Poemas Estivais - Parte 1
/Fome na cidade
Ando subindo e descendo com fome
as ruas do bairro e as que dão nos bairros vizinhos
O meu corpo não me revela o
segredo deste apetite
que me movimenta nesta noite
onde aqui um avião além
rasga à uma da manhã
sonicamente os céus de Lisboa
Tenho uns chinelos azuis
tipo havaiana
o que também
não acrescenta nada
ao mistério desta fome
nem desta pele
que se articula em boca
e ocorre-me a ideia dum
fogo interno
e do terreno de pasto
e a parcela de pinhais ardidos
que fazer com a cinza
talvez em tempos
houvesse um vulcão aqui
um vulcão que explodiu
matando gente
com outra fome
que esta que nem à luz
duma erupção se revela
Lisboa, Julho 2025
*
Fissura no colchão
Temos esta manhã
o corpo atado com um laço
tenho de aprender
mais uma vez
que uma vez desatado
não é sempre o amor
o que fica do acto
para além do cansaço
apenas dois corpos
cada um em sua margem
e entre eles naves
*
Sede à beira-rio
Uma doença gera outra
o vento bate na água verde do canal
os barqueiros encalham
nas plantas invasoras
que escapam ao controlo camarário
Os mortos geram outros mortos
a terra que ladeia o canal
está empapada de água
Nestes dias as margens
têm menos sede de corpos
Mas assim molhados e moles
São de deglutição fácil após a chuva
pensa a mente que crê
organizar tudo
*
Um prosaico poema sem tema
Acorda-se na cabeça
por fora os cabelos
desregrados
as ideias subindo do aquário
para respirar insónias
O fluxo matinal das águas esvai-se
estival nos esgotos os corpos
deitam fora o que o sonho cuspiu
O querer dormir-se mas o que vale
o querer a esta altura da vida
em que só há sons de canos
e passos no andar de cima
Nem se sabe se são de gente
ou se o mundo na noite se mudou
e são os gatos que se erguem
eretos nas patas traseiras
a arder de ideias
*
O homem que grita na rua de Crimeia
Ao longe vejo ainda,
numa ilusão que me atravessa,
talvez gerada pelo corpo,
afastar-se a aura invisível
do homem que grita para além da ponte
como se o mundo num gesto violento e louco
lhe abrisse a boca para lhe pôr lá dentro uma palavra