Frase primeira; "Que caia o amanhecer"; Cada osso

Frase primeira

E como falar
de outra forma?
de cortar
e reformatar o futuro,
e assim querer
e ser sem par.
Por que ser assim
pura forma?
tanta cor
entre ares dúbios,
ferrugens,
e sorrateiros costumes
de manter
sombras assimétricas,
como a de pensar
antes de ser,
como a de escrever
e andar
por entre cadeiras
que margeiam limites
intangíveis,
formas sem abdômen,
sem retina.
Ainda quero uma frase
primeira,
nua,
ligeiramente inteira.


Que caia o amanhecer,
o raiar do entardecer,
que os dias acumulem-se,
não na incerteza,
mas na pureza do sacrilégio.


Cada osso

 Quando nossos corpos fundirem-se,
cada osso se desintegrará,
o gozo irá surgir aos poucos,
até que nossas almas se toquem,
meus olhos não chorarão de prazer,
meu corpo não soluçará dor,
mas reagirá forte,
a qualquer tentativa de cura.


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Açougue; O Parto

Açougue

ao açougueiro,
esse cirurgião
ao contrário,
o corpo
é um mapa

a lâmina
já não exime
alguma dor

seu hábito
é de sangue

o amolador
recobrando
a isenção da faca

a balança medindo o preço
do osso,
bucho, pá, lombo, peito,
cabeça de porco

o açougueiro
vai ao freezer
como um padre
vai ao altar
rezar a missa
eximindo pecados
(entre o ouro do cálice
 e o fio do aço)
da carne


O Parto

 nenhum corpo suporta
outro corpo
por muito tempo

então...

mãos que herdam
o viço amniótico,
paciência e tato
para pernas explosivas,
os separam

a parteira rege
de seu inventário
uma gama de métodos
respiratórios
que precedem
uma boa concepção

acomodando um pano úmido
na testa da mãe,
ela divide e isola
lágrimas extremas:
caligrafia de sal

em seu avental
há um quadro
tingido de sangue
que é mais,
muito mais,
que a certidão de nascimento


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all.about.u_rmx

bicos                corvos e corveia
se me perguntam o que penso disso
este mundo não merece a fossa rasa
onde estrebucha e racha a cara

procurado vivo morto vivo à revelia

escavado à boca faminta de orgulho
voltaria a beber de tua fúria agora
a veracidade está para as expectativas

efeito dos últimos sei lá quantos dias

menina meu lobo repito você não se parece
com ninguém se perde sabe por quem grita     

todavia iara mergulha e vê
as iniciais ainda estão na base
palafitas

baixo
me deixa nas cordas
chamo das conchas                  

revira maré medula
deita a escuta  
orelha e umbigo 


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Gerações

Já era hoje quando vi a luz brilhar no canto escuro
E recebi de fora hóspedes sisudos
A preocupação de ontem indicava se frutas maduras
Devem estar sobre o pano rendado ou
Se minha laranjeira pernoitaria para sempre
Ao fundo da casa
Meu pai, admirador das laranjas, por sua cor e acidez,
Devorava quietamente o sumo
Apalavrava os mandamentos numa voadeira de gominhos
Às vezes o pegava usando os dedos, as unhas – o olho cerrado –
E balançando a cabeça em gestos laterais
Para livrar os brotos presos aos dentes

Sabia que uma mesa bem posta comporta frutas maduras sobre o pano rendado
E o ácido das laranjas do meu quintal é verdadeiro remédio
Para a sisudez das visitas
Estimulei nesses dias de casa cheia
Conversas e sabedorias diante de meu quintal, embaixo da laranjeira,
E as laranjas passaram a ser a tônica dos diálogos.
Especificamos os tipos e variedades da fruta, sua forma circular e
Como lembravam a redoma dos nossos conflitos
O céu aberto da antiga propriedade
Os fluxos em que corria o tempo num jogo veloz de máximo e mínimo
Como ao mordê-la o paladar cítrico impulsionava um estado de alteração nos olhos

Até em meus sonhos as laranjas se achegavam
Enroscadas na cesta fiada pela mãe
Ela advertia que as colheitas aparecem primeiramente na utopia do sono
Indicando as imagens como ferramentas de velhos oráculos
Ainda que aos oráculos o tempo não manifestasse agora
O encanto da idade virgem
O sumo fresco e a estranha novidade
E que as imagens se rebelaram
Evadiram das pontas dos cajados para viverem
Incongruentes na dormência da carne.

As laranjas de meu quintal envelheceram
Acinzentaram
Dizem que seu lado interno é morno
E quando caem ao pé já lá estão
Ficam

E meu pai também já está ao chão
Sob ele
Sem laranjas em sua boca de algodão
Forçando de punhos cerrados a talha de madeira que
O cobriu, abafou-o

As reuniões cessaram quando a laranjeira do quintal
Emitiu seu último urro
E a sua única folha seca cobriu o caderno do meu filho
Meu filho que guarda agora meu pai
Minha mãe nos meus sonhos
Meu filho nas minhas pernas
Meu filho
Filho, elevando seu dedo menino e a língua
Língua para fora, escanteada.

Ainda vou ao quintal
Visito o que sobrou da laranjeira
Um tronco opaco, doente de memórias
Carrego cheio de dor meus pés fracos
E a alma benta pesada
Estou num silêncio absoluto e
Atravessado pelo sopro da noite

As luzes da casa dormindo
Meu filho serenando
E eu sigo pelo quintal
Trajando nudez e cisma
Em busca dos sinais de minha mãe
De cascas envelhecidas, de sementes cítricas
Das utopias, mãe! Das utopias!
Algo deixado por meu pai
Um pelo de sua pele talvez
Uma pele
Pele
Bastava uma pele, um urro
Urro seu, pai
Urro seu, mãe
Meu filho urra
Como o vento urra
Como dentro de mim, água revolta, urra a saudade
Saudade, pai
Saudade, mãe
Pai! Mae! Meu filho tem saudades de mim.

Rosebud; Casa de infância; Corais

 

Rosebud

Rosebud em chamas.
Ninguém sabe
nem quereria saber.

Se o mundo nos engolir
havemos de ser indigestos!

Que num gole descemos é certo,
sem compadecimento
pelas pequenas bravatas
que não provocam riso ou piedade.

Rosebud em chamas.
Em chamas
numa casa vazia. 

 

Casa de Infância

Que corações são esses
que comportam cidades inteiras,
suas pessoas, histórias privadas,
heróis,
seus horizontes
e silhuetas ao luar e luz eléctrica?

Que biologia,
que anatomia é essa que tem
num coração tanta coisa?

O meu, sinto-o agora,
não faz senão
lançar sangue e recebê-lo de volta
quando ele já não tem nada
a que chame seu.
Uma casa de infância,
é isto o mais que pode ser.
E para o que é, é bastante.

 

Corais

Construídos os corais pelas grandes coisas
afundadas

– os futuros, os passados,
as palavras, espaços e pontos
que não acordarão dos seus hexágonos,
os amores, o amor –

construídos os corais, chegam-se os cardumes.
E acomodam-se, e mordiscam
e são lá,
nestas coisas afundadas,
imponentes quando ameaçavam flutuar.