maçã mal cabida

faz já dois candelabros que ela não olha para trás
uma mulher de olhar para trás
mas então agora é o prato chinês
os ossinhos do pato no canto perto
da mão esquerda
o garfo com seus dentes virados
para o quadro onde um cavalo e sobre ele
uma garotinha forçando o rosto num
raio de sol muito mal pintado num
tom de maçã mal cabida ali
pobre
pobre beleza pobre mal cabido ali
faz já umas três ou quatro eternidades que ela não olha para trás
metodologia de sondar sem ver
uma faca no assoalho de cupins
uma vaca bordada no guardanapo novo
uma mulher e um homem e uma roda de tortura
uma vaca bordada na cara da mulher

onde o homem maria de deus
uma propaganda de desodorante e uma cachoeira e a torradeira quebrada
uma vaca bordada na cara dela
e se ela se botasse a cantar e se
se ela botasse a querer lamber um peito marinho
e se ela se botasse
a pensar num estupro supracoreografado
uma vaca e três ou quatro búfalos que ela não
ela usa um terno cinco tamanhos maiores
faz treze luas que ela não
faz treze náuseas que ela não olha para trás
uma sala escura bordada no estofo da cadeira vazia
uma mesa tão longa que ninguém deu-se a bordar
um tipo incerto de deus que fez da incerteza da mulher
coisa bordada no quadro com a maçã sobre o rosto mal chaveado
cavalo sob menina rija sobre raio de sol fruto de fruta mal cabida ali
se ela se bota a voltar a olhar para trás
se ele se bota a pensar em sexo com talheres de azar
se ela se bota a criar uma boa superstição com taças
já uma colisão de ângulos entre a janela e o espelho que ela não olha para trás
se ela se bota a querer o tórax a devolver a coxa e a asa
se ela se bota a entortar o quadro
uma maçã e uma rigidez infantilizada e uma cor de tortura
uma carcaça bordada na cara da mulher
onde o homem maria de deus onde o homem
se ela se bota a cruzar os ossos
essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca
se ela se bota a estranhar os milagres ali sobre a mesa sob as unhas
se ela se bota a pentear a franja com o garfo
se ela se bota a cruzar os ossos ou os dedos ou as pernas
se ela se bota a contrair o útero se ela se bota a relaxar o útero
essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca
se ela se bota a contrair o útero entre o primeiro e o último sopro fatal
faz já onze moscas que ela não olha para trás 

ECDISE

1. 

em milagres faria intervenções

transformaria as perdas

em pedras palpáveis e membros fantasmas

em ambiguidades 

e logo cada caminho seria recrutado por determinismos

na época das moscas e aranhas

de observadores são os muros e os matos

de barulhos embrulhados permanece o ar

cada criança corre sua vida 

e se apressa no desmanchar do casulo

em desfazer seu ninho

no deslembrar de seu nicho

mas

os lobos guardam

caminham calmos

os lobos sabem empacotar vontades

2.

montanhas não existem por aqui

os rios cortam mais que lâminas

tu não és peixe nem anfíbio nem réptil

e esse teu coração pulsa nas mãos

pula

teu coração pula 

dele saem regatos por teu pulso

o centro de tudo é consequência

por isso generalizações se formam

3.

os quero-queros não representam anseios

mas insistem

não me representam

não insisto

na pressa os pés

e o leite

choramos a dor e o derramado 

no chão as coisas estão no mesmo plano 

mas existem coisas que não são coisas

assim como aqueles regatos insistem em sair por teu pulso

as horas veiam a presença

e embrulham o dia com jornais antigos

cozinham a existência em etileno

4. 

na minha continuidade as pausas são necessárias

pra remontar céus azuis de dias regulares

pra que o fio da meada não me perca

nas presas achamos pares

principalmente quando elas retiram suas fantasias.

Jonas

a William Zeytounlian

E veio a palavra do SENHOR a Jonas, filho de Amitai, dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até à minha presença. Jonas foge. Quem era ele para ir a Nínive, pregar? Dele riem já em sua aldeia, e Nínive é tanto maior. Embarca para Társis, ou qualquer dos pontos mais próximos do abismo, onde acaba o mundo quadrado. Céu de bonança, os ventos enfunam as velas, logo Társis ou o fim do mundo, longe de Nínive e da voz de toró e trovejadas do Senhor. À noite, no barco que balouçava tranquilo sobre as águas, tem um pesadelo terrível, uma tormenta se abate sobre eles, ameaça estraçalhar barco e tripulação, os viajantes clamam cada qual a seu deus, promulga-se de Jonas a culpa, lançam-no barco afora, um grande peixe o engole, três dias e três noites de digestão, a sua. Acorda, encharcado de suor. Chegaram a Társis, sãos, salvos. Jonas ali se estabelece. O tempo passa. Chegam notícias de que um homem, um certo Jonas, recebera a palavra do Senhor, fora a Nínive, pregara, os habitantes o ouviram, vestiram-se de saco de estopa, lançaram cinzas sobre a cabeça, o Senhor deles se apiedou, arrependeu-se do mal que queria fazer sobrevir-lhes, perdoou-os. Jonas sente uma nostalgia inexplicável, sem nome, dedica-se à plantação de aboboreiras, os negócios progridem, exporta para os quatro cantos, inclusive para Nínive. Mas há o sonho recorrente, o mesmo, que deixa de ser pesadelo, sonho pelo qual anseia toda noite, Jonas de volta no barco, uma tormenta se abate sobre eles, ameaça estraçalhar tudo e todos, os viajantes clamam cada qual a seu deus, promulga-se de Jonas a culpa, lançam-no barco afora, um grande peixe o engole, três dias e três noites de digestão, a sua. Mas Jonas agora avança na narrativa do sonho, passa a cada ano um pouco mais do ponto em que despertara naquela primeira noite do pesadelo agora sonho, Jonas no grande peixe, três dias e três noites, clama, clama, clama, o Senhor o ouve, apieda-se, o grande peixe o vomita nas areias, Jonas vai a Nínive, prega, os habitantes o ouvem, vestem-se de saco de estopa, lançam cinzas sobre a cabeça, o Senhor deles se apieda, arrepende-se do mal que queria fazer sobrevir-lhes, perdoa-os, é ele o Jonas de que outro Jonas, em Társis, ouve falar. Mas é apenas um sonho. Ele está em Társis, tem o monopólio da plantação de aboboreiras, mas caminha como se algas rodeassem sua cabeça, Jonas é um grande peixe com um Jonas em suas entranhas. Quando morre, rodeado de seus filhos e netos, seu testamento consiste de uma única sentença: Enterrem-me em Nínive. Proibitivos os custos, questões de saúde pública, transportar cadáveres em longas viagens pelos mares, cheiro de decomposição enojando os passageiros no convés. Os filhos decidem cremá-lo. Suas cinzas, espargem no mar.

ao condensar-se em terra

“O chão começa a chamar
as formas estruturadas
faz tanto tempo. Convoca-as
a serem terra outra vez.”

(Carlos Drummond de Andrade)

 

ao condensar-se em terra
o corpo
vence a ausência 

prenhe de coisas que
- despidas –
a vida deserta

saciando a sanha da
memória
com fome de silêncio 

(mas pode também o corpo
brotar do sal
ajuntar-se em flores 

circundando assim uma casa
estéril
com seus jardins carnais) 

medindo o peso de seus
nadas
em largas balanças de ar 

(ou construir horizontal
em véus
suas reminiscências líquidas 

estirando no leito as margens
ocultas
 do fixo que caminha)

Se ao menos não houvesse dúvidas

Se ao menos não houvesse dúvidas:
é aquela hora de bruma e de medo
e a relva, amanhecendo estiolada,
tem como raízes vísceras misturadas.
Se ao menos soubéssemos: sob o luar
Joana D’Arc é queimada e ascende
ainda mais translúcida do que uma brisa
desfeita pela fuligem – é aquela hora
de árvores pétreas e muros ensanguentados.
Se ao menos contemplássemos: arde
a cidade e somos nós os saqueadores,
nós os negros, os gregos, as troianas
deixadas ao estupro, aterrorizadas
(é aquela hora, a noite densa e terrível)
por uma suspeita que jamais se confirma.
Afinal, o que será esse rumor? Ratos
correndo no forro dos telhados ou torvelinhos
de ventos formados durante a madrugada?
Se ao menos uma palavra nomeasse
essa pedra abrasada encravada no peito –
mas não: é meio-dia, faz sol
e a praça central se afoga em claridade.