smith & wesson .22

velha smith & wesson .22 ela engasga
agarra o dedo no gatilho a cada tiro
o coice fuma, faísca no metal,
olhos se contraem ao som ardido e o tiro
 explode na parede, sopra a cal; 

revolução de 32, a colher
que mexe o chá
num maremoto 

e veio a mim esse revólver
envolvido com seis balas num lençol,
relíquia de um distante
tio-avô 

e veio a mim
           segredo de encerrar a violência
má ferrugem perto do esmaltado           

todos guardam souvenires
rotulados na memória de aventura
ou outra arte tão
                      espúria
e sem dizer conveniente
a noites e fogueiras e conversa
que requentam feitos duros
            agora que o sol lhes parece ―
york a ricardo ― demasiado luminoso. 

Rouge

saindo de lisboa lia um livro sobre lisboa 
sobre os jardins coloniais de lisboa 
aquele café do lado da torre de belém 
sobre o aqueduto e as meninas de óculos redondos 
de lisboa e sobre os senhores que falam francês 
quando em lisboa não se fala francês 

também sobre a procissão das quatro da manhã 
do bairro alto até o cais do sodré 
sobre como meus olhos brilhavam e você dizia 
regarde, le sol est rouge 
sobre como a rua estava tomada de gente dizia 
rouge! rouge! 

percebe as coisas se esfregam de um jeito 
os livros não 
mas o caminho da augusta até o tejo 
e os comerciantes e as drogas que não fazem efeito 
e as lojas de chapéu e as pastelarias 
e a fila para a cidade subterrânea: apenas três dias ao ano 

sobre como meus olhos brilharam quando um rapaz 
já no último dia bem no fim da fila 
quando deveríamos dizer: já não há mais tempo 
lia um livro sobre o brasil e sobre as coisas do brasil 
e sobre o o rio de janeiro do passeio público 

foi então que percebi 
exatamente então que percebi (ou seria o barulho do elétrico?) 
que nunca tinha lido nada sobre lisboa 
que nunca levaria nada de lisboa 
que lisboa para mim seria a mesma coisa que é 

o domingo quando o parque fica aberto 
a forma como o motorista do autocarro me diz pronto já está 
seu sotaque bem longe de um sotaque de lisboa 
ou os nomes 

saber o nome das ruas de lisboa não é saber lisboa 
saber o caminho para o miradouro (e chegar 
ainda com o sol dentro de uma parte da vinte 
e cinco de abril) não é saber lisboa 
como um tipo lendo o livro sobre o brasil não é saber o brasil 
como partir em um par de dias não era estar no brasil 
                                                 era: não estar em lisboa 
                                                 era: não 

como estar no brasil não é ser tropical 
não é ter em casa palmeiras não é discutir futebol 
cherrie, você não sabe o que é o futebol 

hoje suas insinuações de vir me agradam 
muito mais do que a presença por isso 
planejo uma vingança sem precedentes 

esse chão amarelo limpo 
essa decoração azul 
a casa ainda sem móveis 
você dançando bêbado por exemplo 

no jardim abandonado

a Francisco De Matteu

no jardim abandonado
de calmas alvas
camas almas
o passo preto
repousa sobre a neve

o calor a consumir-se
o frio a possuir espaços
vazio virando vozes

terras escavadas
e o túmulo aberto a encher-se da chuva

em San Francisco teus olhos adormecem
o abismo do teu filho em teu colo
e os longos negros pelos dos cavalos

rubrocéuseco
the wind whispers what could have been warm

Conheço apenas três estações e não há

Conheço apenas três estações e não há
ano que não seja coxo – três estações
apenas: a da luz
prolongada, a da luz estiolada
e a do regresso do calor.
Retornam os dias e retornam
os poemas sobre os seus ciclos.
Olá, coração estragado
como um piano deixado ao sol e à chuva,
como uma aurora boreal
sobre a feiúra dos arrabaldes.

A avenida mais imunda é o início
do que chamo de casa: uma fileira
de terrenos baldios com bichos mortos
apodrecendo entre o mato e as pedras;
torres emulando castelos de princesas
ou coqueiros de néon imitando praias
na entrada de motéis; carcaças de carros;
depósitos de materiais de construção
deixados ao léu; o entardecer
regurgitado por máquinas fumarentas – 
a luz crua, escassa, puída
que resseca narizes e gengivas
e arreganha caninos que sentem fome. 

O meu reino é uma legião
de cavalos magros, de prostitutas
de braços como gravetos e de rapazes
aos quais a noite vêm
e deposita ovos escuros em seus peitos abertos.
Olá, inverno súbito nos estertores
de uma sexta-feira. Faz frio e o metal
das placas de trânsito e dos carros estacionados
é o fio de uma espada gelada
a separar entranhas e a torturar o tédio.
Por vezes chove e um bueiro
transborda e retornam à sarjeta
lixos e ratos. Por vezes
dorme-se se com o coração acariciado
por um sussurro brando, por uma garoa,
e instala-se a suspeita
de uma manhã, de um céu 
lavado estendido sobre a infinitude 
dos subúrbios calcinados.

Onde cair morta

Fui uma criança feliz, possuidora de suas solidões -, assim dizem os leks quando entram a pensar em voz alta sob os toldos dos bares. 

Agora, no entanto, e o senhor certamente convirá, minha situação é deplorável. Decresço talvez da espessura de um tule, um barbantinho deveras penitenciado, e todos concordarão já não sou a mesma tipa que… 

contudo 

onde os meios de aplacá-los? 

Dão-me a entender continuamente que o pouco que peço da vida não é absolutamente razoável. Dizem também que não sofro, que não há razão, que se não o admito é por volúpia e perversidade. Então, não sofro. Não sofro. Mas também não sei mais o que fazer. 

Passo os dias pateando com a barriga. Assim não se vai muito longe, mas insisto – não reconhecerei essa cidade. De resto, já fiz concessões demais. Há limites para tudo. 

Não bastou um só marinheiro. Houve um mar rebocado de branco, pensei, e fui abaixo. Quando voltei para a minha mesa, contava com certa ancestralidade que antes não tinha. Os da casa, naturalmente, não souberam como reagir. 

Toquei para o quarto me lustrar.

Há sempre graves consequências para portas e janelas, e o senhor meu pai certamente convirá, meu trabalho tem que ver em sua essência com descuido.

Eis a única concessão que não me disponho a fazer – não reconhecerei os seus parques, os seus cães, os seus espelhos – não os reconhecerei. O meu trabalho talvez não interesse a ninguém – é uma hipótese, aliás, bastante cabível –, mas eles... ora, eles...

temo que não se deixem aplacar nem mesmo pela minha ausência

Sei que breve darão por encerrada a minha estadia aqui – impossível prever que pretextos, que perjúrios, ocupo-me disso com todas as fibras do meu ser mas continuo sem compreender o que exatamente se espera de mim.

O que posso dizer é que a atmosfera torna-se cada dia mais rebarbativa. Dentro em breve encontrarão algum motivo para me desalojar; minhas economias acabaram; não tenho maisninguém no mundo a quem recorrer. O senhor não me receberia em sua casa, talvez em junho, julho, o senhor não me faria a caridade de um cantinho para organizar os pensamentos?

penso que 

Prometo ajudar nas pequenas tarefas da casa, acompanhar os seus meninos até o colégio, se é que já não estão na universidade, os meninos. Eu não sei. Tentarei, tentarei me envolver, naturalmente, dentro dos limites que o senhor achar por bem colocar. 

Além do mais, parece-me que há muito postergamos um íntimo acerto de contas.

Eis, portanto, uma bela oportunidade que o senhor me daria de conhecê-lo um pouco melhor, uma oportunidade talvez de trocarmos raízes, apesar de todos esses anos que passamos alheados um do outro.

Sou a primeira a reconhecer que fiz um casamento infeliz, que desperdicei os melhores anos de minha vida com empreitadas absurdas, irreais. Tenho presente o tanto de desgosto que dei àqueles que só queriam o meu bem, e que minha reputação neste Eixo não é das melhores. Não serei merecedora, contudo, de uma segunda chance? 

O senhor certamente convirá em que trilhou caminhos os mais tortuosos até encontrar a felicidade doméstica. 

Não serei merecedora, contudo, de uma segunda chance?

Mas o senhor me recusaria

Mas o senhor não me recusaria a caridade de um canto para passar o inverno.