Lourdes Castro: dar a ver o enigma

Lourdes Castro, Odalisque  d'après Ingres (1964)

Num testemunho intitulado Sombras Projectadas e Contornos, Lourdes Castro diz-nos o seguinte:

“A sombra ainda é palpável. O contorno já não é. (…) [o contorno] é, creio, um novo olhar sobre o que me rodeia. 
A sombra projectada como contorno interessa-me muito mais do que a sua simples representação. Porque o contorno da sombra é ainda mais fantasmático, fugitivo, ainda mais ausente. (…) Enquanto um contorno é qualquer coisa que foi feita com a presença da sombra, mas que dela se liberta. O contorno sugere ausência, verdadeira e absolutamente. E, para mim, é ir ainda mais longe. O contorno é o Menos que posso ter de alguma coisa, de alguém, conservando as suas características.” (p. 41)

A ênfase posta no contorno mostra um importante tópico de problematização. Desde logo, o contorno não se confunde com a sombra, mas também não se revela como intenção que postule alienação ou transcendência; não sendo também marca de qualquer polarização, o contorno será o entre a total dependência que elide a diferença e a ingénua tentativa de rompimento com o referencial.

Ora, a presença do contorno faz sentir-se aqui em primeira instância no e com a visão – o tal “novo olhar sobre o que me rodeia”. Permanência no mundo, o contorno não equivalerá à circunferência, ou seja, ao limite que elide a aproximação, mas sim ao acentuar das possibilidades de (re)conhecimento. 

Porém, seria talvez precipitado encarar a visão como sentido único, ou sequer privilegiado, no que tange a prossecução do entendimento – além de que “olhar” e “ver” não se anulam. Do que se trata é da articulação de um caminho, a saber, a visão que se relaciona com “o que me rodeia”, com a “ausência” e com “o Menos”; e nenhum destes movimentos se sobrepõe aos demais. O contorno acrescenta: “é ainda mais” e “ é ir ainda mais longe”; ou talvez possamos dizer que nesta obra, o contorno é a instância que, longe de um poder judicativo, instaura o aproximar-distanciar.

Com efeito, o que “rodeia” poder-se-á materializar no tipo de espacialização que (se) disponibiliza; a “ausência” não redundará na incomunicabilidade, antes consistindo na abordagem que des-constrói o sujeito; finalmente, “o Menos” inaugura e abre. Heidegger, nomeadamente no ensaio A Origem da Obra de Arte, apresenta algumas conexões originais que se prestam a interessantes pontos de contacto com o que vamos dizendo.

Partindo da agressão (racional) relativamente à “Stimmung”, que no ensaio surge traduzida por “impressão ou disposição afectiva” (p. 18) - e note-se porventura o eco kantiano da “algemeine stimme” contida na Crítica da Faculdade do Juízo -, Heidegger diz-nos que o “aparecer das coisas” (p. 19), i.e., a sua “consistência”, deve muito à forma “como contorno” que é a tradução da “especificação” e do “entrelaçamento de forma e matéria” (p.  21). Aí, “contorno” ancora-se em larga medida no caminho que o filósofo trilha, o qual se insere na “coisidade da coisa”: a ideia de “contorno”, juntamente com a de “utensílio” ou “produto”, pretendem desvelar, em primeira linha, o teor misto da obra-de-arte como “espontaneidade” e “fabrico”. Daí decorre que o contorno em Lourdes Castro se associe mais intimamente com um outro conceito heideggeriano: “Esta fenda abarca e mantém em conjunto na sua separação (…) o traço-fenda é o conjunto unificante de sulcos do esboço e do traçado fundamental, do rasgão e do contorno” (p. 66). O traçar-fenda, o “traço-fenda”, consubstancializa, assim, um modo possível de inscrição que foge ao lugar-comum e ao “habitual”: é a “clareia” e o “encobrimento” que a obra-de-arte projecta, é um co-povoar. 

O contorno em Lourdes Castro e o traço-fenda em Heidegger não sequestram, antes convidam a instaurar, precisamente porque contrariam a dominação da resposta que se pretende definitiva. O que Heidegger veio a cunhar de “habitar poético”, e de arte como “ditado poético”, serão abordagens à finitude do homem, ao “ser-para-a-morte” que salvaguarda o “mistério” e que, por isso, não poderá cessar de questionar o como do aí-ser de e em cada um de nós. “Ver o enigma” (p. 85) é a resposta que o filósofo dá à pergunta “Em que medida arte” (p. 58): haverá arte se e quando o ser rejeitar a elipse para a qual a excessiva subjectividade pode resvalar, optando – ou tomando para si – o “círculo” que, para Heidegger, abre o indivíduo ao estar-no-mundo poiético. 

Também Lourdes Castro vê o enigma e toma para si o confronto com as forças de dissipação inerentes à vida; ser capaz de atingir a “ausência” é o “Menos”, a saber, o vestígio, e não o esquecimento. É que o contorno “conserva”, ou seja, vivifica, e o retratar feito pela artista não copia, antes celebra a identidade. Essa espécie de concentração, leia-se, o esforço de procura do húmus que desencadeia e apreende, joga concretamente com o visível, ou melhor, com o habitualmente visível – o retrato. 

Todavia, Lourdes Castro controverte o jogo: deseja o in-habitualmente visível, graças à sombra e especialmente ao contorno; atribui consistência, ou seja, dá a ver. O “entre” será o que Heidegger designa de “clarear e pôr-a-coberto” (p. 39), que na artista passa pelo clarear para pôr-a-coberto. O contorno participa no assinalar daquela relação entre os entes quese caracteriza pela comunhão atenta e que desapossa, porque como diz Lourdes Castro: “Alguns têm a mesma idade, mas nenhum tem o mesmo coração” (p. 47).

A presença em si de Johannes

O diálogo demasiadas vezes forçado entre a Literatura e o cinema consegue ser interrompido por excepções relevantes. A Palavra, livro a partir do filme homónimo de Carl T. Dreyer, é um desses casos.

Datando de 2007, A Palavra reúne um texto introdutório de João Bénard da Costa, fotografias de Rita Azevedo Gomes, desenhos de José Loureiro e poemas e testemunhos de João Miguel Fernandes Jorge. E é a presença aí do poeta João Miguel Fernandes Jorge que queremos destacar. Chamamos-lhes “testemunhos”, na medida em que serão apontamentos, re-leituras do filme: o poeta parte dessa obra de Dreyer, mas não lhe cingindo já que se acrescenta intimamente. É em especial em torno de Johannes, protagonista do filme, que JMFJ forja o testemunho aporético da sua própria leitura.

O poema Duas Rosas começa com os seguintes versos: “No caminho para deus viu-se obrigado/a parar várias vezes./Vinha do tempo das quimeras./Partia, a passos rápidos, sem direcção/definida”. Assim, o poema não narra – não tem um começo definidor -, antes surge num interstício, a saber, a revelação desde logo do objectivo de Johannes: a procura do encontro com o transcendente; para mais, essa “procura” alude à persistência – caminho não linearmente progressivo. 

Porque “Levava dentro de si a cumplicidade de um/relâmpago, trazia recados de si mesmo/para mais dentro de si próprio./ todas as suas forças ficaram isoladas/e o tempo tinha o valor físico de um deserto.”, a dialéctica interior-exterior mostra-se com especial vigor, uma vez que o “para mais dentro de si próprio” se relaciona (motivo?) com o isolamento das forças e com o tempo, aqui veemente e indómito - “valor físico de um deserto”.

Os últimos versos não finalizam, antes reforçam o carácter des-regulado do objectivo de Johannes: “Vivia sob lentidão extrema,/ não muito longe do que jamais acontecera./ Regressou ao inanimado do seu corpo, aos objectos do próprio quarto.”

Regresso que não fecha ou baliza, antes amplia e interrompe, o poema de JMFJ, na sua linguagem específica – rente, pouco ou mesmo nada metafórica e cujo teor performativo é discreto se bem que impressivo -, postula a discordância com um tempo saturado e impossibilitador da escolha por um caminho singular. Por isso, Johannes serve de arquétipo ao consentimento relativamente a um Logos não necessariamente revelado, como o é, nomeadamente, para o cristianismo.

Com efeito, o poema referido é complementado pelo texto O Lustre, sendo ambos, porém, autónomos. Aí, JMFJ considera A Palavra “o melhor exercício que conheço de deus; sobre a suspensão do tempo”, acrescentando depois que “Johannes pertence a esse meu corpo de intenções de escrita.” (p. 21). Esta última expressão - “corpo de intenções de escrita” - mostra-se sintomática da ressonância que a linguagem poética tem. Desejo que pode nem se concretizar (intenção), a escrita de JMFJ salienta o comprometimento, tal como Johannes para quem o tempo é indissociável do gesto de Deus (aí-ser que não significa de modo nenhum alheamento). Tratar-se-á, assim, da certeza absoluta de quem acredita.

Ao propor formas que permitam pôr-em-causa a finitude, JMFJ coloca a personagem de Dreyer em Madrid; “Mãos de condutor de sonhos, mais do que de almas” (p. 23), Johannes cria o que é da ordem do difusor, ou seja, passagem e passagens que re-fazem o curso da vida: “É verdade que há um futuro, mas o tempo em que um rosto vive não é um tempo absoluto. Não vai além de um momento: o da passagem da transparência da mão à circunstância quietante do lustre” (p. 23). A irredutibilidade do diferenciado faz-se como Johannes pelo tal caminho instável mas múltiplo, pela busca do presente em si, i.e., repetindo.

Em Kierkegaard – presença no livro e no filme – a repetição marca o salto ético precisamente através de um comprometimento, ou seja, a possibilidade estética materializa-se eticamente. Ao contrário da anamnese que é em grande medida um dado, a repetição pressupõe a (re)confirmação não-sistemática; será excepcional e em constante relação com a memória (passado vertido no presente): “porque a excepção não justificada reconhece-se precisamente pelo facto de querer contornar o universal. Este combate é extremamente dialéctico e infinitamente matizado” (A Repetição, p. 137). Não obedecendo a um programa, o salto ético repetido efectiva-se, como salienta José Miranda Justo, no kayros (momento oportuno) que, como bem se entende, afigura-se aqui complexo por definição. Será, cremos, muito através da presença em si que a singularidade da repetição acontece. Para Kierkegaard, “O infeliz está sempre ausente de si mesmo” porquanto “está num tempo passado ou num tempo futuro” (Ou-Ou I, p. 258). O indivíduo, contaminado pela memória e pela expectativa, não consegue des-unificar o tempo e, por isso, mergulha na infelicidade ou angústia.

“Falta-me sempre tempo para perseguir até final uma imagem, um sentido, uma cor” (p. 21); este lamento de JMFJ encontra saída, ou espaço de sucessão, na figura de Johannes e na sua repetição até Deus. Investigação aproximativa, a linguagem póetica dos testemunhos de JMFJ exercita(-se) na revelação por si que o poema inventa. Não se trata de copiar a personagem do filme, mas sim da comutação com o indivíduo que os espaços de reflexão abertos pela poesia consentem. É que a linguagem não tem de ser uma amarra ou um mal necessário para o poeta; a doxa do Logos assimilado a um princípio fundador – o Verbo – não impossibilita que a presença em si do autor jogue com o determinismo. No fundo, o que JMFJ nos diz é que a poesia se coloca de modo original em relação com a referida falta de tempo, ou seja, com a perda.

Notas do meu notebook

O EXCESSO MAIS PERFEITO

Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.

Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.

Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.

Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.

Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.

Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada —

AMARAL, Ana Luísa. As vezes o paraíso (1998), Inversos poesia 1990-2010, Lisboa, Dom Quixote, 2010. pp. 295-296.

Artemisia Gentileschi. Susanna and the Elders, 1610. The Metropolitan Museum of Art, Collection Graf von Schönborn, Pommersfelden, New York

Artemisia Gentileschi. Susanna and the Elders, 1610. The Metropolitan Museum of Art, Collection Graf von Schönborn, Pommersfelden, New York


Notas do meu notebook: “O excesso mais perfeito”

 

 

What happens between us
has happened for centuries
we know it from literature

still it happens

 

“The burn of paper instead of children”

Adrienne Rich

 

1.                     Tese: exceder. Sair para fora? Excedere, ex/cedere. O excesso. Tudo aquilo que sai para fora? E, no entanto, o mais perfeito: “um poema de respiração tensa/ e sem pudor”.

2.                     O corpo da tese: “a elegância redonda das mulheres barrocas/ e o avesso todo do arbusto esguio”. Paragem. Perguntas: quantos significados poderá ter “o avesso todo do arbusto esguio”? Respondes: uma imagem impossível dentro de um poema impossível.

Perguntas ainda: e a elegância dos homens barrocos?

O poema não responde.

3.                     O poema invejado por Rubens é, por enquanto, imagem: “corpo magnífico deitado sobre um divã,/ e reclinados os braços nus,/ só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,/ e um anjinho de cima,/ no seu pequeno nicho feito de nuvem,/ a resguardá-lo, doce”. Tem duas dimensões visuais: Horácio (ut pictura poesis[1]) ou, talvez, Simónides (pictura locguens, pictura poema silens[2])?

O poema não responde.

4.                     As cores do poema antecipam um corpus passível de ser tocado: “Um poema feito de excessos e dourados”; “ah, como eu queria um poema diferente/ da pureza do granito”. O mesmo corpus cresce à medida do poema: “um largo rododendro cor de sangue./ Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,/ ao passar, parasse deslumbrado”. O poema repete-se: “nu, de redondas formas, um tal poema queria”. É um poema que pede outro poema. Um poema-pedido. Uma reza (“My passion comes from the heavens, not from earthly musings”[3])?

5.                     “Contra-reforma do silêncio”. Voltas atrás. Paras, por momentos, na palavra barroco. Pensas: o excesso não é silencioso. O verso seguinte vem confirmar-to: “Música, música, música a preencher-lhe o corpo”. E o ritmo acelerado dos versos que se seguem também. Deves lê-los rápido até à “explosão da cor”.

6.                     Rubens, agora Murillo. Gôngora, logo depois. Todos empalidecem diante do poema que não existe. Rubens, Murillo e Gôngora são homens. Rubens, Murillo e Gôngora pertencem ao cânone. São os pais do excesso. De que forma podes, então, pertencer ao cânone? Queres dizer: podes pertencer-lhe sem passar pelo reaproveitamento ou pela superação dos seus pontos excessivos?

                        Mais: como negar este cânone? Superá-lo é negá-lo. E o poema que não existe nega Rubens, Murillo ou Gôngora.

7.                     As mulheres retratadas por Rubens, Murillo ou Gôngora são o objeto estético da estética barroca. Sublinhas a palavra: objeto. Pensas: os poemas que falam sobre poemas que não existem são sempre enormes exercícios de ironia. Discordas veemente quando, num artigo, lês:

A influência e o reaproveitamento de modelos como desses artistas espanhóis na poesia de Ana Luísa Amaral é um recurso do qual a poeta se vale para dialogar com o cânone poético[4].

Existe, de facto, o reaproveitamento de certos modelos barrocos, mas o propósito desse reaproveitamento não é o diálogo entre Ana Luísa Amaral e o cânone que, efetivamente, a excluiu ou a secundarizou. O poema vai além disso: não há que integrar ou dialogar com o cânone. Importa questioná-lo — Quandoque bonus dormitat Homerus! —, criar outro. E a paródia do cânone masculino é o primeiro passo para a criação de uma nova linguagem: “A sua mão erguida rumo ao céu, carregada/ de nada —“.

8.                      O excesso é feminino. Corriges-te: o excesso sentimental é feminino. Corriges-te de novo: o que significa “feminino”?
              Se feminino significa objeto, eis o raciocínio: ao reaproveitar as formas de uma arte excessiva, serás (ainda) mais excessiva — porque és mulher. Este porque és mulher envolve as duas faces da mesma moeda. Há uma voz que te diz: — o cânone secundarizou-te ou excluiu-te porque és mulher. E a mesma voz, ainda: ­— Satirizas, destróis o cânone, porque és mulher.


[1] Ars Poetica, 361-5.

[2] The Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. ed. Alex Preminger, Princeton, Princeton University Press, 1974, 881-2.

[3] Vide Samuel Levy Bensusan, Rubens: Masterpieces in color, IV, 2014, p. 4.

[4] Vide Márcia M. Araújo, “A nova poesia de Ana Luísa Amaral e Paulo Henriques Britto”, Letrônica, Porto Alegre, v. 4, n. 2, nov./2011, p. 169. 

O modo de dizer o tempo

                                                                                                                        

                                                                                                À Capitolina, também pelo livro

 

 

A poesia inscreve(-se) e afirma(-se); é a demarcação cuja capacidade de desdobramento rejeita lógicas de identificação e, por isso, persiste nos intervalos que encerram em si margens de indeterminabilidade. É o “rapto” de que fala Herberto Helder, ou seja, o exercício resistente de captura de intensidades que descodificam: o interrogativo que segrega o que se presume, ou seja, a poesia terá de ser experimentação.

No poema Introdução ao Tempo, de Luiza Neto Jorge, também esse poder evocativo nos aparece com especial incandescência logo no primeiro verso: “Façamos greve de tempo”. Da ordem do apelo/manifesto, e não do ideológico que se confinará, mais cedo ou mais tarde, ao programado, a relação com o temporalizado, neste caso, não se faz necessariamente através da imobilização. E também não se enceta com a representatividade que imita, na medida em que neste poema o tempo nunca se dá a ver enquanto significado.

Através de instâncias concretas – e não lineares – como sejam “pulmões”, “olhos”, “mar”, “papoilas”, entre outras, o poema de Luiza Neto Jorge dissemina esses mesmos elementos em cruzamentos de modo a poderem encontrar-se; contudo, esse encontro evidencia incontáveis tons. Quando lemos “Porque ficou oceânico/ o escasso momento de nós?”, a composição faz-se por antinomia e não tanto graças a qualquer disjunção: ao tentar medir-se o incomensurável, o tempo torna-se compacto e por isso infecundo, daí o empenho em primeira linha no esforço de suspensão através da tal greve de tempo. “Fechemos os olhos dentro”, i.e., não que nos tornemos cegos mas que se estabeleçam condições para a inflexão, para a conexão entre múltiplos modos de existência temporal no mundo. É que não parece tratar-se de um vamos parar o tempo (negação ingénua do mesmo), mas antes daquela abertura iniciada e susceptível de admitir o acentuar do acontecimento: “Quando as papoilas tiverem searas (…) Quando nós formos outrora”. Passado-presente-futuro, não diluídos no unívoco, mas prolongados singularmente na desestabilização de uma relação com a vida, se feita através da estruturação.

Ao tratar-se de uma “Introdução”, cremos que constituiria uma leitura superficial e enganadora encarar este poema enquanto regulamentação de um estar no mundo, consequentemente, calculado. Pelo contrário, o poema circula des-apropriando: “no ar um tempo frustre/a sequência dos sons/perdidos nos degraus”. O inesgotável da escrita da poesia apresenta-se a-sistemático, já  que aí a linguagem desagrega o ruído, precipita a retoma e promove o novo: a linguagem (poética) cria porque se põe em frente à realidade, faz parte integrante dela. Nos últimos versos deparamo-nos com a inconclusividade da poesia, que nem à metáfora pode estar agrilhoada: “Simples é a dor/e nós, nascidos”.

 Corpo sem organismo, este Introdução ao Tempo acrescenta a sensação que propaga e, por isso, contesta o positivismo da significação, sem, todavia, cair na ignorância (ausência de relação) com o que de mais repetidamente interage com o humano, a saber, a experiência e o conhecimento temporais e, em certa medida, temporalizados. É por isso que o poema de Luiza Neto Jorge diz o tempo com a precisão do devir: “quando o sonho for granito.”

 


Introdução ao Tempo

I

Façamos greve de tempo

De pulmões castos não respiremos
As folhas trágicas veias
podem cair
Fechemos os olhos dentro

II

quando o sonho for granito
quando o mar em cinza desvendar
as plumas inúteis das gaivotas
quando a espuma depuser velas
longínquas sobre a areia
e das pontes cair o derradeiro homem

quando as papoilas tiverem searas
as janelas absortas mortalhas de luz
quando nós formos outrora
quando o luto marcar as ancas verdadeiras

III

Porque ficou oceânico
o escasso momento de nós?

Escorríamos pelas mãos
insatisfeitas e límpidas
nascentes
no ar um tempo frustre
a sequência dos sons
perdidos nos degraus

Simples é a dor
e nós, nascidos

Pequenas coisas mais literais: A tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Romance, épica, arte poética, bildungsroman, biografia ficcional, não sabemos quanto de autobiografia, um longo ensaio sobre uma cidade, ou um longo ensaio sobre infância, adolescência, idade adulta, velhice, uma épica no feminino, uma meditação sobre Itália contemporânea, sobre maternidade ou sobre as implicações de nascer mulher no séc. XX numa sociedade ocidental, ou um longo romance sobre a vida de uma comunidade à margem de uma sociedade, todos estes ângulos vão desaparecendo e ressurgindo à medida que avançamos pelos quatro volumes da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante.

É tentador para um classicista querer ler na crónica da amizade entre Lena e Lila o eco da amizade mítica de Aquiles e Pátroclo, esse lugar atravessado pelos tambores da guerra a partir de onde a história da literatura ocidental começou a desenrolar-se. Qualquer coisa neste livro sem dúvida joga com o paradigma de lendárias amizades literárias no masculino. A comparação com Homero não é irresponsável, sobretudo se quisermos acreditar no hype (tanto comercial quanto crítico) que acompanhou a recepção da obra de Ferrante, e porque, como com Homero, há ao mesmo tempo qualquer coisa de profundamente convencional acerca da Tetralogia, isto é, dependente das expectativas que nos são inspiradas por convenções supostas por géneros literários, e partindo dessas expectativas, à medida que atravessamos as linhas temáticas que separam os primeiros dois romances dos dois últimos (ou seja, quando passamos da crónica da juventude para a idade adulta), estas são estilhaçadas uma a uma (talvez por isso a maior parte dos leitores prefira os primeiros dois romances), o que em parte explica o lado profundamente inovador da Tetralogia. A escrita de Ferrante tem sido apelidada de radical. Talvez o que este rótulo descreva seja o estilo de crónica precisa e, para usar outro termo gasto à falta de melhor, visceral dos romances, que não deixa nada intacto. Ou talvez pudéssemos aqui citar a escritora polaca Olga Tokarczuk, que nos faz pensar no método criativo de Ferrante:

Anyone who has ever tried to write a novel knows what an arduous task it is, undoubtedly one of the worst ways of occupying oneself. You have to remain within yourself all the time, in solitary confinement. It’s a controlled psychosis, an obsessive paranoia manacled to work, completely lacking in the feather pens and bustles and Venetian masks we would ordinarily associate with it, clothed instead in a butcher’s apron and rubber boots, eviscerating knife in hand.[1]

Mas podemos começar por pequenas coisas mais literais. Se estes romances são tão populares, o que é a sua popularidade nos diz sobre nós próprios, crescente exército global de leitores insones, que se perguntam entre si és Lena ou Lila, Nino ou Enzo? Chavões críticos que sem dúvida podem ser aplicados à Tetralogia Napolitana: uma das obras mais interessantes e controversas do nosso tempo. Os quatro romances foram agora publicados em Portugal na sua totalidade pela mão da sempre atenta Relógio d’Água. Talvez porque seja a Relógio d’Água uma das editoras em Portugal que tomou para si a missão de saciar as insaciáveis elites cultivadas da pátria, pequeno pormenor que infelizmente escapa ao olho de falcão de António Guerreiro nesta crónica[2] (para quem publicam editoras como a Relógio d’Água se não para essa sedenta elite de miríades, segundo AG tão extensa quanto insaciável, mas que em outras crónicas suas tende a ser apresentada como insuficiente), a editora optou por não publicar os livros com as mesmas capas kitsch com que foram publicados no original e no mundo anglo-saxónico. Com esta opção algo se perde. De alguma forma, a totalidade da obra de Ferrante pode ser lida como uma paródia negra daquele tipo de narrativas que habitam a escala entre o conto de fadas e My Fair Lady e que foram, ao longo de gerações, como a precisão impiedosa das reguadas dos professores fascistas deste planeta, reforçando estereótipos de género. Mas talvez porque a elite nacional se “dá ao respeito” (expressão que alude talvez a uma certa falta de imaginação e sentido de humor), pelo menos no que a capas se refere, belas fotografias a preto e branco animam a edição nacional da Tetralogia Napolitana.

As capas originais são de alguma forma a marca indelével do primeiro jogo da autora com as nossas expectativas. Nas palavras de Antonella Di Marzio são também outra coisa: “Whenever I see those tacky covers I can immediately identify the world that has been at the origin of the novels. It can't be denied, and such an operation is denying this authenticity. As if it weren't possible that such a world has generated literature and that we need some tweaking to make it acceptable, appealing.” É verdade, a primeira coisa que os romances de Elena Ferrante nos dizem sobre nós enquanto seus leitores é que temos um interesse em narrativas sobre injustiça social, tanto quanto sobre sonhos, criatividade, inteligências míticas como as de demiurgos, ao género de Sócrates (o outro, não esse). Que gostamos de ler romances que dramatizam a psicologia da amizade, do amor, da violência, do sexo. 

A Tetralogia existe no centro de um cânone e o seu trabalho é provocá-lo, arrastá-lo para outros caminhos, actualizá-lo. Mutatis mutandis, com Homero, Elena Ferrante partilha uma ideia de literatura enquanto empresa anónima, enquanto herdeira de uma inteligência colectiva: [t]here is no work of literature that is not the fruit of tradition, of many skills, of a sort of collective intelligence. We wrongfully diminish this collective intelligence when we insist on there being a single protagonist behind every work of art.[3]

Mais vale perguntar: como é que estas personagens passam tão rapidamente a fazer parte da nossa vida? Porque nos interessam tanto? Se há um elo com a tradição, como podem personagens anteriores, narrativas anteriores, acrescentar algo à nossa experiência de ler a Tetralogia? Todos os livros que lemos anteriormente viajam connosco até ao livro seguinte (é também por isso que devemos a nós próprios imaginarmo-nos como poema contínuo). E os livros mantêm os seus diálogos com a tradição em que são gerados. Como Aquiles na Ilíada em relação a Pátroclo, Lena tenta articular o enredo da sua própria vida a partir da sua relação com Lila. O mesmo sucede com as nossas vidas, esse é grande parte do apelo dos romances. O enredo da vida de Lena está costurado com o de Lila, a amiga genial da infância, e a vontade de Lila é de alguma forma a força autoral da vida de Lena (de vez em quando a ordem inverte-se). Um dos aspectos mais importantes acerca deste conjunto de livros é recordar-nos que o amor não é linear, pacífico, agradável. É um desafio constante, cheio de uma ambivalência que requer de nós uma certa cegueira (uma habilidade para perdoar e seguir em frente) para se manter vivo.

Em aparência sempre um passo à frente, Lila vai tentando moldar o curso da vida de Lena, como uma espécie de narrador obscuro, relegado para segundo plano. Na sua totalidade, o apelo destes romances talvez assente nisto: a opção por uma forma biográfica, cronologicamente organizada da infância à velhice, expõe afinal a operação de ambivalência por que certos objectos de arte se intrometem nas nossas vidas e se tornam parte da nossa história: eles são ao mesmo tempo perfeitamente particulares (referem-se a momentos muito específicos das vidas de outros) e universais (os outros afinal são como nós). Ao falar dos privilégios de ser um leitor, o compatriota de Elena Ferrante, Umberto Eco, disse:

An illiterate person who dies, let us say at my age, has lived one life, whereas I have lived the lives of Napoleon, Caesar, d’Artagnan. So I always encourage young people to read books, because it’s an ideal way to develop a great memory and a ravenous multiple personality. And then at the end of your life you have lived countless lives, which is a fabulous privilege.[4]

Os romances napolitanos são a história de uma amizade ao mesmo tempo solar e opressiva entre duas mulheres. Para voltar à minha analogia inicial, como Aquiles, Lila não existe exactamente numa escala humana, e ambos partilham uma clareza de visão que não lhes permite deixar de distinguir em quem os rodeia a mediocridade e a falta de coragem sobretudo daqueles que têm pretensões a ter sobre eles poder. O poder do dinheiro, da autoridade, da corrupção, do sexo – aspectos obcessivamente examinados nos romances. Este exame propõe-nos a seguinte realidade: que crescemos com certos papéis, supostos por outros mesmo antes de podermos escolher que tipo de história será a das nossas vidas, a bagagem que carregamos connosco desde a infância e que se apropria de nós mesmo antes de entendermos quem somos, quem são os outros, elementos que servem para reforçar convenções sociais, como o sexo com que nascemos, o bairro em que crescemos, quem são os nossos pais, os nossos amigos de infância. Ao imaginar Lila, Ferrante tem de se ter perguntado o que aconteceria se alguém escrevesse um romance que tivesse no centro uma personagem que estivesse disposta a ser imune a todas essas convenções? Como é que ela seria? Como seria a sua vida? E quem poderia narrar a sua história? E, pode-se perguntar, podemos ler o final do romance como um comentário acerca desta ideia? Poderá a autora ter hesitado e o final pode ser interpretado como a aplicação de uma moral punitiva sobre uma das personagens no centro da acção? Ler é um acto ético, político, e enquanto leitores devemos a nós próprios este tipo de perguntas. São estas perguntas que permitem que os romances se tornem explorações da nossa personalidade, dos limites do nosso universo moral, mas, mais do que isso, da nossa empatia. E para que serve a nossa empatia de leitores? Como Nicholas Dames nota num ensaio recentemente publicado na The Atlantic:

...a deficit in empathy imperils a democratic culture, and that novels keep us entwined and engaged when we might otherwise drift apart in shrill and narcissistic self-certainty...[5]

Os primeiros dois volumes da Tetralogia são particularmente eficazes a explorar a ausência da possibilidade de uma origem em branco para a história das nossas vidas (nenhum homem, ou mulher, nasce, afinal, livre e igual aos outros), eles surgem carregados ao mesmo tempo do encanto e do terror da infância, e acidentalmente expõem a hipocrisia de algumas narrativas que nos são conferidas nessa idade e que acidentalmente servem para graduar a nossa posição numa certa escala política e social (o inverosímil super-intelecto de Lila, excluída da escola mesmo antes de entrar no liceu, é também uma provocação neste sentido). Narrativas essas que, deu-se o caso, em Itália em meados do século passado foram exacerbadas e postas em causa por uma série de eventos políticos e culturais que formam o contexto histórico do romance (o fascismo, os movimentos políticos e culturais que floresceram a partir da década de 60, as Brigadas Vermelhas), e que reforçam a pertinência das personagens de Ferrante hoje: como nós, gente para um tempo instável.

Num conjunto de romances que avança por sucessivas intermitências de esperança e crise, o ponto de tensão inicial ocorre entre a imaginação de Elena e Lila e a realidade que lhes é imposta, à qual é suposto ambas submeterem-se. Se os romances se leem como a história da formação de um escritor, então eles surgem da consciência de um real em falência constante, cuja vantagem é este traduzir-se no adquirir de uma lenta capacidade de estranhar coisas aparentemente banais, como o processo de degradação sofrido pelos corpos das mulheres do bairro, a percepção de que elas se parecem com os homens com quem se casaram, ou a violência de que os rapazes constantemente se socorrem para se afirmarem sob pena de serem vistos como fracos. Num dos capítulos de A Amiga Genial, as amigas discutem Dido e Eneias, e mais tarde, um ensaio de Lena sobre Vergílio adapta uma observação de Lila que Lena involutariamente associa à decadência bairro, que onde não há amor não só a vida das pessoas é estéril mas também a das cidades. É difícil imaginar um comentário político e social mais pertinente para os dias de hoje.

Como é que o amor se transforma em poder?, é uma pergunta colocada por Anne Carson num dos mais belos livros de poemas alguma vez publicados sobre um divórcio, The Beauty of the Husband, mas talvez os romances de Ferrante arrastem esta pergunta para o nível seguinte, como é que o amor sobrevive ao poder?   

Lila intui a beleza das coisas sem poder deixar de se diluir nelas. Na amizade, como em tudo o resto, para Lila não existem meias medidas. Os episódios de sinestesia de que ela sofre talvez sejam sobretudo uma expressão desta ideia. O percurso de Lena, moderada e agradável em quase tudo, ainda que na maior parte do tempo apenas em aparência, paradoxalmente, herda alguma coisa desta ética. Num diálogo com Pietro, ele diz-lhe que ela é meio feminista, meio comunista, meio estudante de Foucault, apenas com ele meias medidas nunca foram usadas. O grande desafio destes romances tem a ver com o modo como cada leitor se relaciona com o percurso emocional destas personagens. O grande desafio do percurso emocional de Lila e Lena é manterem o controlo sobre esse percurso. Talvez a ideia de que nos compete recusar meias medidas no amor, na amizade, nas nossas diversas trocas com outros, na nossa arte (o que quer que ela seja, pode ser escrever ou informática), possa ser entendido como o grande contexto ético da obra, e nesse sentido, a popularidade destes romances assenta num desafio a que as personagens estão constantemente expostas. Entender o que lhes acontece e porquê importa-nos e é-nos útil: este é também o nosso desafio todos os dias.

As alusões ao mundo antigo abundam. Algumas estão listadas na recensão de Aaron Bady para o LitHub[6]: Lena chama-se Elena Greco, licencia-se em clássicas depois de vencer uma bolsa para estudar na Normale de Pisa, que é o que lhe permite abandonar o bairro em Nápoles, escreve uma tese sobre Vergílio, a um dado momento casa-se com um classicista. Um dos diálogos mais importantes para a caracterização de Lena e Lila é a tal conversa sobre Dido e Eneias, há qualquer coisa neste diálogo que é reminiscente do diálogo entre Míchkin e Rogójin nas páginas iniciais de O Idiota, é um daqueles casos em que duas personagens não podem evitar expor-se mutuamente e isto de alguma forma prepara o palco para o que vai suceder em seguida. E, de alguma forma, com as personagens de Dostoievsky as personagens de Ferrante têm em comum uma certa noção de um peso metafísico que precede as suas acções, que as marca de longe para o que vai acontecer em seguida, as suas acções tornam-se uma parte decisiva da sua caracterização. Talvez poucas criações depois de Dostoievsky sejam tão Dostoievskianas como Lila. E ao mesmo tempo há em Lila e Lena qualquer coisa de profundamente reminiscente das mulheres que habitam os dramas de Eurípides. Pensamos em figuras como Medeia, Hécuba, Fedra, que percorrem a linha divisória entre a civilidade e a loucura, entre as convenções morais das sociedades em que habitam e a total falta de escolha que expõe a falência (e muitas vezes a perversidade) dessas convenções e que acaba por forçá-las à vingança. Nas suas peças sobre mulheres é como se Eurípides se perguntasse, as nossas sociedades foram pensadas para proteger um certo número de privilégios, o que acontece àqueles que se tornam vítimas desses privilégios? Não só quando Elena Ferrante fala do seu interesse em narrar a diferença do seu sexo, mas mais do que isso num certo pendor neo-realista dos romances (o bairro, o poder dos camorristas, a ascensão social de Lena, etc.), pode a autora ter tido esta mesma pergunta em mente?

Lila pertence àquele grupo de personagens literária que nunca projectam uma imagem definitiva de si próprias, a sua existência é da ordem da interrogação, não da resposta, as suas acções não correspondem tanto a factos como a actos demiúrgicos. A sua personalidade é capturada na descrição de Lena sempre no meio do drama, no momento em que se manifesta, Lila nunca se explica a si própria, e tudo o resto é o resultado da especulação de Lena. Juntas, Lena e Lila, como Pátroclo e Aquiles, são duas versões do mesmo tipo de inteligência humana e são tão inextricáveis que, inevitavelmente, em alguns momentos, desconfiamos que estamos perante duas versões da mesma personagem.

E se aquilo que na nossa inteligência é produto de uma inteligência colectiva não deve ser diminuído em favor do enaltecimento de um protagonismo excessivo, se o que nos ajuda a tornarmo-nos no que vamos sendo depende de uma exposição e de uma atenção constantes às ideias, interesses, paixões e histórias de outros, então a Tetralogia Napolitana, a história da formação de uma escritora (e neste aspecto os dois primeiros volumes habitam o mesmo espectro do nosso imaginário ocupado pela Autobiografia de Thomas Bernhard), o conjunto da obra de alguma forma desloca e expande o conceito de autor. Ligadas desde a infância, Lila parece em certos momentos ser a autora de Lena, a inventora do seu percurso, tal como de tantos outros objectos mais ou menos mirabolantes que lhe permitem assegurar alguma prosperidade, objectos nunca menos do que miticamente emocionais. E porque as mesmas versões da inteligência humana se reinventam com o progredir das tradições a que pertencem, neste aspecto, o herói de Homero com que Lila se parece é Ulisses, que na Odisseia a espaços deixa para trás um número de objectos construídos pelas suas próprias mãos que de alguma forma permitem a sobrevivência e, em alguns momentos, a opulência. Se Lila é ambivalente pela rejeição de uma ideia fixa de si própria, isto é de alguma forma um desafio à ideia de uma personalidade que encontra a sua melhor expressão na possibilidade de um destino narrativo linear, isto é, num destino que seja consequência dessa personalidade. Este é um dos aspectos mais fantásticos da Tetralogia. Lila, como Aquiles, é esta força cega no centro do romance, mas esta força falha em manter o controlo dos acontecimentos, falha em manter a ordem embora pareça ter o poder para a manter, convida o caos, no fim falha em controlar-se a si própria. De vez em quando cruzamo-nos com estas personagens, chamamos-lhes Aquiles ou Clitemnestra ou Mefistófeles, e é com um certo desconforto que depois voltamos à nossa rotina diária, mas somos um pouco menos banais depois desses encontros. A possibilidade de uma relação de causa e efeito entre personalidade e acção explica porque é que os romances são uma longa paródia das narrativas que habitam a nossa ideia do que são contos de fadas e a sua função na nossa cultura. Explicam também o apelo de Lila, uma heroína em falência constante, cujo último acto, o gesto que abre o romance, o seu desaparecimento, consiste talvez numa última tentativa de preservar a sua própria inteligência. E, no entanto, tanto o desaparecimento como as invenções de Lila têm qualquer coisa de dionisíaco, partilham da mesma natureza que uma ideia do cavalo de Tróia enquanto triunfo da inteligência: carregam ao mesmo tempo a potencialidade da vitória, do fim das tribulações, e da aniquilação total. O romance não nos deixa entender se este lado perverso da inteligência de Lila é intencional, e eis outro elo com Ulisses.

Neste aspecto, o fio da tradição que a Tetralogia alonga é o da nossa atracção por formas de inteligência herméticas, que de alguma forma são animadas de um potencial inesgotável que rapidamente se pode tornar numa força para a destruição. Entendido enquanto romance feminista, um rótulo de resto nem confirmado nem rejeitado por Ferrante, talvez seja este o contributo do romance nesse aspecto: duas mulheres que crescem num bairro pobre, dominado pela corrupção e pela violência da Camorra, e que entendem cedo, e em certo sentido quase inconscientemente, que a única solução é inventarem-se a si próprias apesar das restrições que lhes são impostas. A Tetralogia de certo modo diz-nos, nada é tão belo como a força gasta em construir as nossas histórias.

Uma última nota. O que tem sido apelidado da extrema violência dos romances, de resto, a meu ver, mal lida por críticos de outro modo competentes[7] porque confundida com uma estratégia fácil para agradar ao leitor, um rótulo descartado por Ferrante (“Literature that indulges the tastes of the reader is a degraded literature. My goal is to disappoint the usual expectations and inspire new ones.”[8]), cuja função é traduzir a violência constante deste mundo, é um sintoma de porque é que estes romances de alguma forma são objectos tão pouco convencionais. Como notou Megan O’Rourke:

Ferrante’s project is bold: her books chronicle the inner conflicts of intelligent women (professors, novelists) who, having made their way to Florence or Rome and to good jobs, find themselves confronting memories of the crude violence and misogyny of their youth. Shaken by a surprising event, they lose their grip on reality, lapse into a Neapolitan dialect full of obscenities, and are drawn into hallucinatory quests to heal old emotional injuries. The books’ taglines might be “No self can be left behind”: in Ferrante’s world, no character can escape her past.[9]

É verdade, há uma violência comum a todos os romances de Ferrante, que podemos correr o risco de querer rotular de gratuita. Mas também é verdade que existe um certo nível de violência com que convivemos todos os dias (que os romances de Ferrante são eficazes em sintonizar, até o seu ruído se tornar insuportável e ela ter de ser enfrentada). Podemos escolher fechar os olhos, deixá-la justamente aí, no passado, tentar domesticá-la, ou mesmo reparti-la pelos dias para que nunca nos falte. Mas talvez estes romances nos causem tanto desconforto justamente por aí, porque nos lembram de uma necessidade ética de que falava Maya Angelou[10], ao afirmar que a única virtude de que realmente precisamos é a da coragem, porque esta garantirá que seremos constantes em todas as outras. Esta ideia é outra chave possível para ler estes romances. Talvez seja particularmente pertinente para ler o percurso de Nino no seu envolvimento com as duas personagens principais. Mas podemos perguntar-nos, há alguma virtude em Nino?

Violência psicológica, física, que envolve homens, mulheres e crianças, e que traz à superfície o desafio que é mantermo-nos humanos e descobrirmo-nos ou reencontrarmo-nos a nós próprios, depois de nos perdemos, decepcionarmos, sermos destruídos pelas nossas expectativas, destruirmo-las pela nossa própria vontade. Será que alguma vez nos reencontramos? Será isso o que acontece? Depois dos acontecimentos do segundo volume, Lila alguma vez se reencontra? Este é um dos grandes desafios de estar vivo e o grande desafio no centro da Tetralogia. Alguns dirão, é também a grande alegria de embarcar na aventura de ler um romance que ronda a extensão do Guerra e Paz.


[1] http://www.asymptotejournal.com/fiction/olga-tokarczuk-flights/

[2] http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-excedentarios-da-cultura-1724781

[3] http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante

[4] http://www.theparisreview.org/interviews/5856/the-art-of-fiction-no-197-umberto-eco

[5] http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2016/04/the-new-fiction-of-solitude/471474/

[6] http://lithub.com/elena-ferrante-master-of-the-epic-anti-epic/

[7] Tim Parks, http://www.nybooks.com/daily/2015/11/10/how-could-you-like-that-book/

[8] Elena Ferrante, Paris Review, Art of Fiction No. 228 (http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante).

[9] http://www.theguardian.com/books/2014/oct/31/elena-ferrante-literary-sensation-nobody-knows

[10] Entrevista a Harriett Gilbert: http://www.bbc.co.uk/programmes/p02023bg