece exausta. Sempre achei que era um cansaço arrependido: José foi petrificado assim para expiar a culpa daquelas sete cartas de 1867, nas quais defendia a escravidão: "A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves interesses de um povo. É quanto basta para merecer o respeito". 

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