Terra fria

Acordei com o mergulho de alguém na piscina. A minha mulher dormia profundamente, a boca ligeiramente aberta. Quando acordo antes de hora proveitosa sei que é inútil tentar voltar a adormecer. Fui até à varanda e em baixo, numa espreguiçadeira, com algumas garrafas vazias à volta, estava um casal jovem. A rapariga olhava para a piscina e o rapaz enxugava-lhe as costas com uma toalha, cruzou os braços; encolheu-se, talvez o mergulho madrugador tivesse tido um bom efeito. O rapaz abraçou-a. Deviam ser sete da manhã.

Estava num empreendimento turístico no Sul. Um amigo e colega de trabalho acabava de se casar. Ao sair do quarto cruzei-me com o casal da piscina. Estavam em fatos de banho e deixaram pegadas na alcatifa das escadas. A alcatifa do hotel parecia existir para que os ingleses se sentissem em casa. Bastante cómodo quando se saía da piscina e se subia descalço para o quarto. A sala onde decorreu o banquete continuava como a havia deixado. Sentei-me na mesa onde horas tinha estado todo o dia a comer. Oito cadeiras à volta da mesa, uma estava caída. A toalha manchada com todo o tipo de cores, talvez faltasse o azul, o azul gélido quase transparente. O banquete tinha decorrido com animação e sem uma quantidade exagerada de momentos aborrecidos. O pior dos casamentos são os vídeos biográficos, a maioria centrados em abundantes poses para a fotografia. Ouvi ruídos atrás da porta de serviço, em breve os empregados começariam as tarefas de limpeza. Na mesa que nos destinaram ficaram outros três casais, o Rodrigo, o Josep e a Cristina, amigos que tenho em comum com o noivo, acompanhados pelos seus companheiros de relação (mais ou menos comprometidos). Conhecíamo-nos há algum tempo mas, devido à pouca estabilidade laboral, todos trabalhávamos já em empresas diferentes. Alguém recordou Javier. Chegámos à conclusão de que havíamos perdido o contacto com ele. Não tínhamos a certeza de onde se encontrava ou de qual a sua ocupação. Recordámos episódios. Um jantar de natal que acabou na cave de um bar em Recoletos. Recordámos mais episódios e a conversa adquiriu um certo tom de reserva com frases ditas entre silêncios.

Lembrei-me da última conversa telefónica que mantive com Javier e acabei a enumerar tantas coisas que lhe podia ter dito. Várias vezes estive prestes a abandonar algo que me era favorável. Seguir uma pequena liberdade interior que me parecia encher o peito e confiscar toda a representação aparente de vida, e isto só com a minha voz. Apoderava-se do meu ânimo uma estranha sensação de expectativa, ainda que o meu comportamento, cada vez mais titubeante, actuasse naquele mesmo rumo coerente com a semana, o mês, o ano passado. Ampliava certos bancos nebulosos e sopesava se a melhor saída não seria contar comigo mesmo, sozinho. Obscurecia de propósito uma frase, um momento, e pensava na possibilidade de uma ilha que me fizesse distante e impossível de atingir. Não é necessário muito para viver com dignidade. Tentava avaliar a minha dose real de pessimismo e nunca chegava a grandes conclusões. Procurava sobretudo não a alimentar. Afastar momentos de fantasia que me lançavam pontes para onde, convinha, me acabaria por encontrar isolado. Encarregar-me da minha vida tinha um significado de prudência, certa frieza de testa para em cada momento posicionar-me onde nunca me daria vergonha estar e poder dizê-lo sem fazer perigar o agradável retorno a casa.

Voltei aos segundos em que o rapaz enxugava as costas da rapariga. A rapariga aproximando a boca do ombro. O rapaz seduzido pelo movimento. Sabia o que era o amor, depois de tudo. Subi as escadas alcatifadas e notei como os degraus já estavam secos. Despi-me. Maldisse a minha falta de habilidade porque a minha mulher entretanto acordara com o barulho da fechadura. Perguntou-me as horas e respondi-lhe: muito cedo para o que quer que seja; deitei-me de novo, embalando-nos com o movimento cadenciado do meu corpo, provavelmente muito semelhante às repetições compulsivas de quem procura afastar uma ansiedade difusa, não consegui voltar a adormecer mas a minha mulher já não me respondeu quando lhe apertei a mão.

Cura

Vontade de sono. Era isso que tinha. Sempre. É claro que a vida não lhe corria nada bem. Estava sempre desempregado. Ninguém queria um empregado que passava os dias a abrir a boca, a dormir sempre que podia. Ninguém queria um empregado que não cumpria horários de trabalho, que chegava atrasado e saía mais cedo para ir dormir. Ninguém queria um viciado em sono. Os pais levaram-no a uma clínica especializada em curas contra a vontade de sono. Ficou internado três semanas. Foi sujeito a vários exames, terapias. Voltou a ter um emprego certo. Cumpria horários. Fazia horas extraordinárias. Era um empregado exemplar. Apreciado pelo patrão. Querido pelos familiares e amigos. Chegou até a casar. Teve filhos. Levava-os todos os domingos ao parque. Era o marido ideal. Cidadão perfeito. Mas sentia-se infeliz. Já não tinha a enorme vontade de sono. Tinha-se tornado um ser estranho a ele próprio. E não podia fazer nada. Estava curado.

Tamanho foi o ódio e a má vontade

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Uma senhora chorava a meu lado pelo marido estracinhado por um comboio. Ela ainda ouvia o estalar dos ossos e sentia o fedor e os salpicos / pedaços do marido que lhe tinham saltado para o vestido e conservava a imagem daquele corpo irreconhecível (carne, ossos, tripas, líquidos amarelados e muito vermelho por todo o lado) que não poderia ser o do esposo ou o de um humano.  "Foi aqui que o meu marido morreu." Antes desta frase, preparava-me para a conversa com o terapeuta, rabiscando três ou quatro palavras ridículas no caderno (ainda que o terapeuta repita que nada é ridículo):  Imperfeição, medo da rejeição, decepção, vergonha: evitar a exposição, competição, medo de cometer erros, medo de falhar e de não ter valor, nunca serei bom o suficiente, como fugir da vergonha? negação, insegurança: culpar os outros e a mim próprio, raiva, intolerância. Adoraria permanecer calado a escutar as observações do doutor sobre a minha personalidade megalómana e obsessiva e incapaz de cumprir contratos e compromissos. "E então?" Qualquer frase minha suscita um "e então?" do doutor. Descobri a cura para o cancro, e então?, leio Joyce, e então?, tenho as mulheres que quiser mas só quero a minha, e então?, fui abandonado pelos meu pais, e então?, só consigo pensar em sexo, e então? Tinha os olhos pregados a uma mulher de pernas cruzadas. Fascinam-me fêmeas que saibam escolher as meias e os sapatos certos. Provocadora, desafiando-me, fingindo estar atenta ao telemóvel — na minha mente, as mulheres sempre provocadoras, suplicando puxões de cabelo, dentadas na nuca, palmadas nas nádegas, iguais a uma mãe grotesca, a minha mãe, capaz de fornicar com qualquer um—, a mulher fardada de hospedeira deixava-me na disposição de sair na estação em que ela saísse e agarrá-la por trás num beco e rasgar-lhe as vestes. Intelectual saído da casca, volta para a carapaça. Atleta, atira-te de cabeça. Ideias contraditórias ou, parafraseando o terapeuta, ambivalências. O macaco controlado pela obra literária que traz no bolso. Esfumaram-se-me as costumeiras obsessões assim que ouvi a frase da mulher do suicida. O macaco e o intelectual fundiram-se num coscuvilheiro ou sujeito de cérebro mirrado que não resiste à questão: "Por que motivo se matou o seu marido?" O marido sofria de esquizofrenia, ouvia vozes, dizia que existia um eu dentro de um eu que falava e o protegia, e que existia um outro eu que às vezes o impelia a protagonizar as piores asneiras, como espancar arrumadores de carros ou cuspir em pratos de restaurante ou apodar a sogra de vaquinha, e que existia ainda um outro eu que muito raramente abafava os outros eus e desligava a máquina e fazia o homem desmaiar. A mulher não encontrava melhor explicação para o desaparecimento do marido: um eu que sufocava os outros, uma parte dentro do indivíduo que abafava diferentes personalidades coexistentes dentro de um corpo, que neutralizava qualquer sentimento, desde o amor à raiva. A hospedeira de pernas cruzadas continuava a mirar-me de esguelha, eu cogitava numa forma de ser um cidadão honesto que, simultaneamente, conseguisse amparar as dores de uma viúva, sovar uma hospedeira numa esquina e responder aos "então?" do terapeuta. Escrevinhei no caderno: Eu sou eu e outro e outro e outro e todos e nenhum eu por na verdade ser aquele que sonhei, aquele só existente numa utopia, isto é, num mundo ou realidade inconcebível.  Mais tarde, o terapeuta colocar-me-ia duas questões: a) "Por que razão não consolou a viúva de maneira a que ela sentisse que se preocupava com ela?"; b) "O que o atraía na hospedeira?" Responder-lhe-ia protegido pela máscara de pedra que só tiro à noite, durante os pesadelos: “Por indiferença, por me atraírem aquelas que se me mostram altivas ou convencidas." E então? Sentir-me um macaco a transformar-se em algo ainda pior do que um macaco. E então? Trago um sapato da hospedeira no bolso. E então?

Onze

Tinha dezassete anos quando matei o meu primeiro progenitor. Quando digo primeiro quero dizer não apenas o primeiro dos dois, porque utilizo progenitores no sentido de pais, mas também o primeiro porque me refiro ao meu pai, aquele que concebeu a semente que germinou na minha mãe. A minha mãe, matei-a dois anos depois.

Portanto, tinha dezassete anos quando matei o meu pai. Foi num dia igual a tantos outros, sem nenhuma efeméride em particular que me levasse a escolher aquele dia em vez de outro. Na verdade, não escolhi sequer. Aconteceu. Aconteceu ser naquele dia que cheguei ao onze. A psicóloga da escola, há uns anos, antes de eu perceber que aquelas visitas eram inúteis e desistir de lá ir, tinha-me ensinado a contar até dez quando sentisse picos de raiva. Dizia-me: “Conta até dez, Teresa. Antes de dizeres o que te vai na alma ou fazeres qualquer coisa irreflectida, conta até dez. Vais ver que depois serás mais ponderada.” Usei a técnica vezes e vezes sem conta, porém, naquele dia cheguei ao onze e a raiva ainda lá estava.

A minha mãe estava a fazer o jantar enquanto o meu pai estava, como sempre, na tasca da rua, a embebedar-se com os amigos enquanto jogavam à sueca e falavam de futebol, de gajas e de todo o tipo de habilidades incríveis que cada um julgava ter em maior escala do que os outros. Eu estava na sala a ver televisão. Há já muito tempo que desistira de ajudar a minha mãe. Ela gostava que o meu pai estivesse fora, porque lhe dava tempo de preparar as coisas com mais cuidado e afinco. E era preciso todo o cuidado e afinco.

Quando o meu pai chegou a minha mãe tinha já a mesa posta e a comida pronta a ser servida. Eu já desligara a televisão e encontrava-me de pé junto à minha cadeira, conforme ordens da minha mãe, a que chamava regras de bom comportamento, esperando que o meu pai se sentasse para poder imitar o gesto. Quando se sentou, cambaleante, revelou logo que vinha de um dia mau.

“A merda do jantar vem ou não?” disse.

A minha mãe serviu-o sem fazer comentários. Geralmente não acertava nas frases que ele queria ouvir, por isso, na maioria das vezes, decidia nem tentar. Depois serviu-me a mim e só por fim se serviu a ela. Começámos a comer depois de o meu pai levar a primeira garfada à boca. Eu, enraivecida com o estado do meu pai, como que adivinhando a avalanche para breve, comia depressa e sem levantar a cabeça do prato. O meu pai comia lentamente, mastigando de boca aberta, deixando cair pedaços de comida para cima da camisa. Quando a cena parecia pronta a entrar em piloto automático, sem sobressaltos, o meu pai deixou cair os talheres com estrondo no prato.

“Esta merda não tem sal porquê?” disse.

“Eu pus sal, querido,” disse a minha mãe. “Mas sabes que não podes abusar. O médico já te avisou.” Tentava imprimir candura à voz, mas as cordas vocais tremiam-lhe de pavor.

O meu pai levantou-se, muito calmamente, como fazia sempre nestas situações, e dirigiu-se à minha mãe. A minha mãe, que sabia tão bem como eu o que se ia passar, deixou-se ficar, sentada, costas direitas, mãos sobre o colo, como boa esposa que era, à espera da bofetada que ele já preparava. A enorme e gorda palma da mão direita do meu pai embateu com tal violência na face da minha mãe que ela caiu no chão. Ele pegou no prato dela e atirou-o à parede, onde este se estilhaçou em pedaços, deixando um caldo acastanhado a escorrer até ao chão, onde já havia comida espalhada por todo o lado.

“Isto não é comida,” disse o meu pai, já a gritar. “Não é nada! Prefiro comer merda. Se voltas a fazer um jantar assim corto-te as mãos. Que não te servem para nada se nem um jantar decente para o teu marido sabes fazer.” A ameaça disse-a já à porta de casa. Depois saiu. Foi comer qualquer coisa ao café.

A minha mãe levantou-se, tinha a cara vermelha e estava ainda atordoada da forte pancada, e foi buscar a vassoura e o esfregão para limpar tudo aquilo. Tinha que ter tudo impecável antes de ele voltar. Enquanto limpava ia pedindo em voz baixa o perdão de Deus, que havia de ter clemência de uma pobre mulher que apenas se tinha enganado na quantidade de sal. Deus, na sua infinita misericórdia, havia de a perdoar, e se não o fizesse era porque ela, certamente, não o merecia, pois nem um jantar que agradasse ao marido sabia fazer.

Eu observava a minha mãe enquanto ela limpava o chão, ouvia as suas súplicas, e sentia em mim um ódio de morte. Odiava-a mais a ela do que ao meu pai. Odiava-a por se subjugar assim à vontade do marido. E a minha mãe, como se me ouvisse pensar, disse, “Sei que me odeias. Mas odeias-me pelas razões erradas. Devias odiar-me por não saber fazer um jantar. Não conseguir ser uma boa esposa. Nunca sejas assim.” Eu não lhe respondi, limitei-me a olhar com desprezo e a subir para o meu quarto. Ouvi-a, ainda, dizer entredentes, não exactamente para mim ou para Deus, mas para ambos ou para nenhum dos dois, “Deus te perdoe, minha filha, que não sabes o que é o amor.”

Quando fechei a porta do meu quarto e me sentei na cama, disse, também entredentes e não exactamente para a minha mãe ou para Deus, em que nem sequer acredito, “Onze.” Podia ser mais, podia ser vinte, ou trinta, se tivesse começado a contar há mais tempo. Tinha começado há uns dois, três meses antes e cheguei ao onze naquele dia. Ainda me lembro de todos. Um, bife mal passado. Dois, demasiado azeite. Três, arroz empapado. Quatro, bacalhau muito salgado. Cinco, pouco chouriço no caldo verde. Seis, bife mal passado outra vez. Sete, devia haver salada. Oito, demasiado picante. Nove, batatas demasiado cozidas. Dez, o peixe tinha um sabor esquisito. A raiva não me abandonou, não diminuiu. Cheguei ao onze, falta de sal, e sabia o que tinha de fazer para acabar com aquilo. Fiquei acordada até ouvir o meu pai chegar a casa. Sabia que não ia ser preciso especial atenção para o ouvir, porque a bebedeira não lhe permitia ser cuidadoso ou silencioso. Quem tinha de ser cuidadosa e silenciosa era eu, não por causa do meu pai mas por causa da minha mãe, recolhida no quarto, provavelmente ainda acordada, à espera de ouvir chegar o marido.

Saí do meu quarto quando o meu pai começou a subir as escadas. Saí com meias grossas nos pés e umas luvas nas mãos. Provavelmente, esta segunda precaução era desnecessária, mas achei por bem fazer a coisa assim. As meias eram para que os meus passos não se ouvissem. Quando o meu pai estava a alcançar o penúltimo degrau, apareci silenciosa no topo da escada e empurrei-o com força suficiente para o fazer cair até à base dos dezanove degraus. Não fiquei para ver como a cena terminava. Voltei sorrateira para o meu quarto e só de lá saí quando a minha mãe começou a gritar e a chamar o meu nome. A causa de morte foi a queda e as lesões que provocou. A causa da queda foi a bebedeira.

A paz que eu esperava trazer ao lar nunca se aproximou sequer do alpendre. A minha mãe passou meses enterrada numa depressão profunda, chorando copiosamente até as lágrimas se lhe esgotarem e já não conseguir senão soluçar em seco. Fazia-lhe falta o marido. O ódio que eu sentia por ela não só não se atenuou como se transformava dentro de mim em algo mais hediondo do que ódio. Depois de ter sido internada, alimentada a soro, e regressado a casa em melhor estado, durou apenas três semanas a voltar à depressão. A causa de morte foi um mal calculado cocktail de medicamentos, certamente provocado pelo discernimento atrofiado que a minha mãe tinha nessa altura.

Palace Posy

Falar com estranhos pode resultar em problemas com a polícia. Para testar a minha própria invisibilidade há um conjunto de regras que acabo por quebrar. Lo tenemos todo, ouvi, e pensei como soaria em português. Acabava de apoiar o sapato para reforçar o nó dos atacadores. A idade do autor das palavras não andaria longe da minha. Trajava de modo excessivamente elegante para estar sentado num banco a meio da manhã. De alguma maneira, achei que queria travar conversa precisamente comigo. Acabava de sair do complexo de escritórios e, sem hora marcada, podia caminhar até casa. Contei-lhe o teor do documento que acabava de assinar. O homem, apressando-se, descobriu-me um “desespero crescente” e disse “entender”. Em presença de liberdade não tenho objecções em relação às decisões que se tomam, explicava-me enquanto à nossa frente um rapaz distribuía panfletos anunciando a compra e venda de ouro. Encontro os mesmos defeitos em qualquer meio ou grupo, é só uma questão de escala e alcance do estrago. De qualquer modo, ninguém quer testar os limites da sua liberdade porque ninguém quer abdicar do que tem, mesmo que muito pouco. Lo tenemos todo, repetia, a contraluz do que acabava de dizer. Ainda que se referisse a ele próprio socorria-se da terceira pessoa; ou talvez quisesse utilizar o plural de maneira benemérita, incluíndo-me na fortuna.

Aceitei almoçar em sua casa. Parámos numa florista para que encomendasse um ramo de todas as variedades disponíveis de flores brancas e amarelas. A empregada recolheu flores dos baldes e vasos a que fisicamente chegava e, respeitando o ofício, compôs o ramo com uns quantos ramitos verdes. Já em casa, Mario Garcia pediu comida por telefone. Desde uma janela panorâmica apreciavam-se as torres de Chamartín. Objectos de cores mais escuras desafiavam o branco elementar da sala e dos móveis. A um canto, ninguém tinha recolhido o vidro partido de dois ou três copos sujos de vinho tinto. Em cima da mesa estava um livro de capa rija que se intilulava Moon over Japan que sem dúvida apresentava várias fotografias aéreas de Tóquio mas curiosamente, e contrariando o título, também do skyline de Xangai. Mais adiante, Garcia havia de me dizer que a única maneira de se apreciar Xangai era desde um helicóptero ou desde as alturas dos edificios.

Presumi que a mulher de Garcia estava habituada à visita de estranhos. Quando entrou, ignorando a minha presença, queixou-se do frio e da janela aberta. Reparei num quadro de parede, algo desproporcional, que mostrava a fotografia de um perna estilizada sobre cujo tornozelo um leopardo abria os dentes. Sentámo-nos à mesa e Garcia começou a falar de negócios, descrevendo a sua habilidade em fazer dinheiro. Depois do primeiro milhão a coisa precipitava-se. Não lhe podía dar muita atenção. Socorria-se das torres de Chamartin que pareciam próximas. A mulher levantou-se. O preâmbulo acabou e passámos sem outras cerimónias directamente ao assunto: lavagem de dinheiro através de transferências para sociedades nas Maurícias. Garcia precisava de um novo nome, um testa de ferro sem património a quem comprar a assinatura. Aceitei a oferta evitando fazer perguntas e centrando-me nos dividendos. A mulher andava pelo salão e reparei como a altura das fibras dos tapetes quase ocultavam os sapatos. Indiferente às histórias ribombantes de êxito, dei com o ramo de flores na parte baixa da mesa e perguntei-me quanto durariam viçosas ou se o seu destino estaria no voo impelido pelo vácuo do salão até esbarrarem nos dentes afiados do leopardo.