O som e a fúria

 Ao Tiago, amigo-irmão 

 

Como é geralmente considerado, Thomas Hobbes descreve o estado natural do Homem como um todos contra todos apenas apaziguado por um estado-leviatã, i.e., despótico ou, pelo menos, consideravelmente dominador. A descrença, vista como realística porque provada, justifica a inibição. Assim, contradizer a resignação será um fracasso, e a liberdade acaba por fatalmente dar lugar à mortificação do temperamento. Deste modo, o empirismo de Hobbes contextualiza e pressupõe a paralisia que é, scricto sensu, a ausência de movimento ou de gesto. 

Ora, Eleutheria (λευθερία), étimo da palavra “liberdade”, era para os gregos a liberdade de movimento, recusa de restrições que pretendessem manietar ou prender, literalmente, o corpo. Era também outra das denominações da deusa Ártemis. Claro está que o estado-natureza hobbesiano não prevê, menos ainda preconiza, o cativeiro; porém, como bem se nota, assenta namenorização emocional/emotiva, desligando o humano ao torná-lo encerrado, incomunicável. 

Concretamente, a dança era na Antiga Grécia não um mero vector, mas uma instância privilegiada de ligação ao patamar do imortal, ou seja, ao divino, como atestam as Leis platónicas. Os ritos iniciáticos dos deuses constituíam-se em grande medida dançando – Elêusis, Bacantes, etc. Aí a harmonia estabelecia-se pelo contacto humano, irredutível expressão a-temporal: a dança recusaria o apartar hobbesiano, por exemplo. A mutilação regenera-se e a propensão bélica inata ao ser humano não tem cabimento graças à convergência com a alteridade. 

A potente controversão de um qualquer estado de hostilidade latente só é possível graças a um compromisso intransigente de respeito pelo Outro. O ser diferente, entendido enquanto parte integrante daquela coerência na dissonância que se demarca do unanimismo a-crítico, só pode favorecer a criação do que é realmente novo. É por isso que o Lux Frágil, desde 1998, (re)afirma realmente um dos desejos mais eminentemente endógenos do ser humano: esse privilégio individual, mas não individualista, que é a liberdade. Para uns poderá ser catárctico, para outros paliativo; para mim o Lux é bem mais do que isso: é um encontro directo e vivo com a liberdade, essa que rejeita liminarmente anarquia e dogma. Ali, o salto é o que a entrega pressupõe, i.e., o desencadear do movimento, a negação do gueto. Nos espaços denominados de “diversão nocturna”, a vulgaridade e a mesmice não têm de ser uma inevitabilidade, muito menos um modelo que crie cópia e descendência. 

Desse modo, o Lux reivindica o singular numa aprendizagem através do incerto: o mundo em vez de qualquer promessa de paraíso. O ritmo proveniente das linhas de fuga melódicas e visuais, a dança que é simples dádiva sem interpretação, fúria que é indisponível modo de experimentar. Como no verso de Herberto Helder: “Não se pode tocar na dança.”