Submissão

Paris teve um ano de cão.

Começou-o atacada na sua dignidade e tão distintos e históricos valores laicos e republicanos, com o horrendo ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, reduto indefectível de liberdade de expressão e escolha dos conteúdos, independentemente dos seus destinatários, algo quase impossível em qualquer outro país da U.E. ou do outro lado do Atlântico.

Na altura, a tragédia foi uma verdadeira benção para Hollande, finalmente capaz de sacudir a pressão da imprensa, hiperbolizada pela sua inábil e atribulada vida amorosa e pela tímida reacção aos problemas sociais e económicos de que a França padecia. Retomou a liderança, caçaram-se os culpados em directo global e os líderes europeus deram as mãos para a fotografia (com Sarkozy desesperado pelo enquadramento na moldura e a ascendente extrema-direita estrategicamente posta de parte), retratando uma Europa em declínio, sombra dos tempos da sua fundação, despida do seu vigor humanístico e humanitário e vencida pela força dos números, das estatísticas e dos poderes que deles se servem para prosperar.

No chamado “mundo ocidental”, os clássicos “eles é que provocaram/pediram” ou “não tinham nada que ofender outras religiões” foram bem audíveis, contemporâneos aos ubíquos “Je suis Charlie” que pululavam nos fóruns sociais e outros mais ou menos institucionais, rapidamente banalizados e esquecidos, como qualquer outra moda inócua e passageira.[i]

As consequências práticas, para além do luto e do medo dos locais (pela proximidade e absoluta impotência perante a violência dos actos) e do (mal disfarçado) alívio dos vizinhos [ii], foram nulas. Um breve acréscimo de vigilância, logo mitigado e dissipado, na proporção directa com o “vigor interventivo” da chamada “sociedade civil”, esse ente banalizado e apenas comparável com “a Internet” ou “os media”: anónimos, virtualmente inquantificáveis e sem qualquer poder real, embora constantemente citados perante a necessidade de fabricar consensos, com as mais diversas e frutuosas utilidades.

2015 avançou e o fresco europeu tomou tons baços e obscuros.

A inépcia voluntária e displicente da classe dirigente francesa e europeia, completamente desprovida de estratégias e capacidade de liderança[iii], apesar de previsíveis, foram chocantes.

Os atentados de 13 de Novembro revestiram-se de contornos inéditos no século XXI ocidental e europeu. A frieza na execução, os locais e os horários escolhidos, desconcertaram uma Europa já em grande buliço e uma nação francesa, novamente de luto, atingida no seu coração.

O livro que involuntariamente se tornou indissociável desta Paris massacrada, chegou a Portugal há uns meses, mas a sua pertinência e actualidade não se desvaneceram.

Personagem cujo carisma garante projecção mundial a cada novo livro ou palavra pública, Houellebecq conseguiu com Submissão a proeza de ser fortemente criticado ainda antes da publicação do livro (exactamente a 7 de Janeiro, dia do massacre no Charlie Hebdo, pouco depois de ser publicada uma capa em que o próprio surgia caricaturado). Cancelou imediatamente a tournée de promoção do livro e refugiou-se em parte incerta, concedendo apenas uma emocionada entrevista na TV.

Colocar o livro no género da sátira será redutor mas inevitável. Cedo se torna perceptível esse tom, ainda antes de o livro ser aberto.

O título Submissão evoca jocosamente a raíz etimológica da palavra Islão[iv], jogo de palavras progressivamente mais relevante com o desenvolvimento do romance.

A palavra em si surge apenas na página 230, acompanhada por uma das passagens mais esclarecedoras do livro. François, o nosso protagonista, encontra pela primeira vez Robert Rediger, um dos poderosos do novo regime político, “conhecido pelas suas posições pró-palestinianas e que fora um dos principais obreiros do boicote aos professores universitários israelitas”, que lhe explica, com um exemplo literário, o fascínio da filosofia holística subjacente ao Islamismo.

“- É a submissão (...) a ideia espantosa e simples (...) de que o máximo da felicidade humana reside na submissão mais absoluta.(...) para mim há uma relação entre a absoluta submissão da mulher ao homem, tal como descrita em “História d´O”[v], e a submissão do homem a Deus, tal como é encarada no Islão.(...)o islão aceita o mundo, aceita-o integralmente(...) para o islão, a criação divina é perfeita, é uma obra-prima absoluta.”  

A demanda de uma identidade na era da solidão, juntamente com a reflexão sobre a Religião e a triste angústia existencial perante a omissão de um referencial filosófico e sociológico verdadeiramente estruturado e estruturante, são traços comuns a toda a obra do francês.

Submissão acrescenta novo mosaico a esse painel, onde pairam os demónios que a França insiste em ignorar e Houellebecq nunca se fez rogado em exorcizar, nomeadamente os desafios colocados pela diversidade cultural, étnica e religiosa (com o passado colonialista sempre em fundo), a vacuidade da classe artística e mais mediática (os famosos são tratados por tu, como qualquer outra personagem) e o hiperbólico consumismo pós-moderno.

Neste livro, inadvertidamente (ou talvez não) e com as devidas distâncias, é perceptível a alusão ao colaboracionismo infame do Governo de Vichy com os nazis, durante a II Guerra Mundial. É transversal a todo o romance, na silenciosa aceitação das circunstâncias e das mudanças, mediante a conveniente retribuição, nas palavras por dizer ou nos longos solilóquios mentais de François, impulsos e ensejos inconfessáveis, mesmo entre amigos.

A Religião, justificação para algumas das maiores atrocidades experienciadas pelo ser humano, é o pretexto para Houellebecq operar uma mudança ficcional de paradigma, colocando uma hipótese ao leitor: e se o Islão fosse uma realidade viável no Ocidente?

Inteligentemente, o Islão é ficcionado como enquadrado (e enquadrável) nos parâmetros democráticos ocidentais. Para muitos, tal poderá soar a falso, vindo do mesmo homem que, há uma década, foi absolvido pela justiça francesa de acusações de incitamento ao ódio religioso e racial, ao declarar publicamente que o Islão era a religião mais estúpida.   

Todavia, o homem por detrás de “Submissão” é hoje mais ponderado.

Há um ano atrás, em entrevista à The Paris Review, a primeira acerca do livro, revelou que, perante todas as mortes com que tinha lidado (os seus pais, o fiel cão), se tinha incompatibilizado com o seu ateísmo. A negação da existência de uma ordem cósmica ou de um criador era-lhe agora insuportável, partindo daí a ideia para o livro.

Como Auguste Comte, sua grande influência, de uma mundividência puramente científica, evoluíu para a crença de que a sociedade não sobrevive sem religião.

O título do projecto inicial era “La Conversion” (a conversão) e descrevia o caminho de um intelectual até ao catolicismo, seguindo os traços biográficos de Joris-Karl Huysmans, em cuja obra se tinha especializado. Cedo concluiu que a ideia não resultava.

Ao tentar colocar-se na pele de um muçulmano, entendeu que faria sentido a existência de um partido em que este se revisse. Analisando a situação política dos muçulmanos no Ocidente, constatou ser-lhes completamente alheia e distante: não se reveêm na direita nem a direita se revê na sua cultura e a esquerda, pela sua óptica, roça o libertinismo.

Os obstáculos à verosimilhança de tal situação eram óbvios. A perspectiva viciada que os media criam acerca desta religião, retratando cada novo convertido ao islamismo como um jihadista (esquecendo uma larga maioria que não o faz), assim como os grandes cismas históricos existentes no seu interior (do Islão), inviabilizariam à partida um partido nestes moldes.

A solução simples para esta aparente contradição, encontrou-a na História que, ciclicamente, nos relembra a importância do homem providencial, o líder carismático e mobilizador. Mohammed Ben Abbes é a personagem-chave do romance, embora nunca surja no mesmo. A sua Fraternidade Muçulmana, partido que acaba por vencer as eleições em França, é, à sua imagem, concicliador e iconoclasta.

A fundamentação política e ideológica do romance poderá ser falsamente interpretada como um alerta, pelo temor, da possibilidade de o Islão tomar as rédeas das instituições francesas. Segundo o autor, desta feita ao New York Times, o objectivo foi bem distinto.

No contexto certo e com a adequada liderança, numa sociedade profundamente laica e republicana como a francesa, o Islão teria uma maior possibilidade de vingar do que o catolicismo, graças ao seu carácter mais holístico.

Para além disso, para Houellebecq a conversão é um acto de esperança numa nova sociedade, normalmente sem motivações sociais, apesar de o livro apresentar o reverso dessa medalha.

*

Com esta bagagem, regressemos a François.

O professor, misantropo proficiente e profissional, com quinze anos de uma carreira para a qual nunca teve vocação, encontra na vida académica o seu habitat preferencial.

No entanto, é precisamente com o inicío da sua vida profissional que começa a sentir o peso absurdo da solidão, perdida a rede de contactos mantida durante os anos de estudo na faculdade.

Entre dislates sobre o quotidiano, reflexões existenciais típicas de um quarentão solitário e irrelevantes disputas filosóficas com os seus pares, encontra nas alunas a companhia perfeita para o tipo de relação amorosa que lhe convém: fugaz, sem qualquer compromisso, fisicamente satisfatória e com a leveza emocional de um romance de cordel.

Chamava-lhes “namoradas-mais ou menos à razão de uma por ano.”, o correspondente ao período lectivo, e encarava estes relacionamentos como “estágios”, que se sucederiam “até desembocarem, em apoteose, na última relação, aquela que teria o carácter conjugal e definitivo, e conduziria, via concepção de filhos, à constituição de uma família”.

Até que conhece Myriam, e cedo percebe que nada seria igual depois dela. Apesar de ter alguns namoricos depois de também ela o deixar, sente que o inexorável peso da idade e o tédio da rotina e da previsibilidade lhe alteram os padrões que tanto estimava, desiludindo-se também com estas relações episódicas.

O meio universitário apenas lhe garantia estatuto social e um emprego estável. As críticas a toda a artificialidade que o rodeia são abundantes, desde a virtualmente inverificável origem das teses, aos egos alimentados pela falsa aparência de um saber acumulado, raramente real.

Começam a surgir indícios de graves problemas sociais logo nas primeiras páginas, com facções rivais[vi] à espera do pretexto certo para se confrontarem, impedimentos e dificuldades aos professores israelitas e rumores preocupantes de agressões a professores em plena universidade.

No início do processo eleitoral, a vitória da Fraternidade Muçulmana era ainda uma hipótese remota, embora isso pouco interessasse ao nosso anti-herói, devastado perante a notícia de que a “sua” Myriam ia regressar à sua Israel natal, receosa do que se antecipava ser uma revolução social e política onde as mulheres da religião “errada” seriam ostracizadas.

François sentia-se “tão politizado como uma toalha de mãos”, mas mantinha-se consciente da “atmosfera estranha, opressiva, uma espécie de desespero sufocante, profundo”, altura em que “muitos foram os que optaram pelo exílio.”

A violência banaliza-se, juntamente com o conformismo de imprensa e inteligentzia, e o sentimento geral é de impotência e desresponsabilização, inclusive das autoridades policiais. O inevitável paralelo com a Alemanha do 3º Reich, na década de 30, surge estampado na página 53: “Este tipo de cegueira, aliás, nada tinha de historicamente inédito: encontra-se por exemplo, em todos os intelectuais, políticos e jornalistas dos anos 1930, unanimemente convencidos de que Hitler «acabaria por voltar à razão».”

Neste buliço, tal como Huysmans, séculos antes, o nosso protagonista decide dirigir-se para o campo, em busca de algo que nem o próprio sabia identificar. É aí que, como Paulo de Tarso no deserto, tem uma revelação, momento-chave do livro, em que, perante a Madonna Negra de Rocamandour, assume em definitivo a sua incapacidade de seguir o caminho do seu autor-referência e acaba por regressar à civilização, rendendo-se à evidência de ser apenas mais um na multidão de conformismo e conforto perante a irresponsabilidade da abdicação e da submissão ao novo status quo.

*

Nas páginas 46 e 47, a pretexto de um plano de abordagem de François ao seu eterno estudo de Huysmans, Houellebecq apresenta-se (via a tão em voga metaficção) com uma espécie de súmula da sua ficção/obra, convidando-nos a assistir às glórias e infortúnios do Mundo através do seu olhar, apesar de todo o desconforto que possamos sentir.

“No entanto, a sensação negativa, a sensação de estagnação, de lento declínio, não suprimem completamente o prazer da leitura, porque o autor teve a seguinte brilhante ideia: num livro condenado a ser decepcionante, conta a história de uma decepção. Deste modo, a coerência entre o assunto e a maneira como é tratado aumenta a adesão estética, causa algum tédio, em suma, mas incita à continuação da leitura, e percebe-se que não são apenas as personagens que se sentem abandonadas durante a sua desoladora permanência no campo, mas também o próprio Huysmans. (...) O que permitiu (...) que Huysmans (...) saísse do impasse foi uma fórmula simples(...): adoptar uma personagem central como porta-voz do autor, personagem cuja evolução poderemos acompanhar em vários dos seus livros. (...) É óbvio que não é fácil, para um ateu, falar de uma sucessão de livros cujo assunto principal é a conversão religiosa; (...) Na ausência de verdadeira adesão emocional, o sentimento que aos poucos prevaleceu no ateu confrontado com as aventuras espirituais (...), foi, infelizmente, o tédio.”

 Houellebecq confessa encarar as personagens como projecções e nunca auto-retratos, meras hipóteses para um futuro alternativo. Por exemplo: será que, estudando Huysmans e literatura, poderia um dia ser professor universitário?

 Talvez a impossibilidade desse futuro justifique a tristeza e a solidão latente em toda a sua obra literária. Mas neste Submissão, a tristeza é relegada para segundo plano, perante uma resignação quase obscena, que se estende ao plano emocional.

A derradeira frase do livro é um claro e brutal “Je n'aurais rien à regretter”.[vii] François, no final, ficou vazio, sem nada nem ninguém de que sentisse saudades, perante a religião, o passado ou o amor, pilares da existência humana como a conhecemos.

Mas a base da obra é bem mais iconoclasta do que à primeira leitura poderá parecer. Para Houellebecq, o livro descreve o fim da filosofia iluminista, sem qualquer pertinência actual, mera geradora de infelicidade e de uma sensação de vazio, recuperando-se assim a natural tendência humana para o metafísico.

Houellebecq defende que nos encontramos hoje numa época que Comte chamou de Idade Metafísica, interrompida com o final da Idade Média. É simbólica a despedida de uma civilização, dos seus valores, uma viragem para um futuro ainda incerto, mas já, de certa forma, claro nos seus desígnios.

Como perfeito agent provocateur que sempre foi, tudo isto poderá não passar de uma provocação, perdoe-se o pleonasmo. Mas aqui, o francês parece ir mais além, defendendo um futuro que lhe parece realista e estendendo este exercício quase profético a todo o projecto europeu, que considera um fracasso politico, estratégico e, acima de tudo, democrático[viii].

Apesar de ter completado em Submissão o que em muito se assemelha ao clássico romance de ideias, Houellebecq é um homem do seu tempo, consciente da finitude do seu papel, quer como escritor-pessoa, cidadão francês, europeu e do Mundo em 2016, quer como escritor-espectro, inevitavelmente projectado nas personagens que cria, rejeitando responsabilidades sociais ou outras, imputáveis meramente pela sua obra publicada.

Por ironia, é exactamente essa obra que o contradiz, retratando os intelectuais franceses como absolutamente passivos e irresponsáveis, praticamente inimputáveis sociais.

Ninguém gosta de ser apanhado em flagrante, e o caso agrava-se quando um misantropo quase profissional se expõe, na fragilidade da sua argumentação, como afinal apenas um de nós, inerentemente múltiplo e dissonante.

Em última instância, são os livros que desafiam as nossas concepções, aqueles que mais tarde ou mais cedo recordamos, quando a realidade se cruza com a ficção. Houellebecq tem o dom de usar a cultura que o rodeia para criar essas “pedradas no charco”, cujas ondas inevitavelmente nos tocam, criando admiração ou repulsa.

Dizia Pessoa, melhor que ninguém: “Sentir, sinta quem lê!”. Porquê contradizê-lo?

 

[i] As manifestações de apoio da altura assumiram-se como verdadeiros estudos sociológicos, meras oportunidades renovadas para, entre sorrisos e gargalhadas, pôr a conversa em dia e mudar o cenário para as publicações de Instagram, o que não deixava de ser simultaneamente chocante e tranquilizador. Afinal, tudo continuava exactamente na mesma.  

[ii] Pela distância, mitigada pelos meios de comunicação, perfeitos e quase mecânicos emuladores de empatia em série, permitindo, com um clique e um hashtag, a mais perfeita e cordata inação.  

[iii] Não apenas para o âmbito económico (em que habilmente contornou os Tratados por forma a garantir a sobrevivência do Euro), como para a garantia de uma mais efectiva segurança e o estabelecimento de uma sólida e exemplar cidadania e humanismo europeus.  

[iv] A palavra árabe islam, que está na raíz de Islão, significa literalmente submissão (à vontade de Alá), pelo que é a única designação de uma religião sem qualquer ligação a uma pessoa ou grupo étnico, mas antes a uma ideia central.  

[v] Pensem em “As 50 Sombras de Grey” e juntem-lhe melhor escrita em doses generosas e uns pozinhos de Marquês de Sade. Sim caríssimos, a Sra. E. L. James não descobriu a pólvora...

[vi] I.e. o movimento identitário (anti semita e aparentemente nacionalista) e os movimentos dos jovens salafistas.

[vii] Que no livro surge erradamente traduzido (salvo melhor opinião) como “Não teria nada de que me arrepender”.

[viii] NYT, 13 de Outubro de 2015

 

[Ver perfil de Paulo Silva]

Agustina e a adopção completa do fogo

João Vuvu, personagem principal de Vai e Vem, de João César Monteiro, diz a Fausta que “o mundo das quimeras” cheira a “mofo”. 

Em Agustina Bessa-Luís, também os discursos emancipadores sofrem um desmantelamento intenso, uma vez que postulam uma redução do humano que, mais do que absurda, é perigosa: a amálgama, pretensamente generosa e benéfica da igualdade, aniquila a capacidade de transfiguração, em grande medida assente nas estrias provocadas pelo atrito. A individualidade, e não o individualismo como algumas leituras precipitadas fazem crer, é o que aparece preservado na obra da autora.

Por definição, todos as incontáveis rotas levadas a cabo nos livros de Agustina só admitem uma aproximação que se faça de frente, i.e., a transversalidade acarreta sempre a desconsideração de algumas características demasiado importantes: passar por cima do caos não é, no fundo, relacionarmo-nos com ele. Escolhemos, por isso, a personagem Amélia, de O Sermão do Fogo (1962). 

Lemos que “(...) a vida humana significa só duas coisas: resistência e desistência. Entre uma e outra, quanta palavra inútil e sentimentos escusados” (p. 162). Ora, essa é a inscrição de Amélia no mundo: resistência que é levada a cabo enquanto prerrogativa, ou seja, como potencialidade ou hipótese. O que não a faz desaguar na mera gratuitidade da abertura que tudo se dispõe a agregar: Amélia vai densificando a sua experimentação tendo como “bandeira” a “esperança”.

Prometeu, segundo Ésquilo, deu aos humanos não apenas o fogo mas também, muito especialmente, a esperança; e a esperança e o fogo (aqui, esperança-fogo) animam igualmente a questionação do Logos por parte de Heráclito. Todavia, aí - e neste Sermão - “esperança” não se insere num autismo ou sequer paliativo como resposta à realidade: é pela esperança, pelo assumir da liberdade e dos seus riscos, que Amélia incorpora o Pathos e fustiga os alicerces do determinismo. Daí que o combate por parte dessa pulsão de rompimento em Amélia se trave quer contra lógicas de eficácia – pós-modernismo e o apagar da diferença graças ao significante –, quer contra enunciados mitificadores – oráculo inquestionável e o dogma hermenêutico da essencialidade. Mas também não será o meio-termo: é “irromper pelo meio”, pegando na expressão de Deleuze.

Com efeito, Amélia ao perguntar “Mas o que é natural senão a uniformidade, e, de qualquer maneira, o descentrarmo-nos do fogo?” (p. 229), identifica com clareza aquele que é para si o motivo do amesquinhamento do carácter humano. E só uma personagem em constante contacto com o Outro consegue aperceber-se disso mesmo, daí que a postura de Amélia seja tudo menos alheada: é, pelo contrário, comprometida. 

O poder da relação dialógica com Maria Consolata é outro testemunho das cesuras através das quais Amélia vivencia o mundo: “O seu demónio mais pertinaz tinha sido enfim domado, e ela sabia que com ele se retiravam as mais profundas cláusulas do medo e da tristeza. A inconstância deixava enfim o seu coração, e havia nela agora uma identidade com Maria Consolata (…)” (p. 271). Aqui, não parece ser à derrota que se alude mas sim à superação da volatilidade dos temperamentos débeis. A criação de linhas de vida exige a elasticidade da deriva e, simultaneamente, a prudência anti-dissolução, uma vez que a desmesura anula, originando linhas de morte: a vontade de experienciar – obrigatória - convive com a imprevisibilidade.

Assim, a protagonista do romance O Sermão do Fogo ao fugir da tipificação literária canónica, serve de paradigma da insubmissão: “A vida, porém, aceite nessa nudez, a adopção completa do fogo, sem nomes líricos e sem fraternidades, a vida destacada em cada um na sua forma absoluta, isso é que faz as criaturas fantasmas divagadores.” (p. 192). Amélia, anti-Medusa, move-se pela procura instransigente do “ verdadeiro estado, alucinante estado de liberdade em que só o amor pode salvar” (p. 277).

Obra de paradoxo e de desafios éticos, a escrita de Agustina Bessa-Luís tem somente uma lição a dar-nos: a de que a atitude de recusa, para ter amplitude, carece da disponibilidade para o inapropriável, como acontece com a vida e com a Literatura

O som e a fúria

 Ao Tiago, amigo-irmão 

 

Como é geralmente considerado, Thomas Hobbes descreve o estado natural do Homem como um todos contra todos apenas apaziguado por um estado-leviatã, i.e., despótico ou, pelo menos, consideravelmente dominador. A descrença, vista como realística porque provada, justifica a inibição. Assim, contradizer a resignação será um fracasso, e a liberdade acaba por fatalmente dar lugar à mortificação do temperamento. Deste modo, o empirismo de Hobbes contextualiza e pressupõe a paralisia que é, scricto sensu, a ausência de movimento ou de gesto. 

Ora, Eleutheria (λευθερία), étimo da palavra “liberdade”, era para os gregos a liberdade de movimento, recusa de restrições que pretendessem manietar ou prender, literalmente, o corpo. Era também outra das denominações da deusa Ártemis. Claro está que o estado-natureza hobbesiano não prevê, menos ainda preconiza, o cativeiro; porém, como bem se nota, assenta namenorização emocional/emotiva, desligando o humano ao torná-lo encerrado, incomunicável. 

Concretamente, a dança era na Antiga Grécia não um mero vector, mas uma instância privilegiada de ligação ao patamar do imortal, ou seja, ao divino, como atestam as Leis platónicas. Os ritos iniciáticos dos deuses constituíam-se em grande medida dançando – Elêusis, Bacantes, etc. Aí a harmonia estabelecia-se pelo contacto humano, irredutível expressão a-temporal: a dança recusaria o apartar hobbesiano, por exemplo. A mutilação regenera-se e a propensão bélica inata ao ser humano não tem cabimento graças à convergência com a alteridade. 

A potente controversão de um qualquer estado de hostilidade latente só é possível graças a um compromisso intransigente de respeito pelo Outro. O ser diferente, entendido enquanto parte integrante daquela coerência na dissonância que se demarca do unanimismo a-crítico, só pode favorecer a criação do que é realmente novo. É por isso que o Lux Frágil, desde 1998, (re)afirma realmente um dos desejos mais eminentemente endógenos do ser humano: esse privilégio individual, mas não individualista, que é a liberdade. Para uns poderá ser catárctico, para outros paliativo; para mim o Lux é bem mais do que isso: é um encontro directo e vivo com a liberdade, essa que rejeita liminarmente anarquia e dogma. Ali, o salto é o que a entrega pressupõe, i.e., o desencadear do movimento, a negação do gueto. Nos espaços denominados de “diversão nocturna”, a vulgaridade e a mesmice não têm de ser uma inevitabilidade, muito menos um modelo que crie cópia e descendência. 

Desse modo, o Lux reivindica o singular numa aprendizagem através do incerto: o mundo em vez de qualquer promessa de paraíso. O ritmo proveniente das linhas de fuga melódicas e visuais, a dança que é simples dádiva sem interpretação, fúria que é indisponível modo de experimentar. Como no verso de Herberto Helder: “Não se pode tocar na dança.” 

António Franco Alexandre: em quanto então obedece

Ao Vasco Oliveira

Publicado originalmente em 1983, A Pequena Face tem como uma de duas epígrafes (a outra é da autoria de Montaigne) o seguinte verso de Paul Celan: “Wahr spricht, wer Schatten spricht” - “Fala verdade quem diz sombra.”, aqui na tradução de João Barrento e Yvette Centeno. 

De entre os possíveis eixos temáticos emergentes em A Pequena Face – veja-se, por exemplo, as referências ao “ouvido” e à audição enquanto veículos privilegiados de contacto com a verdade, aqui entendida numa acepção lata e não-convertível, uma vez que a destreza discursiva e imagética de António Franco Alexandre segrega o que é da ordem do inamovível -, porventura um dos mais férteis ancora-se na ideia de desobediência relativamente a sistemas pré-estabelecidos de conhecimento. Tratar-se-á, porém, de uma perspectiva elástica e cujo vigor da demarcação se apresenta, com frequência, imperceptivelmente. 

Com efeito, há antes de mais um feixe de sinalizações, ora directas, ora suscitadoras de um querer saber, no que tange a revelação de interferências que se vão interligando de modo a desvelarem uma vontade de recusa. Destacamos os seguintes: 

“nenhuma arte, nenhum saber, memórias/nada na manga metálica dos olhos/nada no simples claro contratempo/nas palavras medidas pelo breve/indício do sentido,/venha comigo ver os nunca vistos/ desastres do jamais acontecido” (…) nenhuma arte, veja voz alguma.” (pg. 13); “não desejando as puras, incorruptas/ palavras, mas o sopro/transparente da boca.” (pg. 51); “saberás que a linguagem/ não começou ainda/ o seu passo perdulário, / não há, no mundo, modos/ de dizer o movimento e o imóvel” (pg. 58).

Ora no primeiro exemplo, o recurso repetido de palavras que remetem para o domínio da ineficácia/derrota - “nenhuma”, “nada”, “alguma”, “nunca”, “jamais” - parece, contudo, extravasar a pura negatividade, na medida em que se procura/propõe o alargamento da(s) probabilidade(s). Não sendo meros artifícios literários, ou sequer balizas temporais tão-só indicativas, os termos elencados funcionam simultaneamente como difusores e como núcleos discursivos próprios e autónomos, se bem que numa conectividade permanente com outros tópicos, como seja o amor, que, por vezes, poderão desaguar numa certa rarefacção.

Todavia, essa rarefacção impulsiona enormemente a multiplicidade de linhas coexistentes, impeditivas do óbvio. 

Ao tomarmos contacto com a segregação desejada das “puras” e “incorruptas palavras”, como que substituídas pelo “sopro transparente da boca”, saberemos que a “linguagem ainda não começou.” Não parece, cremos, que se preconize o aniquilamento da linguagem/fala – spricht e sprache (Dichtung)  - i.e., da materialização, por palavras, do dialogar e do interagir, mas sim, nomeadamente, uma desunião direccionada a lirismos vazios e descodificáveis. Surgem, consequentemente, uma exigência e um compromisso com a inutilidade, no caso, da poesia. Se falamos de “inutilidade”, esta relaciona-se com a censura a uma pretensa capacidade salvífica da poesia: “em silêncio me muro e me demoro/ no cálculo de rotas inexactas (…) vou dizer o que sei como quem mente.” (pg. 9); “a escrita seria, ouça,/ silenciosa,” (pg. 24). 

Celan diz-nos que a poesia “é uma forma de aparição da linguagem”, visão que se poderá relacionar com o que acabámos de dizer, i.e., a poesia como possibilidade e como faculdade de a linguagem se poder furtar igualmente à mera comunicabilidade primária, o que abre os limiares da existência da própria linguagem, convocando, assim, o silêncio.

Não obstante, o Ungrund em Celan postula um poder dialógico implacável que, por isso, possui uma veemência algo divergente da capacidade derivativa de António Franco Alexandre, que, como assinalámos, não cinge as suas manifestações apenas ao objecto do nosso testemunho. Porém, o “lançar de dados” que lemos no poemaAos Pares (Zu Zweien), dialoga com aquele “lugar incerto onde aconteço” que existe em A Pequena Face. O silêncio de quem fala verdade, em António Franco Alexandre, constituirá o de índole wittgensteiniana, ou seja, aquele que permite a abertura à “vivência do significado” (Erlebnis) que o filósofo austríaco sugere. No § 5.634 do Tractatus, Wittgenstein descortina, porventura, o poder mais específico da linguagem: “Tudo o que de todo podemos descrever podia ser diferente do que é.”, muito também porquanto “Não existe uma ordem a priori das coisas.” 

António Franco Alexandre refere “as palavras fechadas” (pg. 18) que se associam “conforme/ a tão minuciosa convenção (…) em que dormitam” (pg. 42). Ofício subtil e prolongado - “só pouco a pouco afasto das palavras/ o som que importa” - , o fazer poético específico, mas não isolado, para ser criador terá de rejeitar ópticas utilitárias e estáticas, o que também não significa, claro está, que seja alienante e sedutor – o que acabaria por resvalar na origem do comentário aqui mostrado, i.e., a suposta índole purificadora da poesia. Se as palavras “dormitam”, na poesia/vida elas terão de interferir. A sombra, que destrói o automático ao desregular a cadência, promove e enfatiza um desobedecer. 

Isto para tentar pensar com uma parte contida em A Pequena Face, livro-esboço que se dirige ao exterior, para a comunhão, ou não fosse esta, provavelmente, a materialização de um estar no mundo contingente mas potencial e vivo: “quero viver o que me dizes (…) venho encontrar-te para uma traição.” (pg. 54)

Tópoi desvelados

Helena Almeida, Seduzir, 2002

Uma espécie de penúltima expressão.
Helena Almeida

Em Elêusis dançava-se. A explosão inexcedível do que é da ordem da susceptibilidade, i.e., o (im)possível, amplifica o segredo da partilha comungada naqueles ritos iniciáticos presididos pelas duas deusas gregas. Pulverizando o carácter de mero medium instrumentalizado e manietado a qualquer propósito primacial de utilidade, a dança é ali a inviolabilidade da passagem magmática que não se enclausura e auto-consome, e por isso anula, mas que possui correspondência com a alternativa infindável.

Ao olharmos para Seduzir (2002), de Helena Almeida, vemos gestos heterodoxos: um discreto levantar de saia, as mãos que tocam o chão e ladeiam os pés, o corpo indómito sustido apenas por uma perna, tudo isto como que integrando uma coreografia. Algumas das foto-pinturas de Seduzir evidenciam manchas impositivas de tinta vermelha: mostradas na mão ou pegadas ao chão. Constituindo uma série, plasma proposicional praticamente ubíquo na produção da artista, essa circunstância, num primeiro prisma, poderá associar-se à ideia plana de progressão entendida como registo de continuação mas não necessariamente enquanto narração – entendimento, aliás, que pouca ou nenhuma aderência possuirá em Helena Almeida, como iremos ver.

Se no percurso de Helena Almeida o corpo é omnipresente, a verdade é que em Seduzir ele já não assume uma feição mediata, e por isso secundarizada, mas é antes o núcleo significativo através e no qual converge a indagação memorial. Como a própria admite (Carlos, 2005, p. 60), houve uma inversão no seu trabalho, abandonando a problematização conceptual do cânone pictórico – onde começa e acaba a pintura, o convívio e/ou demarcação com a escultura, com a fotografia, etc - , para chegar às relações que o corpo estabelece auto-reflexivamente, bem como com o que o rodeia de modo activo, i.e. , no âmbito de uma interacção conflitual: surge, assim, a aferição ensaiada e contínua dos limites (corporais) do humano. 

A propósito da génese e contínuo do seu processo criativo, indissociável do modo de estar no mundo, Helena Almeida diz-nos o seguinte:

“Sinto-me quase no limiar onde esses dois espaços [condenação e sobrevivência] se encontram, esperam, hesitam e vibram. É uma tentação aí ficar e assistir ao meu próprio processo, vivendo um sonho com duas direcções. Mas isso é intolerável e com urgência qualquer coisa se liberta em mim como se quisesse sair para a frente de mim própria.” (Carlos, 1987, p. 3)

Esta perspectiva pessoalíssima de dar a ver, poderá prestar-se a esforços hermenêuticos demasiado imperativos e autistas; a arqueologia interpretativa é frequentemente infecunda. 

Assim, o que nos parece mais interessante ampliar talvez seja a noção de franja – o tal “limiar” - associada ao desejo, catalisador impetuoso de energia que, por isso mesmo, requer a capacidade propulsora da paixão.

Ora, o acto de seduzir equivale à entrada, pelo menos tentada, no reino da intimidade, não necessariamente sexual. Se os saltos altos e as pernas podem convocar a ideia de erotismo, ainda para mais concentrada que possa estar nesses pontos devido à ausência do rosto, não nos parece que o óbvio esteja presente. Não caberá falar de tema ou motivo em Seduzir

A propósito desta série, Helena Almeida confessa que se inspirou na irmã, na sua elegância e no facto de, fatalmente doente, ter permanecido pelo menos exteriormente intocada: “E como ela, muita gente tenta parecer bem a qualquer preço.” (ibidem, p. 59). A morte que “pontuou muitas vezes os meus trabalhos” (ibidem, p. 53), sendo o estádio conclusivo real e/ou mítico por excelência, aparece-nos aí directamente agregada à sedução capaz de incorporar em si o íntimo. Vislumbram-se, todavia, matizes que importa evidenciar.

Sendo a morte um dos terrenos mais férteis do cliché, em Seduzir a refutação quer da banalidade, quer do ensimesmamento, mostra-se desde logo pelo teor memorial, ou memoriado, por nós já referido. Se, de certa maneira, foi a morte da irmã a dialogar com esta obra, tratar-se-á de uma memória de experiência, que não será somente passada. A morte de outra pessoa podendo ser sentida como se fosse a nossa:

“A consciência da morte própria ou de outro, é a fonte primeira do terror. Este decorre da própria condição do indivíduo (do seu existir separado) e do desejo de manutenção da autonomia de um corpo, desejo de sobrevivência. Cada corpo está sujeito à acção de outros corpos, à morte vinda do exterior, mas o humano, para além disso, está também exposto à morte que vem de dentro, do “sangue memoriado”, que é a relação com o desaparecimento do outro.” (Lopes, 2003, p. 28)

Escrevendo a partir da obra de Herberto Helder, Silvina Rodrigues Lopes densifica, aqui especificamente a propósito do tópico da morte na poética herbertiana, a dimensão metamórfica, ou pelo menos transformadora, que a limitação pode assumir. No caso do poeta, a morte pode ser tida como um convite, como um estádio dinâmico que exige, longe de concepções nihilistas ou míticas, a robustez sempre posta em causa: “Meu sangue envolve os mortos/como um braço profundo. Solda-os.” No fundo, é um modo de lidar com o medo.

Se a índole rizomática da obra de Herberto Helder postula a fuga “à morte como um estado” (Lopes, 2003, p. 48), uma vez que “a morte é passar, como rompendo uma palavra,/ através da porta, /para uma nova palavra.” (Helder, 2009, p. 63), em Helena Almeida será graças ao tal sonho desejante e desejado, reforçado pela cor, no caso, o vermelho que convoca a medida da encenação como a própria revela, que o “indizível” se diz. “Condenação e sobrevivência” não se anulam dicotomicamente nem porventura se fundem, antes partilham um espaço onde a medição não cabe.

A cor - talvez o eminentemente, ou primariamente, pictórico - na versão precisa mas irradiante presente em Seduzir, adquire uma veemência e dramatismo singulares, ainda para mais servindo-se dessa ferramenta sequestradora da realidade que é a fotografia. Não que a cor seja, como para Kandinsky, um organismo vivo, mas a ideia de contraste, ou abismo, tem lugar privilegiado em Helena Almeida; e a libertação dá-se muito fortemente através da cor – já em Pintura Habitada, a abertura é sintomática, na medida em que a assumpção da cor, o azul cobalto, corresponderá à criação de um território potenciado, e não a uma asfixia ou neutralização.

Para a artista, a arte não pretende ter um ideal ou fim – a recusa de interpretação, entendida como acorrentada ao dogma, é inclusivamente referida (Cf. Carlos, 2005, p. 21) advirá da procura da a-significação, que é o extensivo mais veemente. 

Deleuze afasta vigorosamente a possibilidade de qualquer expressão artística poder ser imitativa/representativa, uma vez que ao estar vertida, por exemplo, numa tela, uma imagem mercê do devir, já se transformou, ou está prestes a transformar-se, em cor ou no contorno/linha. Não cremos que haja, em Helena Almeida, qualquer presença, muito menos intuito, dirigido a um mimetismo mecanizado, daí que haja uma refrega particular com o cliché. Novamente o filósofo francês e o interessante “momento pré-pictórico”, no qual o artista tem de esvaziar, desimpedir ou limpar uma superfície” (Deleuze, 2011, p. 151). No caso concreto de Seduzir, a remoção do que é da ordem do pré-determinado, do cristalizado em inamovíveis certezas cerceadoras do que veicula o desejo, enceta-se num vínculo com a potência. Diz-nos Pico della Mirandola que “habitamos na deserta solidão do corpo”. Corpo enquanto corpografia, mapa atravessado por hipóteses, Seduzir não patenteia a melancolia da desistência: atente-se ao étimo latino do termo “seduzir”, seducere, que remete para a ideia de desvio de caminho ou mudança de direcção. O vermelho que é um lastro, um rasto, uma pegada, i.e., um sinónimo de vivência e recusa. A pura vertigem mortalmente viva que é Seduzir, apegada que está ao real como impulsionador da possibilidade de metamorfose do símbolo, não é catártica, manifestando antes um apelo consciente à recusa de fim.

Ao contrário de algumas propostas radicais de criação de um conceptualismo artístico de feição rarefeita – veja-se o caso de Joseph Kosuth e a sua desmaterialização completa do objecto, com a correlativa redução mental, que pretende solucionar, aniquilando, a indefinibilidade imanente a um certo entendimento de Arte Conceptual ainda de tipo referencial Helena Almeida, no âmbito pessoal mais concreto, e por isso íntimo, do seu fazer artístico, entende a pintura, mais do que enquanto elenco de soluções ou modelos, como problematização. A indissociabilidade inelutável entre vida e obra, que não significa que ambas possam ser mutuamente comutadas, e muito menos advindas de um biografismo ingénuo e frívolo, assume em Seduzir um semblante indomável porque a-fundamentado, e por isso apto e predisposto a aproximações inúmeras e constituintes. Deste modo, o sujeito(-corporal) vai reclamando uma modelação volúvel, parcialmente inerente ao seu estado e inserção na Natureza, mas não lhe obedecendo em absoluto.

Com efeito, a figura, em Seduzir, não preconiza o apagamento fáctico mas o destapamento que permite um anonimato que, alargando a incidência da exposição e do ensaio, serve de igual modo enquanto delineamento relativo. Por outras palavras, o que estará em causa é a relação com o caos, igualmente cara ao pensamento de Deleuze: se o abstraccionismo ignora o caos, e o expressionismo abstracto vai demasiado além, o diagrama – que é a operação a-subjectiva por excelência que prepara a pintura e participa na relação da mesma com a figura – terá de ser minimamente temperado, sob pena de destruir ou impedir que as sensações se dêem e circulem.

Ora, no caso concreto desta série de Helena Almeida, o conluio desviante e instável entre o nítido – a cor, a seriação e o arame enrolado na perna -  e o velado – o rosto (“porta-voz”  des-centrado?) e os movimentos – acentua a análise e a disposição em relação ao caos, i.e., ao(s) limite(s). A morte, a degradação e a finitude físicas do que é humano, são confrontadas graças à produção de rupturas e descontinuidades que acrescentam o eventual, num metacorpo condenado a sobreviver e cuja textura é feita de carne e de desejo.

Poder-se-á, assim, comparar com Elêusis, esse início da enigmaticidade no qual a dança permanece e se vai inscrever eternamente de passagem em passagem, não sendo esconderijo mas antes procura de emoções, desimpedidas que estão pelo mistério. Só isso se conhece uma vez que apenas isso pode ser conhecido: porventura não será a celebrante dança de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, mas sim a pungente e efectiva experimentação que é ir dançando nos intervalos.

 

Referências bibliográficas:

 

  • Carlos, Isabel e Phelan, Peggy, intus (2005), Lisboa, Civilização Editora
  • Deleuze, Gilles, Lógica da Sensação (2011), Lisboa, Orfeu Negro
  • Deleuze, Gilles/ Guattari, Félix, Mille Plateaux – Capitalisme et Schizophrénie 2 (2013), Paris, Les Éditions de Minuit
  • Helder, Herberto, Ofício Cantante – poesia completa (2008), Lisboa, Assírio e Alvim
  • Lopes, Silvina Rodrigues, A Inocência do Devir (2003), Lisboa, Edições
  • Vendaval
  • Marchan- Fiz, Simón, Del arte objetual al Arte de concepto: Las artes plásticas desde 1960 (1974), Madrid, Alberto Corazon

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