TOC, Déficit de atenção, Filhas do espelho

TOC

Se não encontra
De imediato
O lápis e o papel 

Se com seus dedos finos
Derrama café no tapete
Já está dado o tom

Do poema?


Déficit de atenção

Há marceneiros que
Abandonam seus projetos no meio da sala
Batem muito com o mindinho nos móveis

Ligam perguntando por eles
Que não sabem o que dizer
Também não entendem nada do que os outros falam

Costumam dominar muito bem
A arte de manusear copos 

Aceitam a vida tranquila:
Não entender o que os outros dizem
Tropeçar nas dívidas
Possuir os hematomas


Filhas do espelho

Quando as crianças descobrem
Que de uma concha sai o barulho do mar
Em frente ao mesmo
Surpreendem-se

Crescem e atravessam espelhos
Cogitam o azar
Algumas doam livros
Outras perdem anéis e brincos

Encontram sozinhas o caminho de casa 

Sobreviventes
Distanciam-se pelo modo com que riem
Do desastre causado pelo corte
Com alguns lutam
Com outros deitam

Todas as paredes que já deram de cara
Guardam o segredo
Algumas serão amadas
Muito amadas
Nas fotografias

Para as que se flagelam com frequência
Talvez o controle seja algo sutil
Como uma navalha

5 poemas de Lucas Trindade da Silva

DESTOA
 
Destoa
em beiramento de falésia
um sorriso estático
esquálido e ridículo
como um tronco assanhado
se fazendo mangueira
neste setembro cerrado
agreste e vazio

A sombra ausente da galhada seca
faz lembrar essa vida
sem copa
de folha e de fruto
sem cópula
mansa nos carinhos em brisa da flor

É um bravio sem vingança
um bravio só ele
esse marrom seco
essa grama que arranha a planta
do pé
e do juízo

Me esforço em
agreste ser
tanto quanto
mas sinto um eco de mar
Um eco de mar molha o barro
e faz nascer
ipê

Vejo esse amarelo de pétalas
esse querer de horizonte
no mar que volta
em mim


enveredar-se
na ausência
das veredas

retraçar trilhas
sem a margem
oscilante
dos teus ditos

bússola

para assim
desertar
dos desertos
e
destrinchar
as trincheiras
do impensado 

ver
sereno

sete
palmos
abaixo
das nuvens

sete
dias
traçados
no tronco

do tempo
sente

a eternidade
do orvalho
que o carrega
desperto
até o jardim


no princípio era o corpo
e já para o corpo algum tipo de lei
contra a qual lutar
e já para o corpo
a espessura dos vales
a escuridão das matas
e a viva morbidez do olho

e já para o corpo
um desejo que se faz na renúncia
e já para o corpo
                um fogo
                consciência das cinzas


a Bernardo Soares


Toda rede é um pedaço de útero
e nela joga-se a própria sorte

Todo poente um lampejo de morte
e um portal do dessabido
entretido na quimera de um negativo-menos-que-nada
onde reina a coroa de lata

Transpasso a chuva como a retina do mundo
e acesso o brilho das coisas invertidas
tidas como falsas opacidade e engano

Mas é o nariz que fornece
o intelecto inodoro do real
e a nos mostrar o desvivido de tudo


real é tudo aquilo que (des)percebe em si uma fissura
mais que a tangibilidade da criatura
menos que a perfurabilidade da lâmina
a idade do real é o tempo da chama
da lisura do ar rasurado em oceano

sei do devaneio como um meio para o não dizível
por isso te digo
da altura alcançada pelo meu silêncio
que a doçura do abraço dorme em tudo que é capaz de repulsa
e que a nostalgia da terra sonha num leito feito de pedra vidro e aço
 

OS POETAS CANTAM A EPOPEIA DO UNIVERSO À ESCALA DE  UMA ELEVAÇÃO DE 461 A 477 M/S DA SUA VELOCIDADE MÉDIA 

Durante séculos
o Homem mal teve tempo de
nascer, conhecer os filhos e desaparecer, contemplando um Uni- 
verso que para ele permaneceu imóvel. 
Ao ritmo deste  
filme, sucedem-se em cada segundo, 10 000 gerações. 
Sim: porque deste filme
prodigioso o Homem só viu a derradeira imagem. 
E como as leis dos choques impõem uma uniformização das
causas estranhas à sua existência quotidiana
a vida é um relâmpago.  

A partir do corte e cola de O Romance da Matéria. O estudo da evolução do universo (trad. Ramiro da Fonseca, Livros do Brasil, 1970), de Albert Ducrocq. 

 

5 poemas de João S. Silva

 

Protecção de dados


Não terás hoje, é possível,
nada a esconder;
recorda-te, porém, que
o amanhã será tardio,
perpétuo e público.

***

Escrevo-te por gostar de acreditar
que posso deste modo recordar-te,
avó

mas às vezes a tinta dilui-se
como o sangue na água, confissão
que faço com vidros na boca

e já não distingo bem a tua voz
magoada, aceitando a inevitabilidade
da minha ausência adolescente

e já não distingo bem a tua voz
envergonhada, pedindo-me a leitura
das legendas dos filmes de Domingo

e já não distingo bem a tua voz
minguante, anunciando, por trás da máscara,
uma inaceitável doação do mundo

já não distingo bem a tua voz, avó,
mas todas as lágrimas deste poema
recordam o teu amor imaculado e pleno.

***

Num lugar de Teerão

Para o Bernardo

O fogo de Teerão ardia,
fátuo, com música de fundo
e um véu preto navegava
a correnteza da tua trança,
sem que o impedissem.
tinhas as mãos cheias
de ambições e de cigarros:
era a Europa era Paris
era o fashion design
era o assombro dos vinte anos
avançando por entre águas
sulfurosas e estagnadas.

Não foram os teus magníficos olhos grandes,
com que encantarias serpentes,
a exigir-me este poema,
mas uma dissensão de coragens:
enquanto executas a céu aberto as tuas
sublevações de seda e nicotina
eu escondo o teu nome – e o meu –
neste baú de cobre e osso de camelo.

***

Método

To live well you must live unseen

O objectivo é sempre simples:
correr para as ermidas pelos milheirais e pelas sombras
enterrando na passada todos os nomes em redor.
Ser coisa entre as coisas e nenhuma palavra mais.
Evitar assim a meteorologia redundante
e os surtos de interesse alheio,
lençóis freáticos da peçonha.

***

"Veste-te para o trabalho que queres,
não para o que tens", reza a modernidade.
Enfrento assim o poema de camisa engomada
e botões de punho
e disponibilizo, desde a primeira linha,
um floreado cartão de visita,
no qual se lerá o necessário, e talvez mais
(não há versos grátis).

Disponibilizo-me ainda para amar o próximo
(em part-time);
para uma existência despojada de riqueza,
no sentido em que não me será possível
crescer uma biblioteca;
e para concluir acordos vários com o cadinho
- alma, corpo, panificação -
mastigando a amarga côdea celulósica
em troca de um fumegante e fofo miolo de talento.
 

o buraco da cozinha

"legs", ph. Guy Bourdin

"legs", ph. Guy Bourdin

não escolhas uma mulher que tenha tido muitos homens
não escolhas uma mulher que tenha tido poucos homens
não escolhas uma mulher
não escolhas ninguém  

tenham tido muitos ou poucos levar-te-ão à loucura  
serás sempre a barata que foge à lata de insecticida  
que procura a racha na parede da cozinha

nenhuma curará o que quer que seja de que padeces
ou julgas padecer
descobrirás novas e encontrarás velhas paranóias
viverás ainda as paranóias delas

por isso pensa muito bem
sempre que quiseres esgueirar-te  
pelo buraco da cozinha