Submissão

Paris teve um ano de cão.

Começou-o atacada na sua dignidade e tão distintos e históricos valores laicos e republicanos, com o horrendo ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, reduto indefectível de liberdade de expressão e escolha dos conteúdos, independentemente dos seus destinatários, algo quase impossível em qualquer outro país da U.E. ou do outro lado do Atlântico.

Na altura, a tragédia foi uma verdadeira benção para Hollande, finalmente capaz de sacudir a pressão da imprensa, hiperbolizada pela sua inábil e atribulada vida amorosa e pela tímida reacção aos problemas sociais e económicos de que a França padecia. Retomou a liderança, caçaram-se os culpados em directo global e os líderes europeus deram as mãos para a fotografia (com Sarkozy desesperado pelo enquadramento na moldura e a ascendente extrema-direita estrategicamente posta de parte), retratando uma Europa em declínio, sombra dos tempos da sua fundação, despida do seu vigor humanístico e humanitário e vencida pela força dos números, das estatísticas e dos poderes que deles se servem para prosperar.

No chamado “mundo ocidental”, os clássicos “eles é que provocaram/pediram” ou “não tinham nada que ofender outras religiões” foram bem audíveis, contemporâneos aos ubíquos “Je suis Charlie” que pululavam nos fóruns sociais e outros mais ou menos institucionais, rapidamente banalizados e esquecidos, como qualquer outra moda inócua e passageira.[i]

As consequências práticas, para além do luto e do medo dos locais (pela proximidade e absoluta impotência perante a violência dos actos) e do (mal disfarçado) alívio dos vizinhos [ii], foram nulas. Um breve acréscimo de vigilância, logo mitigado e dissipado, na proporção directa com o “vigor interventivo” da chamada “sociedade civil”, esse ente banalizado e apenas comparável com “a Internet” ou “os media”: anónimos, virtualmente inquantificáveis e sem qualquer poder real, embora constantemente citados perante a necessidade de fabricar consensos, com as mais diversas e frutuosas utilidades.

2015 avançou e o fresco europeu tomou tons baços e obscuros.

A inépcia voluntária e displicente da classe dirigente francesa e europeia, completamente desprovida de estratégias e capacidade de liderança[iii], apesar de previsíveis, foram chocantes.

Os atentados de 13 de Novembro revestiram-se de contornos inéditos no século XXI ocidental e europeu. A frieza na execução, os locais e os horários escolhidos, desconcertaram uma Europa já em grande buliço e uma nação francesa, novamente de luto, atingida no seu coração.

O livro que involuntariamente se tornou indissociável desta Paris massacrada, chegou a Portugal há uns meses, mas a sua pertinência e actualidade não se desvaneceram.

Personagem cujo carisma garante projecção mundial a cada novo livro ou palavra pública, Houellebecq conseguiu com Submissão a proeza de ser fortemente criticado ainda antes da publicação do livro (exactamente a 7 de Janeiro, dia do massacre no Charlie Hebdo, pouco depois de ser publicada uma capa em que o próprio surgia caricaturado). Cancelou imediatamente a tournée de promoção do livro e refugiou-se em parte incerta, concedendo apenas uma emocionada entrevista na TV.

Colocar o livro no género da sátira será redutor mas inevitável. Cedo se torna perceptível esse tom, ainda antes de o livro ser aberto.

O título Submissão evoca jocosamente a raíz etimológica da palavra Islão[iv], jogo de palavras progressivamente mais relevante com o desenvolvimento do romance.

A palavra em si surge apenas na página 230, acompanhada por uma das passagens mais esclarecedoras do livro. François, o nosso protagonista, encontra pela primeira vez Robert Rediger, um dos poderosos do novo regime político, “conhecido pelas suas posições pró-palestinianas e que fora um dos principais obreiros do boicote aos professores universitários israelitas”, que lhe explica, com um exemplo literário, o fascínio da filosofia holística subjacente ao Islamismo.

“- É a submissão (...) a ideia espantosa e simples (...) de que o máximo da felicidade humana reside na submissão mais absoluta.(...) para mim há uma relação entre a absoluta submissão da mulher ao homem, tal como descrita em “História d´O”[v], e a submissão do homem a Deus, tal como é encarada no Islão.(...)o islão aceita o mundo, aceita-o integralmente(...) para o islão, a criação divina é perfeita, é uma obra-prima absoluta.”  

A demanda de uma identidade na era da solidão, juntamente com a reflexão sobre a Religião e a triste angústia existencial perante a omissão de um referencial filosófico e sociológico verdadeiramente estruturado e estruturante, são traços comuns a toda a obra do francês.

Submissão acrescenta novo mosaico a esse painel, onde pairam os demónios que a França insiste em ignorar e Houellebecq nunca se fez rogado em exorcizar, nomeadamente os desafios colocados pela diversidade cultural, étnica e religiosa (com o passado colonialista sempre em fundo), a vacuidade da classe artística e mais mediática (os famosos são tratados por tu, como qualquer outra personagem) e o hiperbólico consumismo pós-moderno.

Neste livro, inadvertidamente (ou talvez não) e com as devidas distâncias, é perceptível a alusão ao colaboracionismo infame do Governo de Vichy com os nazis, durante a II Guerra Mundial. É transversal a todo o romance, na silenciosa aceitação das circunstâncias e das mudanças, mediante a conveniente retribuição, nas palavras por dizer ou nos longos solilóquios mentais de François, impulsos e ensejos inconfessáveis, mesmo entre amigos.

A Religião, justificação para algumas das maiores atrocidades experienciadas pelo ser humano, é o pretexto para Houellebecq operar uma mudança ficcional de paradigma, colocando uma hipótese ao leitor: e se o Islão fosse uma realidade viável no Ocidente?

Inteligentemente, o Islão é ficcionado como enquadrado (e enquadrável) nos parâmetros democráticos ocidentais. Para muitos, tal poderá soar a falso, vindo do mesmo homem que, há uma década, foi absolvido pela justiça francesa de acusações de incitamento ao ódio religioso e racial, ao declarar publicamente que o Islão era a religião mais estúpida.   

Todavia, o homem por detrás de “Submissão” é hoje mais ponderado.

Há um ano atrás, em entrevista à The Paris Review, a primeira acerca do livro, revelou que, perante todas as mortes com que tinha lidado (os seus pais, o fiel cão), se tinha incompatibilizado com o seu ateísmo. A negação da existência de uma ordem cósmica ou de um criador era-lhe agora insuportável, partindo daí a ideia para o livro.

Como Auguste Comte, sua grande influência, de uma mundividência puramente científica, evoluíu para a crença de que a sociedade não sobrevive sem religião.

O título do projecto inicial era “La Conversion” (a conversão) e descrevia o caminho de um intelectual até ao catolicismo, seguindo os traços biográficos de Joris-Karl Huysmans, em cuja obra se tinha especializado. Cedo concluiu que a ideia não resultava.

Ao tentar colocar-se na pele de um muçulmano, entendeu que faria sentido a existência de um partido em que este se revisse. Analisando a situação política dos muçulmanos no Ocidente, constatou ser-lhes completamente alheia e distante: não se reveêm na direita nem a direita se revê na sua cultura e a esquerda, pela sua óptica, roça o libertinismo.

Os obstáculos à verosimilhança de tal situação eram óbvios. A perspectiva viciada que os media criam acerca desta religião, retratando cada novo convertido ao islamismo como um jihadista (esquecendo uma larga maioria que não o faz), assim como os grandes cismas históricos existentes no seu interior (do Islão), inviabilizariam à partida um partido nestes moldes.

A solução simples para esta aparente contradição, encontrou-a na História que, ciclicamente, nos relembra a importância do homem providencial, o líder carismático e mobilizador. Mohammed Ben Abbes é a personagem-chave do romance, embora nunca surja no mesmo. A sua Fraternidade Muçulmana, partido que acaba por vencer as eleições em França, é, à sua imagem, concicliador e iconoclasta.

A fundamentação política e ideológica do romance poderá ser falsamente interpretada como um alerta, pelo temor, da possibilidade de o Islão tomar as rédeas das instituições francesas. Segundo o autor, desta feita ao New York Times, o objectivo foi bem distinto.

No contexto certo e com a adequada liderança, numa sociedade profundamente laica e republicana como a francesa, o Islão teria uma maior possibilidade de vingar do que o catolicismo, graças ao seu carácter mais holístico.

Para além disso, para Houellebecq a conversão é um acto de esperança numa nova sociedade, normalmente sem motivações sociais, apesar de o livro apresentar o reverso dessa medalha.

*

Com esta bagagem, regressemos a François.

O professor, misantropo proficiente e profissional, com quinze anos de uma carreira para a qual nunca teve vocação, encontra na vida académica o seu habitat preferencial.

No entanto, é precisamente com o inicío da sua vida profissional que começa a sentir o peso absurdo da solidão, perdida a rede de contactos mantida durante os anos de estudo na faculdade.

Entre dislates sobre o quotidiano, reflexões existenciais típicas de um quarentão solitário e irrelevantes disputas filosóficas com os seus pares, encontra nas alunas a companhia perfeita para o tipo de relação amorosa que lhe convém: fugaz, sem qualquer compromisso, fisicamente satisfatória e com a leveza emocional de um romance de cordel.

Chamava-lhes “namoradas-mais ou menos à razão de uma por ano.”, o correspondente ao período lectivo, e encarava estes relacionamentos como “estágios”, que se sucederiam “até desembocarem, em apoteose, na última relação, aquela que teria o carácter conjugal e definitivo, e conduziria, via concepção de filhos, à constituição de uma família”.

Até que conhece Myriam, e cedo percebe que nada seria igual depois dela. Apesar de ter alguns namoricos depois de também ela o deixar, sente que o inexorável peso da idade e o tédio da rotina e da previsibilidade lhe alteram os padrões que tanto estimava, desiludindo-se também com estas relações episódicas.

O meio universitário apenas lhe garantia estatuto social e um emprego estável. As críticas a toda a artificialidade que o rodeia são abundantes, desde a virtualmente inverificável origem das teses, aos egos alimentados pela falsa aparência de um saber acumulado, raramente real.

Começam a surgir indícios de graves problemas sociais logo nas primeiras páginas, com facções rivais[vi] à espera do pretexto certo para se confrontarem, impedimentos e dificuldades aos professores israelitas e rumores preocupantes de agressões a professores em plena universidade.

No início do processo eleitoral, a vitória da Fraternidade Muçulmana era ainda uma hipótese remota, embora isso pouco interessasse ao nosso anti-herói, devastado perante a notícia de que a “sua” Myriam ia regressar à sua Israel natal, receosa do que se antecipava ser uma revolução social e política onde as mulheres da religião “errada” seriam ostracizadas.

François sentia-se “tão politizado como uma toalha de mãos”, mas mantinha-se consciente da “atmosfera estranha, opressiva, uma espécie de desespero sufocante, profundo”, altura em que “muitos foram os que optaram pelo exílio.”

A violência banaliza-se, juntamente com o conformismo de imprensa e inteligentzia, e o sentimento geral é de impotência e desresponsabilização, inclusive das autoridades policiais. O inevitável paralelo com a Alemanha do 3º Reich, na década de 30, surge estampado na página 53: “Este tipo de cegueira, aliás, nada tinha de historicamente inédito: encontra-se por exemplo, em todos os intelectuais, políticos e jornalistas dos anos 1930, unanimemente convencidos de que Hitler «acabaria por voltar à razão».”

Neste buliço, tal como Huysmans, séculos antes, o nosso protagonista decide dirigir-se para o campo, em busca de algo que nem o próprio sabia identificar. É aí que, como Paulo de Tarso no deserto, tem uma revelação, momento-chave do livro, em que, perante a Madonna Negra de Rocamandour, assume em definitivo a sua incapacidade de seguir o caminho do seu autor-referência e acaba por regressar à civilização, rendendo-se à evidência de ser apenas mais um na multidão de conformismo e conforto perante a irresponsabilidade da abdicação e da submissão ao novo status quo.

*

Nas páginas 46 e 47, a pretexto de um plano de abordagem de François ao seu eterno estudo de Huysmans, Houellebecq apresenta-se (via a tão em voga metaficção) com uma espécie de súmula da sua ficção/obra, convidando-nos a assistir às glórias e infortúnios do Mundo através do seu olhar, apesar de todo o desconforto que possamos sentir.

“No entanto, a sensação negativa, a sensação de estagnação, de lento declínio, não suprimem completamente o prazer da leitura, porque o autor teve a seguinte brilhante ideia: num livro condenado a ser decepcionante, conta a história de uma decepção. Deste modo, a coerência entre o assunto e a maneira como é tratado aumenta a adesão estética, causa algum tédio, em suma, mas incita à continuação da leitura, e percebe-se que não são apenas as personagens que se sentem abandonadas durante a sua desoladora permanência no campo, mas também o próprio Huysmans. (...) O que permitiu (...) que Huysmans (...) saísse do impasse foi uma fórmula simples(...): adoptar uma personagem central como porta-voz do autor, personagem cuja evolução poderemos acompanhar em vários dos seus livros. (...) É óbvio que não é fácil, para um ateu, falar de uma sucessão de livros cujo assunto principal é a conversão religiosa; (...) Na ausência de verdadeira adesão emocional, o sentimento que aos poucos prevaleceu no ateu confrontado com as aventuras espirituais (...), foi, infelizmente, o tédio.”

 Houellebecq confessa encarar as personagens como projecções e nunca auto-retratos, meras hipóteses para um futuro alternativo. Por exemplo: será que, estudando Huysmans e literatura, poderia um dia ser professor universitário?

 Talvez a impossibilidade desse futuro justifique a tristeza e a solidão latente em toda a sua obra literária. Mas neste Submissão, a tristeza é relegada para segundo plano, perante uma resignação quase obscena, que se estende ao plano emocional.

A derradeira frase do livro é um claro e brutal “Je n'aurais rien à regretter”.[vii] François, no final, ficou vazio, sem nada nem ninguém de que sentisse saudades, perante a religião, o passado ou o amor, pilares da existência humana como a conhecemos.

Mas a base da obra é bem mais iconoclasta do que à primeira leitura poderá parecer. Para Houellebecq, o livro descreve o fim da filosofia iluminista, sem qualquer pertinência actual, mera geradora de infelicidade e de uma sensação de vazio, recuperando-se assim a natural tendência humana para o metafísico.

Houellebecq defende que nos encontramos hoje numa época que Comte chamou de Idade Metafísica, interrompida com o final da Idade Média. É simbólica a despedida de uma civilização, dos seus valores, uma viragem para um futuro ainda incerto, mas já, de certa forma, claro nos seus desígnios.

Como perfeito agent provocateur que sempre foi, tudo isto poderá não passar de uma provocação, perdoe-se o pleonasmo. Mas aqui, o francês parece ir mais além, defendendo um futuro que lhe parece realista e estendendo este exercício quase profético a todo o projecto europeu, que considera um fracasso politico, estratégico e, acima de tudo, democrático[viii].

Apesar de ter completado em Submissão o que em muito se assemelha ao clássico romance de ideias, Houellebecq é um homem do seu tempo, consciente da finitude do seu papel, quer como escritor-pessoa, cidadão francês, europeu e do Mundo em 2016, quer como escritor-espectro, inevitavelmente projectado nas personagens que cria, rejeitando responsabilidades sociais ou outras, imputáveis meramente pela sua obra publicada.

Por ironia, é exactamente essa obra que o contradiz, retratando os intelectuais franceses como absolutamente passivos e irresponsáveis, praticamente inimputáveis sociais.

Ninguém gosta de ser apanhado em flagrante, e o caso agrava-se quando um misantropo quase profissional se expõe, na fragilidade da sua argumentação, como afinal apenas um de nós, inerentemente múltiplo e dissonante.

Em última instância, são os livros que desafiam as nossas concepções, aqueles que mais tarde ou mais cedo recordamos, quando a realidade se cruza com a ficção. Houellebecq tem o dom de usar a cultura que o rodeia para criar essas “pedradas no charco”, cujas ondas inevitavelmente nos tocam, criando admiração ou repulsa.

Dizia Pessoa, melhor que ninguém: “Sentir, sinta quem lê!”. Porquê contradizê-lo?

 

[i] As manifestações de apoio da altura assumiram-se como verdadeiros estudos sociológicos, meras oportunidades renovadas para, entre sorrisos e gargalhadas, pôr a conversa em dia e mudar o cenário para as publicações de Instagram, o que não deixava de ser simultaneamente chocante e tranquilizador. Afinal, tudo continuava exactamente na mesma.  

[ii] Pela distância, mitigada pelos meios de comunicação, perfeitos e quase mecânicos emuladores de empatia em série, permitindo, com um clique e um hashtag, a mais perfeita e cordata inação.  

[iii] Não apenas para o âmbito económico (em que habilmente contornou os Tratados por forma a garantir a sobrevivência do Euro), como para a garantia de uma mais efectiva segurança e o estabelecimento de uma sólida e exemplar cidadania e humanismo europeus.  

[iv] A palavra árabe islam, que está na raíz de Islão, significa literalmente submissão (à vontade de Alá), pelo que é a única designação de uma religião sem qualquer ligação a uma pessoa ou grupo étnico, mas antes a uma ideia central.  

[v] Pensem em “As 50 Sombras de Grey” e juntem-lhe melhor escrita em doses generosas e uns pozinhos de Marquês de Sade. Sim caríssimos, a Sra. E. L. James não descobriu a pólvora...

[vi] I.e. o movimento identitário (anti semita e aparentemente nacionalista) e os movimentos dos jovens salafistas.

[vii] Que no livro surge erradamente traduzido (salvo melhor opinião) como “Não teria nada de que me arrepender”.

[viii] NYT, 13 de Outubro de 2015

 

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