Enumeração: August in Paris

a)
No papel em branco, começar por estabelecer a teoria das três cidades (no mínimo): aérea, ao nível dos cais, subterrânea. Ir para lá do sítio onde sempre caminham os nossos pés, aquele que vem nos mapas dos turistas, muito dobrados sobre si próprios. Quem sabe, contar depois, com falsa ingenuidade, (mas será difícil…) uma história que tentasse nada disso esquecer. Nada disso e tudo o mais. Recapitulando. Primeira cidade: nas torres o lugar suspenso das nuvens, as ruas e as praças como um brinquedo frágil e sofisticado, com um trânsito preciso, cuidadoso; segunda: uma cidade mesmo junto ao rio, percurso solitário e errático de cais, largando os negócios do corpo e da alma uns metros acima; terceira: uma imensa plataforma subterrânea, túneis e túneis entrecruzando-se, esgotos, colónias de ratazanas e uma necrópole que murmura um silêncio com demasiada terra e raízes.

b)
Adenda à teoria de Paris: ter em consideração os torvelinhos atmosféricos, a edificação da tempestade em Montmartre e os grandes gestos das árvores ao vento, o modo como vemos outras coisas, protegendo os olhos.

c)
O abstracto do metropolitano, pontos sobre um mapa, passar e tornar a passar sob lugares de orientação do nosso destino, nós da vida, centros do mundo a que nunca realmente subimos, onde haveria uma história e seríamos, enfim, muito felizes.

d)
No metro, os pedintes são os verdadeiros parisienses, com uma retórica muito precisa e bem treinada: «Moi, Jean-François, 44 ans, dis bonjour...».

e)
As línguas estrangeiras no país estrangeiro, por toda a cidade os jornais em estranhos alfabetos. Mas o que quer dizer o mais comum dos olhares?

f)
A pergunta que apenas não se formula, questão de educação. O que é uma cidade, a luz feita de reflexos e sombras, a respiração que respira diferente em cada mulher, em cada homem, a dispersão sábia e ocasional de pontes e cais? Em que alínea caberá esta pergunta: a abrir, em conclusão, no centro de uma abóbada, no fundo dos poços de quintais, esses que ainda aparecem nas velhas placas fotográficas?

g)
Como fotografar um grande monumento, digamos, a Torre Eiffel, se não captando fragmentos, silhuetas, sombras entre árvores? Voltamos-lhe as costas, e nem nos apercebemos de que acabou de acender as suas luzes.

h)
Qual a presença (por exemplo) do amado Atget nesta viagem? Comprar muitos postais de Paris a preto e branco, perdermo-nos neles. A cidade fica por trás, lançando a grande sombra, uma luz indefinível, soltando um trânsito urgente. 

i)
Fotografar: retirar edifícios, pessoas, desperdícios que perturbam o enquadramento, colocar lá o fotógrafo que vem de fora, sonhando Paris. Cruzamo-nos com os velhos trapeiros e ferros-velhos da cidade, remexem nos fios desengonçados das coisas, erguem depois essa poeira dourada que atravessa os olhos.

j)
A experiência de ser retratado em Paris por um fotógrafo- a pose, marcar o território em terra estranha. Gravidade imponderável de nós próprios sobre os músculos, e no ar dos que sabemos que assistem e sabem também que sabemos que assistem.

k)
A presença física das pessoas, a sua pública respiração íntima, face a face, os olhos alheios. O metropolitano percorre as distâncias entre faíscas de atrito e velocidade, e atira assim os corpos, para que apenas se encontrem no centro mais remoto da cidade. 

l)
As memórias prévias de Paris, leituras, suposições de suposições, mas agora a luz crua das praças, as súbitas arcadas de sombra oferecem-nos os momentos felizes em que nos perdemos. Ver então de novo o mundo pela primeira vez. 

m)
Também nos cabe caminhar alucinadamente em direcção à Gare du Nord, como numa fuga feita de cenários eles próprios mutáveis, sucessivas esferas de vida em expansão, labirínticos mercados encadeados e, ao fundo, os painéis quase imóveis do tempo da cidade muito antiga. 

n)
A procissão dos monumentos no bateau-mouche, à noite. Um turista italiano cantarola "La Vie en Rose", rodeado pela família, e grita com sotaque "C'est Paris, C'est Paris". Ignora a brisa que agita a pele das águas do Sena e, quando o barco regressa e rodeia a Île Saint Louis, o vento cresce subitamente, desalinhando o filme feérico do primeiro percurso.

o)
A visita inexistente ao grande museu. Não poder ir, acompanhar depois o edifício por fora, num dia em que estava, afinal, fechado, imaginando tudo. O mesmo que entrar, escolher uma ou outra sala, com gente apinhada entre os quadros, cercando as estátuas, retendo fragmentos, de acordo com a lógica do movimento dos grupos de turistas? Ficar na casa emprestada, com o pé inchado, a folhear o livro sobre os castelos do Loire, que nos deixaram por perto, como quem não quer a coisa. As persianas estão semicerradas e não conseguimos ir abri-las. A luz da cidade dardeja pelas frestas, espectáculo não adivinhado nas margens do Sena, junto ao Louvre, onde se folheia também álbuns sobre os castelos do Loire. 

p)
Nos grandes armazéns, com reproduções de cartazes coloniais ou sob cúpulas "arte nova" de veios delicados e exóticos, estendem-nos papelinhos embebidos de qualquer coisa que não se vê, e dizem-nos: «são essências de Paris». Também nos oferecem uns mapas com a linha do metro e, nos cruzamentos, desenhos dos principais monumentos em perspectiva. 

q)
Fica aqui a Sainte-Chapelle. O lugar de pedra e vidro cerca-nos com ondas sucessivas de silêncio há tanto tempo desenhadas pela luz. Esperam longamente alguém que parece não chegar.

r)
Outra adenda à teoria de Paris: o Père-Lachaise, a cidade dos mortos. É necessário comprar um guia nas papelarias das vizinhanças, desdobrá-lo a custo por entre a acumulação de lápides, troncos, minúscula vida vegetal, ferrugens que enferrujam, sentimentos amalgamados, últimas palavras. Andavam à procura do crematório, não conseguimos ajudar, alguém comentou: "parece que se desfez em cinzas". 

s)
Arredores longínquos de Paris. Soissons: uma praça com o célebre soldado desconhecido, a piscina do município, um mercado à sombra gigante da catedral, com mimosos toldos às riscas e, à saída, algumas caravanas improvisadas junto ao rio e aos pontões. O velho tio é agricultor diligente de um jardim caótico, que vai bordejando de garrafas que bebeu com critério e brilham agora ao sol, atraindo e espantando os pássaros; na divisão dos fundos, comenta os retratos da terra natal sobrepostos na parede. Ao regressarmos de comboio, o caderninho de gatafunhos fica cheio de enumerações que os outros passageiros espreitam com desconfiança pelo canto do olho.

t)
O "Cabinet Fantastique" e o "Palais des Mirages" do Musée Grévin. O maravilhoso ingénuo de um outro século, os orientes datados, os sobressaltos hoje risíveis, mas a primitiva angústia quando se apagam as luzes e uma tempestade inteira pode desabar.

u)
Alguém já escreveu sobre os pequenos mundos fechados das galerias e passagens comerciais do século XIX, o seu conforto feito de um delimitado labirinto de lojas e corredores. Há objectos dentro de caixas que estão dentro de caixas e, envolvente, o rodar dos astros que riscam as clarabóias.

v)
A súbita tempestade de Verão abate-se sobre Paris - a trovoada e a chuva de enorme evidência física, a ventania provocando confusão na esplanada, entrando pela sala do restaurante, partindo copos, recordando a ancestral geografia do lugar, montes, vales, escorrências, a vasta teoria das nuvens da cidade.

w)
Modelo das aproximações a um lugar- túneis e túneis dos arredores, depois uma espécie de febre de edifícios, colunas de electricidade. Queremos chegar, enfim, ao centro, mas perguntam-nos qual é ele, já passámos. Os centros são apenas os arredores de outros centros e começaremos por algum lado, imaginando uma primeira ordem das coisas.

x)
Reler (são meros exemplos) o Spleen de Paris, Baudelaire que também fala imaginativamente de Lisboa; ou o Livro das Passagens de W. Benjamin. Encontrá-los primeiro na cidade da biblioteca.

y)
Banda sonora: nomeadamente, "April in Paris", por Frank Sinatra, na década de 40 (2:41). 

z)
Matsuo Bashô:

«Para viajar deveria bastar-nos o nosso corpo; mas as noites reclamam um agasalho; a chuva, uma capa; o banho, um traje limpo; o pensamento, tinta e uma pena. E as prendas que não se podem recusar... As dádivas estorvam os viajantes.»

«Ao visitar muitos lugares cantados em velhos poemas, quase sempre as colinas se achataram, os rios secaram, os caminhos desapareceram, as pedras se cobriram de hera e árvores novas substituem as velhas e veneráveis.»


«Segundo as leis dos peregrinos budistas, é proibido revelar pormenores sobre aquilo que os olhos vêem neste monte; por isso não continuo.»

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As citações de Matsuo Bashô provêm de O Caminho Estreito para o Longínquo Norte, na versão de Jorge de Sousa Braga (Casa Matilde Urbach, 1987).