Estremecendo com a fúria do sangue

1. Morreram-me dois gatos.  Estracinhados por uma parelha de cães que adoptei. A culpa é minha, os cães não pensam. Se tivesse procedido assim ou assado. Se. Se. A culpa não é minha, não poderia ter agido de outro modo. Culpado ou inocente, a natureza não quer saber disso. Os fortes matam os fracos, não me recordo de um tempo em que tenha sido diferente.  Animais feitos para matar acabam por matar. A culpa invade os sonhos, afecta a vida social, impede de dar continuidade a certos projectos pessoais. A culpa é uma fantasia. Sentimo-nos culpados, centramos a dor em nós próprios. Que egoístas. Nada trará os mortos de volta. Pensa-se em Séneca e no estoicismo. Lê-se livros motivacionais. Dalai Lama: dar a outra face, encarar os vilões com compaixão, não lhes conseguir nem desejar bater. Engolir o grito que abanaria Lisboa.  Perdoei, precisei de perdoar os cães quando me mataram o primeiro gato. Mal tinha assimilado a morte do primeiro quando me morreu o segundo. O gato ainda ontem me ronronava na almofada. Tinha a Carminho há quatro anos. O Clint, o primeiro assassinado, tinha dois anitos mas, por ser tão infantil e pedinchão,  parecia ter duas semanas. Estes meus dois amores, que me acompanhavam para todo o lado e não me deixavam mal, porque só desejavam atenção, carinho, festas e petisco, acabaram enrolados em cobertores. Enrolados e despejados num contentor como detritos. Perdi-os.  Nem a uma homenagem tiveram direito. Nem uma flor lhes deixei. Trabalho, vendo livros, escrevo, leio o jornal. Tão importante é ler a recensão sobre determinado livro de autor prodigioso originário da Brandoa. Tão importante habitar terra queimada e coberta de sal. Gostava que algum caridoso me despejasse em cima um balde a transbordar de esterco.  Nem para enterrar um bicho sirvo: faltou-me força num braço e aterrei de joelhos na lama. A auto-comiseração, irmã da culpa, é terrível, serve para que me digam que tenho habilitações para imensas coisas, que a culpa não existe, que fiz o melhor que podia pelos animais. 

2.  Sonhei que o meu tio podão, o mesmo que em menino me enxertava com insultos e pontapés, me ligava para me contar em tom ameaçador que não podia abandonar os meus filhos. Acusava-me ainda de ter abandonado a minha mãe, de a ter deixado morrer. Depois do telefonema do podão, corria atrás dos meus filhos, consciente dos riscos (ser sovado por familiares, ouvir não vales nada, és zero, etc.). Os meus filhos eram dois cães de raça rottweiler que logo ganharam forma humana. Os meus filhos tinham a cara das filhas do podão. Uma das filhas avisava-me que, antes de morrer, a minha progenitora me rogara uma praga: nunca te encontrarás, nem terás ninho, nem quem te deseje. Este sonho surge um dia depois de dois cães, que não consigo odiar sem sentir uma imediata compaixão, me terem roubado uma gata. Estes dois cães mataram-me dois gatos, dois gatos que não eram gatos mas crias minhas. Não abandonei os cães. Hoje, enquanto os passeava no jardim, pensei que sová-los-ia com uma corrente de aço assim que chegássemos a casa. Não o fiz. Os cães estão deitados na cama. Escrevo sentado na cozinha. Quero os gatos de volta, pode ser? Não. A dor escavou-me demasiado fundo no peito, custa-me articular duas frases que façam sentido.  Imagino a morte daquelas criaturas. Às vezes choro, mas nem para chorar estou pronto ainda. Não me comparem com aqueles que afirmam que matariam aquele que lhes matasse o gatinho. Esses não fazem ideia de nada. Deixo-me absorver pelo silêncio. Encontrei ombro amigo na obra de Nietzsche e em romances e novelas que o tempo matou, como é o caso das de Zweig. Reencontrei a minha velha inimiga, a escuridão, e fui tão compassivo que não vejo nada.