Um jogo de absolutos: Ties de Domenico Starnone

 

Há uma entrevista dada por Domenico Starnone ao Book Review, o podcast de livros do The New York Times, em que há um breve momento de embaraço.[1] Uma das primeiras perguntas que Greg Cole, um dos editores, faz ao escritor italiano versa sobre as semelhanças entre o romance escrito por Starnone, Ties (Lacci) e Dias de Abandono de Elena Ferrante, incluindo uma alusão à investigação (imediatamente vista como infame) de Claudio Gatti, que numa das maiores polémicas literárias do ano passado levou à revelação de que Elena Ferrante seria Anita Raja, tradutora de profissão e esposa de Domenico Starnone. O escritor limita-se a comentar, com um sentido de humor tipicamente italiano, que podia apenas garantir, em absoluto, que ele próprio não é Elena Ferrante (embora esses rumores tenham circulado) e que talvez fosse melhor ideia tentar entreter essa discussão com a própria Anita Raja. Na verdade, é difícil encontrar uma crítica ou sinopse a Ties no mundo anglo-saxónico em que Elena Ferrante não seja mencionada.[2] A própria página do livro no site da editora não é a isso imune.[3]

Ties é uma breve novela publicada pela Europa Editions e Starnone é descrito pela crítica como o menos internacionalmente popular dos principais romancistas italianos.[4] Oriundo de Nápoles, o autor escreveu até à data treze romances, em paralelo com a sua carreira de guionista e jornalista, tendo vencido em 2001 o prémio Strega (o prémio literário mais prestigiado de Itália) pelo livro Via Gemito. Apenas um outro dos romances foi publicado em inglês, First Execution, em 2009 (Prima Esecusione (2007). A tradução e a brilhante introdução de Ties ficaram a cargo de Jhumpa Lahiri e isto talvez merecesse uma nota mais pormenorizada. Lahiri mudou-se para Roma com a família e o seu último livro, In altre parole (2015), foi complemente escrito em italiano.[5] Mas nem o facto de Starnone, um autor com pouca carreira internacional,[6] ter sido traduzido pela vencedora de um prémio Pulitzer, parece concentrar os leitores na relevância desta novela enquanto objecto estranho à “polémica Ferrante.” 

De todos as críticas que se concentram nas ligações entre Dias de Abandono e Ties, (e são quase todas e esta também não vai escapar a essa tendência) as que mais eficazmente evitam o kitsch (de que esta nota não é um exemplo), são as que veem os dois romances como um diálogo literário entre dois escritores sobre um tópico que de resto não é, convenhamos, exactamente inédito na história de qualquer literatura que se preze.

Ties, como Dias de Abandono, é uma novela acerca das consequências de um episódio de infidelidade conjugal: Aldo Minori abandona a mulher, Vanda, e os dois filhos menores, para perseguir um romance com uma mulher relativamente mais jovem, Lídia, cortando completamente laços com eles,[7] e regressando quando a sua relação com Lídia chega ao fim.

Aaron Bady na The New Yorker[8] enumera algumas das semelhanças cruciais com Dias de Abandono – os objectos de vidro que em ambos os livros se partem em resposta à infidelidade (a cena na novela de Ferrante é bem mais gráfica e mais ou menos inesquecível), os animais de estimação que sofrem com a desordem doméstica (mais benignamente em Starnone do que em Ferrante), o facto de em ambas as novelas o casal ter dois filhos, de em ambas haver um vizinho mais velho, mas mais decisivamente na estrutura das duas novelas, a descrição pormenorizada das consequências devastadoras do colapso mental de ambas as esposas, o que tem levado os críticos a estabelecer a comparação com o arquétipo clássico da esposa enlouquecida, Medeia[9], mas talvez aqui se devesse acrescentar, válido para ambos os livros, a meu ver, mais Ésquilo do que Eurípides, e por isso mais Clitemnestra do que Medeia. A esta analogia voltaremos mais abaixo.

Não é irrelevante pensar sobre estas duas novelas em conjunto, se por mais nada porque à superfície parece estabelecer-se um contraponto a partir do qual se torna mais fácil falar sobre a novela de Domenico Starnone. Mas onde Dias de Abandono surge como uma espécie de tour de force em monólogo, concentrado no espaço e no tempo, que converge para alguns dias decisivos na vida de uma mulher que se vê trancada numa casa, a partir da perspectiva única dessa personagem solitária, que procura recuperar o controlo sobre a sua própria vida e a vida dos filhos, tudo isto narrado com uma violência e opressão que talvez só tenham paralelo naquele tipo de narrativas que lidam com transgressões criminosamente violentas ocorridas no espaço doméstico (a tensão e atenção que se exigem do leitor são mais ou menos as mesmas que se experimentam ao ver A corda de Hitchcock, um episódio de Bloodline ou uma encenação do Agamémnon). A novela de Starnone divide-se em três partes e é, assim, cuidadosamente estruturada para incluir a perspectiva de todas as personagens envolvidas (a mulher, o marido, os filhos) e o arco temporal é muito mais amplo (abrangendo várias décadas).

 Na crítica da Asymptote, Stiliana Milkova aponta, e bem, que Ties não oferece uma solução para as perguntas que coloca, a novela termina em aberto, o que em parte tem a ver, creio, com o facto de haver um espaço muito maior para a ambivalência moral das duas personagens principais (Aldo e Vanda, o casal no centro da intriga), o que é muito possivelmente uma consequência de as suas motivações não serem claras nem para elas próprias, em parte porque as consequências das suas acções são bem menos definitivas do que se possa imaginar.

Quando Aldo Minori abandona Vanda e os filhos, ele não regressa nem quando ela faz uma tentativa de suicídio. Para quem leu os romances napolitanos é muito difícil não ver o paralelo com o relapso Nino Sarratore. E, no entanto, há que acrescentar que a secção narrada por Aldo é a mais longa em toda a novela e é difícil não sentir empatia pela sua perspectiva. Mas um pouco como no Agamémnon de Ésquilo, não se pode cometer um crime e esperar regressar com impunidade à ordem anterior. A secção narrada por Vanda passa-se em 1974, a de Aldo na actualidade, numa altura em que as crianças há muito saíram de casa e embarcaram nas suas próprias vidas. Mas um assalto ao apartamento, empreendido quando o casal se encontra de férias, espalha pela casa as memórias da infidelidade de Aldo, enquanto ele tenta a todo o custo escondê-las da mulher. Cartas de Vanda escritas naquela altura ressurgem, fotografias de Lídia que Aldo mantivera cuidadosamente guardadas (mas à vista de todos, como transparece), desaparecem misteriosamente. Um tributo à máxima complexidade que este romance alcança envolve o nome do gato doméstico e o significado de um termo num dicionário de latim (sim, eu sei que isto vos faz pensar nas classicistas dos romances de Ferrantes) e nada pode resolver a ambivalência que esta discussão esconde, porque ela assenta afinal no facto de ser impossível definir com toda a certeza as motivações mais íntimas de outra pessoa, se todas as escolhas subsequentes de alguém podem ser lidas à luz de uma decisão só.

Para lá da sombra de Ferrante, Ties é uma novela sobre a fragilidade da felicidade (em geral, não apenas da conjugal, como expresso na trajectória dos dois filhos de Aldo e Vanda) e sobre a força de certos laços. Podíamos até aceitar que o que nos é narrado é deixado em aberto, mas talvez que o isolamento em que estas personagens coexistem, o quão separadas elas estão umas das outras, encerre uma nota sobre uma convenção um pouco mais perigosa, pela qual tentamos viver absurda e absolutamente. Um pouco com a mesma indolência (se não cobardia moral) de Nino Sarratore, Aldo arrasta-se de volta ao lar, para viver durante décadas com uma mulher que nunca lhe irá perdoar a primeira transgressão. A decisão de Aldo, em aporia como surge (o que fazer depois de Lídia o deixar? – a amante abandona-o em parte porque ele sente o dever de regressar a casa para tomar conta dos filhos, mas quem afinal decide por Aldo é Lídia), sugere que esperamos que a racionalidade de certas decisões nos proteja, que acarrete uma legitimidade moral que permita a expiação. Podemos dizer, como se lê na crítica da Asymptote, que Ties deixa as possibilidades do que encena em aberto.

À violência quotidiana que sugere essa abertura, a vingança da paz podre que Vanda afinal impõe, pode bem sobrepor-se outra, a que sugere que enterrar a cabeça na areia não basta. Se, de facto, se quiser ler esta novela à luz de Dias de Abandono, o corte radical sugerido por Ferrante, parece de repente mais tolerável. E a isso talvez não seja alheio o facto de a novela de Ferrante ser afinal também um ensaio sobre a ideia de que estar vivo requer uma certa coragem.

Mas esta é apenas uma das muitas leituras deixadas em aberto pela novela de Starnone, talvez escrita para nos lembrar do outro lado desse argumento, um lado menos absoluto e mais complexo: que nem todas as perguntas têm uma solução e que estar vivo significa que não escapamos às condições contradictórias em que as nossas vidas decorrem. O tempo trai-nos, nota Jhumpa Lahiri na introdução. Deste ponto de vista, não é difícil de entender o quão relevante esta breve novela pode ser, para lá de qualquer polémica literária. Como se lê ainda na introdução:

The novel reckons with messy, uncontrollable urges that threaten to break apart what we hold sacred. It is in fact about what happens when structures – social, familial, ideological, mental, physical – fall apart. It asks why we go out of our way to create structures if only to resent them, to evade them, to dismantle them in the end. It is about our collective, primordial need for order, and about our horror, just as primordial, of closed spaces (p. 12).


[1] https://www.nytimes.com/2017/03/24/books/review/ties-to-ferrante.html

[2] Esta breve sinopse no The Guardian, assinada por Anthony Cummins, é mais ou menos paradigmática. Nas primeiras linhas lê-se: Elena Ferrante’s The Days of Abandonment described a wife’s wrath at the husband who leaves her and their two children for a younger woman. Ties lays out a similar scenario from the betrayer’s point of view, which may be no coincidence, given that Domenico Starnone is married to Anita Raja, aka Elena Ferrante (allegedly).

[3] https://www.europaeditions.co.uk/review/2893 

[4] Veja-se a crítica de Rachel Donadio

[5] A autora fala desta experiência aqui.

[6] De resto uma tendência geral da literatura italiana, pelo menos em relação aos países anglo-saxónicos: https://www.the-tls.co.uk/ferrante-fever-and-other-symptoms/

[7] Não é daí que vem o título. À letra, no italiano, lacci são atacadores.

[8] http://www.newyorker.com/books/page-turner/a-novel-of-infidelity-in-dialogue-with-elena-ferrantes-the-days-of-abandonment

[9] Veja-se, por exemplo, a crítica de Stiliana Milkova para a Asymptote.  

Pequenas coisas mais literais: A tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Romance, épica, arte poética, bildungsroman, biografia ficcional, não sabemos quanto de autobiografia, um longo ensaio sobre uma cidade, ou um longo ensaio sobre infância, adolescência, idade adulta, velhice, uma épica no feminino, uma meditação sobre Itália contemporânea, sobre maternidade ou sobre as implicações de nascer mulher no séc. XX numa sociedade ocidental, ou um longo romance sobre a vida de uma comunidade à margem de uma sociedade, todos estes ângulos vão desaparecendo e ressurgindo à medida que avançamos pelos quatro volumes da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante.

É tentador para um classicista querer ler na crónica da amizade entre Lena e Lila o eco da amizade mítica de Aquiles e Pátroclo, esse lugar atravessado pelos tambores da guerra a partir de onde a história da literatura ocidental começou a desenrolar-se. Qualquer coisa neste livro sem dúvida joga com o paradigma de lendárias amizades literárias no masculino. A comparação com Homero não é irresponsável, sobretudo se quisermos acreditar no hype (tanto comercial quanto crítico) que acompanhou a recepção da obra de Ferrante, e porque, como com Homero, há ao mesmo tempo qualquer coisa de profundamente convencional acerca da Tetralogia, isto é, dependente das expectativas que nos são inspiradas por convenções supostas por géneros literários, e partindo dessas expectativas, à medida que atravessamos as linhas temáticas que separam os primeiros dois romances dos dois últimos (ou seja, quando passamos da crónica da juventude para a idade adulta), estas são estilhaçadas uma a uma (talvez por isso a maior parte dos leitores prefira os primeiros dois romances), o que em parte explica o lado profundamente inovador da Tetralogia. A escrita de Ferrante tem sido apelidada de radical. Talvez o que este rótulo descreva seja o estilo de crónica precisa e, para usar outro termo gasto à falta de melhor, visceral dos romances, que não deixa nada intacto. Ou talvez pudéssemos aqui citar a escritora polaca Olga Tokarczuk, que nos faz pensar no método criativo de Ferrante:

Anyone who has ever tried to write a novel knows what an arduous task it is, undoubtedly one of the worst ways of occupying oneself. You have to remain within yourself all the time, in solitary confinement. It’s a controlled psychosis, an obsessive paranoia manacled to work, completely lacking in the feather pens and bustles and Venetian masks we would ordinarily associate with it, clothed instead in a butcher’s apron and rubber boots, eviscerating knife in hand.[1]

Mas podemos começar por pequenas coisas mais literais. Se estes romances são tão populares, o que é a sua popularidade nos diz sobre nós próprios, crescente exército global de leitores insones, que se perguntam entre si és Lena ou Lila, Nino ou Enzo? Chavões críticos que sem dúvida podem ser aplicados à Tetralogia Napolitana: uma das obras mais interessantes e controversas do nosso tempo. Os quatro romances foram agora publicados em Portugal na sua totalidade pela mão da sempre atenta Relógio d’Água. Talvez porque seja a Relógio d’Água uma das editoras em Portugal que tomou para si a missão de saciar as insaciáveis elites cultivadas da pátria, pequeno pormenor que infelizmente escapa ao olho de falcão de António Guerreiro nesta crónica[2] (para quem publicam editoras como a Relógio d’Água se não para essa sedenta elite de miríades, segundo AG tão extensa quanto insaciável, mas que em outras crónicas suas tende a ser apresentada como insuficiente), a editora optou por não publicar os livros com as mesmas capas kitsch com que foram publicados no original e no mundo anglo-saxónico. Com esta opção algo se perde. De alguma forma, a totalidade da obra de Ferrante pode ser lida como uma paródia negra daquele tipo de narrativas que habitam a escala entre o conto de fadas e My Fair Lady e que foram, ao longo de gerações, como a precisão impiedosa das reguadas dos professores fascistas deste planeta, reforçando estereótipos de género. Mas talvez porque a elite nacional se “dá ao respeito” (expressão que alude talvez a uma certa falta de imaginação e sentido de humor), pelo menos no que a capas se refere, belas fotografias a preto e branco animam a edição nacional da Tetralogia Napolitana.

As capas originais são de alguma forma a marca indelével do primeiro jogo da autora com as nossas expectativas. Nas palavras de Antonella Di Marzio são também outra coisa: “Whenever I see those tacky covers I can immediately identify the world that has been at the origin of the novels. It can't be denied, and such an operation is denying this authenticity. As if it weren't possible that such a world has generated literature and that we need some tweaking to make it acceptable, appealing.” É verdade, a primeira coisa que os romances de Elena Ferrante nos dizem sobre nós enquanto seus leitores é que temos um interesse em narrativas sobre injustiça social, tanto quanto sobre sonhos, criatividade, inteligências míticas como as de demiurgos, ao género de Sócrates (o outro, não esse). Que gostamos de ler romances que dramatizam a psicologia da amizade, do amor, da violência, do sexo. 

A Tetralogia existe no centro de um cânone e o seu trabalho é provocá-lo, arrastá-lo para outros caminhos, actualizá-lo. Mutatis mutandis, com Homero, Elena Ferrante partilha uma ideia de literatura enquanto empresa anónima, enquanto herdeira de uma inteligência colectiva: [t]here is no work of literature that is not the fruit of tradition, of many skills, of a sort of collective intelligence. We wrongfully diminish this collective intelligence when we insist on there being a single protagonist behind every work of art.[3]

Mais vale perguntar: como é que estas personagens passam tão rapidamente a fazer parte da nossa vida? Porque nos interessam tanto? Se há um elo com a tradição, como podem personagens anteriores, narrativas anteriores, acrescentar algo à nossa experiência de ler a Tetralogia? Todos os livros que lemos anteriormente viajam connosco até ao livro seguinte (é também por isso que devemos a nós próprios imaginarmo-nos como poema contínuo). E os livros mantêm os seus diálogos com a tradição em que são gerados. Como Aquiles na Ilíada em relação a Pátroclo, Lena tenta articular o enredo da sua própria vida a partir da sua relação com Lila. O mesmo sucede com as nossas vidas, esse é grande parte do apelo dos romances. O enredo da vida de Lena está costurado com o de Lila, a amiga genial da infância, e a vontade de Lila é de alguma forma a força autoral da vida de Lena (de vez em quando a ordem inverte-se). Um dos aspectos mais importantes acerca deste conjunto de livros é recordar-nos que o amor não é linear, pacífico, agradável. É um desafio constante, cheio de uma ambivalência que requer de nós uma certa cegueira (uma habilidade para perdoar e seguir em frente) para se manter vivo.

Em aparência sempre um passo à frente, Lila vai tentando moldar o curso da vida de Lena, como uma espécie de narrador obscuro, relegado para segundo plano. Na sua totalidade, o apelo destes romances talvez assente nisto: a opção por uma forma biográfica, cronologicamente organizada da infância à velhice, expõe afinal a operação de ambivalência por que certos objectos de arte se intrometem nas nossas vidas e se tornam parte da nossa história: eles são ao mesmo tempo perfeitamente particulares (referem-se a momentos muito específicos das vidas de outros) e universais (os outros afinal são como nós). Ao falar dos privilégios de ser um leitor, o compatriota de Elena Ferrante, Umberto Eco, disse:

An illiterate person who dies, let us say at my age, has lived one life, whereas I have lived the lives of Napoleon, Caesar, d’Artagnan. So I always encourage young people to read books, because it’s an ideal way to develop a great memory and a ravenous multiple personality. And then at the end of your life you have lived countless lives, which is a fabulous privilege.[4]

Os romances napolitanos são a história de uma amizade ao mesmo tempo solar e opressiva entre duas mulheres. Para voltar à minha analogia inicial, como Aquiles, Lila não existe exactamente numa escala humana, e ambos partilham uma clareza de visão que não lhes permite deixar de distinguir em quem os rodeia a mediocridade e a falta de coragem sobretudo daqueles que têm pretensões a ter sobre eles poder. O poder do dinheiro, da autoridade, da corrupção, do sexo – aspectos obcessivamente examinados nos romances. Este exame propõe-nos a seguinte realidade: que crescemos com certos papéis, supostos por outros mesmo antes de podermos escolher que tipo de história será a das nossas vidas, a bagagem que carregamos connosco desde a infância e que se apropria de nós mesmo antes de entendermos quem somos, quem são os outros, elementos que servem para reforçar convenções sociais, como o sexo com que nascemos, o bairro em que crescemos, quem são os nossos pais, os nossos amigos de infância. Ao imaginar Lila, Ferrante tem de se ter perguntado o que aconteceria se alguém escrevesse um romance que tivesse no centro uma personagem que estivesse disposta a ser imune a todas essas convenções? Como é que ela seria? Como seria a sua vida? E quem poderia narrar a sua história? E, pode-se perguntar, podemos ler o final do romance como um comentário acerca desta ideia? Poderá a autora ter hesitado e o final pode ser interpretado como a aplicação de uma moral punitiva sobre uma das personagens no centro da acção? Ler é um acto ético, político, e enquanto leitores devemos a nós próprios este tipo de perguntas. São estas perguntas que permitem que os romances se tornem explorações da nossa personalidade, dos limites do nosso universo moral, mas, mais do que isso, da nossa empatia. E para que serve a nossa empatia de leitores? Como Nicholas Dames nota num ensaio recentemente publicado na The Atlantic:

...a deficit in empathy imperils a democratic culture, and that novels keep us entwined and engaged when we might otherwise drift apart in shrill and narcissistic self-certainty...[5]

Os primeiros dois volumes da Tetralogia são particularmente eficazes a explorar a ausência da possibilidade de uma origem em branco para a história das nossas vidas (nenhum homem, ou mulher, nasce, afinal, livre e igual aos outros), eles surgem carregados ao mesmo tempo do encanto e do terror da infância, e acidentalmente expõem a hipocrisia de algumas narrativas que nos são conferidas nessa idade e que acidentalmente servem para graduar a nossa posição numa certa escala política e social (o inverosímil super-intelecto de Lila, excluída da escola mesmo antes de entrar no liceu, é também uma provocação neste sentido). Narrativas essas que, deu-se o caso, em Itália em meados do século passado foram exacerbadas e postas em causa por uma série de eventos políticos e culturais que formam o contexto histórico do romance (o fascismo, os movimentos políticos e culturais que floresceram a partir da década de 60, as Brigadas Vermelhas), e que reforçam a pertinência das personagens de Ferrante hoje: como nós, gente para um tempo instável.

Num conjunto de romances que avança por sucessivas intermitências de esperança e crise, o ponto de tensão inicial ocorre entre a imaginação de Elena e Lila e a realidade que lhes é imposta, à qual é suposto ambas submeterem-se. Se os romances se leem como a história da formação de um escritor, então eles surgem da consciência de um real em falência constante, cuja vantagem é este traduzir-se no adquirir de uma lenta capacidade de estranhar coisas aparentemente banais, como o processo de degradação sofrido pelos corpos das mulheres do bairro, a percepção de que elas se parecem com os homens com quem se casaram, ou a violência de que os rapazes constantemente se socorrem para se afirmarem sob pena de serem vistos como fracos. Num dos capítulos de A Amiga Genial, as amigas discutem Dido e Eneias, e mais tarde, um ensaio de Lena sobre Vergílio adapta uma observação de Lila que Lena involutariamente associa à decadência bairro, que onde não há amor não só a vida das pessoas é estéril mas também a das cidades. É difícil imaginar um comentário político e social mais pertinente para os dias de hoje.

Como é que o amor se transforma em poder?, é uma pergunta colocada por Anne Carson num dos mais belos livros de poemas alguma vez publicados sobre um divórcio, The Beauty of the Husband, mas talvez os romances de Ferrante arrastem esta pergunta para o nível seguinte, como é que o amor sobrevive ao poder?   

Lila intui a beleza das coisas sem poder deixar de se diluir nelas. Na amizade, como em tudo o resto, para Lila não existem meias medidas. Os episódios de sinestesia de que ela sofre talvez sejam sobretudo uma expressão desta ideia. O percurso de Lena, moderada e agradável em quase tudo, ainda que na maior parte do tempo apenas em aparência, paradoxalmente, herda alguma coisa desta ética. Num diálogo com Pietro, ele diz-lhe que ela é meio feminista, meio comunista, meio estudante de Foucault, apenas com ele meias medidas nunca foram usadas. O grande desafio destes romances tem a ver com o modo como cada leitor se relaciona com o percurso emocional destas personagens. O grande desafio do percurso emocional de Lila e Lena é manterem o controlo sobre esse percurso. Talvez a ideia de que nos compete recusar meias medidas no amor, na amizade, nas nossas diversas trocas com outros, na nossa arte (o que quer que ela seja, pode ser escrever ou informática), possa ser entendido como o grande contexto ético da obra, e nesse sentido, a popularidade destes romances assenta num desafio a que as personagens estão constantemente expostas. Entender o que lhes acontece e porquê importa-nos e é-nos útil: este é também o nosso desafio todos os dias.

As alusões ao mundo antigo abundam. Algumas estão listadas na recensão de Aaron Bady para o LitHub[6]: Lena chama-se Elena Greco, licencia-se em clássicas depois de vencer uma bolsa para estudar na Normale de Pisa, que é o que lhe permite abandonar o bairro em Nápoles, escreve uma tese sobre Vergílio, a um dado momento casa-se com um classicista. Um dos diálogos mais importantes para a caracterização de Lena e Lila é a tal conversa sobre Dido e Eneias, há qualquer coisa neste diálogo que é reminiscente do diálogo entre Míchkin e Rogójin nas páginas iniciais de O Idiota, é um daqueles casos em que duas personagens não podem evitar expor-se mutuamente e isto de alguma forma prepara o palco para o que vai suceder em seguida. E, de alguma forma, com as personagens de Dostoievsky as personagens de Ferrante têm em comum uma certa noção de um peso metafísico que precede as suas acções, que as marca de longe para o que vai acontecer em seguida, as suas acções tornam-se uma parte decisiva da sua caracterização. Talvez poucas criações depois de Dostoievsky sejam tão Dostoievskianas como Lila. E ao mesmo tempo há em Lila e Lena qualquer coisa de profundamente reminiscente das mulheres que habitam os dramas de Eurípides. Pensamos em figuras como Medeia, Hécuba, Fedra, que percorrem a linha divisória entre a civilidade e a loucura, entre as convenções morais das sociedades em que habitam e a total falta de escolha que expõe a falência (e muitas vezes a perversidade) dessas convenções e que acaba por forçá-las à vingança. Nas suas peças sobre mulheres é como se Eurípides se perguntasse, as nossas sociedades foram pensadas para proteger um certo número de privilégios, o que acontece àqueles que se tornam vítimas desses privilégios? Não só quando Elena Ferrante fala do seu interesse em narrar a diferença do seu sexo, mas mais do que isso num certo pendor neo-realista dos romances (o bairro, o poder dos camorristas, a ascensão social de Lena, etc.), pode a autora ter tido esta mesma pergunta em mente?

Lila pertence àquele grupo de personagens literária que nunca projectam uma imagem definitiva de si próprias, a sua existência é da ordem da interrogação, não da resposta, as suas acções não correspondem tanto a factos como a actos demiúrgicos. A sua personalidade é capturada na descrição de Lena sempre no meio do drama, no momento em que se manifesta, Lila nunca se explica a si própria, e tudo o resto é o resultado da especulação de Lena. Juntas, Lena e Lila, como Pátroclo e Aquiles, são duas versões do mesmo tipo de inteligência humana e são tão inextricáveis que, inevitavelmente, em alguns momentos, desconfiamos que estamos perante duas versões da mesma personagem.

E se aquilo que na nossa inteligência é produto de uma inteligência colectiva não deve ser diminuído em favor do enaltecimento de um protagonismo excessivo, se o que nos ajuda a tornarmo-nos no que vamos sendo depende de uma exposição e de uma atenção constantes às ideias, interesses, paixões e histórias de outros, então a Tetralogia Napolitana, a história da formação de uma escritora (e neste aspecto os dois primeiros volumes habitam o mesmo espectro do nosso imaginário ocupado pela Autobiografia de Thomas Bernhard), o conjunto da obra de alguma forma desloca e expande o conceito de autor. Ligadas desde a infância, Lila parece em certos momentos ser a autora de Lena, a inventora do seu percurso, tal como de tantos outros objectos mais ou menos mirabolantes que lhe permitem assegurar alguma prosperidade, objectos nunca menos do que miticamente emocionais. E porque as mesmas versões da inteligência humana se reinventam com o progredir das tradições a que pertencem, neste aspecto, o herói de Homero com que Lila se parece é Ulisses, que na Odisseia a espaços deixa para trás um número de objectos construídos pelas suas próprias mãos que de alguma forma permitem a sobrevivência e, em alguns momentos, a opulência. Se Lila é ambivalente pela rejeição de uma ideia fixa de si própria, isto é de alguma forma um desafio à ideia de uma personalidade que encontra a sua melhor expressão na possibilidade de um destino narrativo linear, isto é, num destino que seja consequência dessa personalidade. Este é um dos aspectos mais fantásticos da Tetralogia. Lila, como Aquiles, é esta força cega no centro do romance, mas esta força falha em manter o controlo dos acontecimentos, falha em manter a ordem embora pareça ter o poder para a manter, convida o caos, no fim falha em controlar-se a si própria. De vez em quando cruzamo-nos com estas personagens, chamamos-lhes Aquiles ou Clitemnestra ou Mefistófeles, e é com um certo desconforto que depois voltamos à nossa rotina diária, mas somos um pouco menos banais depois desses encontros. A possibilidade de uma relação de causa e efeito entre personalidade e acção explica porque é que os romances são uma longa paródia das narrativas que habitam a nossa ideia do que são contos de fadas e a sua função na nossa cultura. Explicam também o apelo de Lila, uma heroína em falência constante, cujo último acto, o gesto que abre o romance, o seu desaparecimento, consiste talvez numa última tentativa de preservar a sua própria inteligência. E, no entanto, tanto o desaparecimento como as invenções de Lila têm qualquer coisa de dionisíaco, partilham da mesma natureza que uma ideia do cavalo de Tróia enquanto triunfo da inteligência: carregam ao mesmo tempo a potencialidade da vitória, do fim das tribulações, e da aniquilação total. O romance não nos deixa entender se este lado perverso da inteligência de Lila é intencional, e eis outro elo com Ulisses.

Neste aspecto, o fio da tradição que a Tetralogia alonga é o da nossa atracção por formas de inteligência herméticas, que de alguma forma são animadas de um potencial inesgotável que rapidamente se pode tornar numa força para a destruição. Entendido enquanto romance feminista, um rótulo de resto nem confirmado nem rejeitado por Ferrante, talvez seja este o contributo do romance nesse aspecto: duas mulheres que crescem num bairro pobre, dominado pela corrupção e pela violência da Camorra, e que entendem cedo, e em certo sentido quase inconscientemente, que a única solução é inventarem-se a si próprias apesar das restrições que lhes são impostas. A Tetralogia de certo modo diz-nos, nada é tão belo como a força gasta em construir as nossas histórias.

Uma última nota. O que tem sido apelidado da extrema violência dos romances, de resto, a meu ver, mal lida por críticos de outro modo competentes[7] porque confundida com uma estratégia fácil para agradar ao leitor, um rótulo descartado por Ferrante (“Literature that indulges the tastes of the reader is a degraded literature. My goal is to disappoint the usual expectations and inspire new ones.”[8]), cuja função é traduzir a violência constante deste mundo, é um sintoma de porque é que estes romances de alguma forma são objectos tão pouco convencionais. Como notou Megan O’Rourke:

Ferrante’s project is bold: her books chronicle the inner conflicts of intelligent women (professors, novelists) who, having made their way to Florence or Rome and to good jobs, find themselves confronting memories of the crude violence and misogyny of their youth. Shaken by a surprising event, they lose their grip on reality, lapse into a Neapolitan dialect full of obscenities, and are drawn into hallucinatory quests to heal old emotional injuries. The books’ taglines might be “No self can be left behind”: in Ferrante’s world, no character can escape her past.[9]

É verdade, há uma violência comum a todos os romances de Ferrante, que podemos correr o risco de querer rotular de gratuita. Mas também é verdade que existe um certo nível de violência com que convivemos todos os dias (que os romances de Ferrante são eficazes em sintonizar, até o seu ruído se tornar insuportável e ela ter de ser enfrentada). Podemos escolher fechar os olhos, deixá-la justamente aí, no passado, tentar domesticá-la, ou mesmo reparti-la pelos dias para que nunca nos falte. Mas talvez estes romances nos causem tanto desconforto justamente por aí, porque nos lembram de uma necessidade ética de que falava Maya Angelou[10], ao afirmar que a única virtude de que realmente precisamos é a da coragem, porque esta garantirá que seremos constantes em todas as outras. Esta ideia é outra chave possível para ler estes romances. Talvez seja particularmente pertinente para ler o percurso de Nino no seu envolvimento com as duas personagens principais. Mas podemos perguntar-nos, há alguma virtude em Nino?

Violência psicológica, física, que envolve homens, mulheres e crianças, e que traz à superfície o desafio que é mantermo-nos humanos e descobrirmo-nos ou reencontrarmo-nos a nós próprios, depois de nos perdemos, decepcionarmos, sermos destruídos pelas nossas expectativas, destruirmo-las pela nossa própria vontade. Será que alguma vez nos reencontramos? Será isso o que acontece? Depois dos acontecimentos do segundo volume, Lila alguma vez se reencontra? Este é um dos grandes desafios de estar vivo e o grande desafio no centro da Tetralogia. Alguns dirão, é também a grande alegria de embarcar na aventura de ler um romance que ronda a extensão do Guerra e Paz.


[1] http://www.asymptotejournal.com/fiction/olga-tokarczuk-flights/

[2] http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-excedentarios-da-cultura-1724781

[3] http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante

[4] http://www.theparisreview.org/interviews/5856/the-art-of-fiction-no-197-umberto-eco

[5] http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2016/04/the-new-fiction-of-solitude/471474/

[6] http://lithub.com/elena-ferrante-master-of-the-epic-anti-epic/

[7] Tim Parks, http://www.nybooks.com/daily/2015/11/10/how-could-you-like-that-book/

[8] Elena Ferrante, Paris Review, Art of Fiction No. 228 (http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante).

[9] http://www.theguardian.com/books/2014/oct/31/elena-ferrante-literary-sensation-nobody-knows

[10] Entrevista a Harriett Gilbert: http://www.bbc.co.uk/programmes/p02023bg