O casaco

O casaco estava lá mas ele não. Estava à espera de qualquer coisa, um som, ou a sensação que se experimenta quando um tendão se rasga. Era aquilo ali e agora, mas não era bem isso. Assim, tão banal como uma gaveta de roupa que não se compõe porque faltam duas camisas. Atirou as tralhas para dentro da pasta, o moleskine, os livros, o computador. Na sua imaginação lírica, a parte mais apelativa da sua imaginação, pensava que devia haver uma reacção física que tornasse isto objectivo, por exemplo, gritar ou sangrar do nariz. 
Reage, mulher, pensou. Pensou, levanta-te!, e sentou-se no sofá. 
Apoiou os cotovelos nos joelhos. Nada. Então daí entendeu. Sacanice. Estava à espera disto. Qualquer coisa em modo Cassandra, de longe, muito antes, eu conheço este cheiro. E, no entanto, estava ainda à espera de qualquer coisa vinda de fora que pudesse traduzir a mudança. Torná-la real. Um acontecimento pode ocorrer sem que cheguemos a ver nenhum gesto, muitas coisas se fazem sem o sangue, até isso, era uma frase naquele livro que tinha andado a ler a semana toda. Até isso. Uma coisa pode acontecer sem que nada no mundo a manifeste. Sem que haja qualquer testemunha do seu movimento. Viste? Não vi.

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A pausa

Não são previsíveis mudanças essenciais. Aceita-se um rumo definitivo e não se imagina o que possa gerar perturbação. Ao alterar-se o batimento cardíaco esperas que o motivo não exceda o susto. Agradeces a estabilidade ainda que isso implique o fim da emoção. As emendas passam a ser pontuais, as condutas estão todas mais ou menos alinhadas umas com as outras e mesmo falar em plural, condutas, pode ser excessivo. Lembro-me do dia em que comecei a tomar boas decisões. Não o vou recordar agora. Esse momento merece uma atenção particular. Mas uma das boas decisões que tomei foi, simplesmente, ser prático. Era evidente que devia cortar com algo do meu passado porque isso me ajudaria a manter o controlo. No trabalho que me dava o sustento resolvi, por exemplo, encontrar o meu lugar. Fiz o correcto, gerei confiança em quem devia e num período de tempo mais curto do que era regra promoveram-me a motorista de um dos camiões do lixo. Para a dureza do trabalho, ainda assim, estive demasiado tempo como peão, o nome que damos a quem anda a pé, com o carrinho e a pá e a vassoura. Sabia que quanto mais cedo me habituasse menos resistência oporia e menos duro seria e foi isso que fiz. E então promoveram-me a motorista. Trabalhava todos os dias das 11 horas da noite às 6 horas da manhã. É de um desses turnos que quero falar. De uma dessas noites longas e frias mas também repletas de companheirismo.

Uma das razões que me permitiram ascender a motorista – penso – foi nunca me ter metido nos sindicatos. Não tenho sequer um carácter inconformista – e não o digo com orgulho. Uma das vitórias dos sindicatos foi conseguir uma pausa de 30 minutos a meio do turno, uma pausa oficial. A direcção aceitou impondo a condição única de que os horários de trabalho avançassem quinze minutos. E assim passamos todos a sair quinze minutos mais tarde. O pessoal dos camiões era fixo e eu trabalhava com dois colegas. Durante a pausa um deles tinha por hábito encontrar-se com outros companheiros escalados umas ruas mais a norte. Às vezes dava-lhe boleia e ficava o Carlos comigo, estacionávamos ao lado do depósito de água. Ligávamos o rádio e ficávamos ali a escutar as chamadas telefónicas que faziam ouvintes de um programa nocturno. Se não for por obrigação, não há muitos motivos que te levem a estar acordado às três da manhã em casa, e nenhum, decerto, chega a ser remotamente edificante. Algumas chamadas eram hilariantes e deixávamos quase sempre o rádio naquela emissora. Comentávamos as histórias e era realmente divertido. O Carlos punha as botas em cima do tabliê e descascava amendoins atirando as cascas pela janela.

Uma dessas noites apareceram uns miúdos. Não deviam ter muito menos que a idade do Carlos. Já os tinha visto ao longe: dois rapazes e duas raparigas. Empurravam-se, depois abraçavam-se, davam pontapés no que encontravam pela rua. Quando chegaram perto do camião começaram a apontar e um dos rapazes colocou-se exactamente à nossa frente, rindo-se, fazendo caretas, apertando o nariz e depois movendo a mesma mão diante da cara. O Carlos subiu o volume do rádio mas o rapaz não desistiu e os outros três, provavelmente pisando o monte de cascas de amendoins, riam-se desde o passeio. Por fim, o Carlos abriu a porta e de um salto desceu do camião. Eu segui-lhe o movimento e também desci. O rapaz estava agora em frente ao Carlos gesticulando e insultando-o com todo o tipo de apodos. Avançou um passo e o rapaz empurrou-o sem que Carlos oscilasse um só centímetro. Sabia que aquela pausa estava condenada e não me pude mexer. Carlos respondeu ao empurrão com um murro certeiro no peito e toda a força do impacto se concentrou no rosto do rapaz. Tinha lido algures que uma pancada no peito pode ser mais mortífera que na cabeça e foi nisso que pensei. O rapaz caiu ao chão e não mais se levantou, as raparigas arrojaram-se ao corpo inerte e gritaram. O segundo rapaz estava ao telefone tentando precisar o sítio onde nos encontrávamos. Enquanto Carlos desaparecia rua abaixo lembrei-me de alguns comentários que proferira ao escutarmos uma ou outra chamada telefónica. Parecia que ainda o estava a ouvir. Não os vou aqui lembrar; também os silenciei na altura do julgamento. A dada altura perguntaram-me se em alguma ocasião tinha sido necessário admoestar ou repreender Carlos. Respondi que não, nunca, e essa é a verdade absoluta. Não me passou pela cabeça duvidar um só momento do que conhecia, do que sabia do meu ex-colega. Talvez ele apenas não tivesse tido ainda a sorte de tomar as boas decisões. Talvez ainda fosse muito jovem. Desejei que todos nascêssemos ensinados. Desejei-o com fúria.

Pela água levará serras de fogo

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"A minha vingança seria conquistar o mundo", contei ao doutor. A minha vingança contra aquele tio que me esbofeteara, levando-me a correr, correr e a explodir no meio de uma vinha, esmagando cepas numa noite de cacimba, seria cravar uma bandeira na lua com o meu nome.  A vingança começara a meio da adolescência, com o êxodo rural e com a procura do homem novo através do cosmopolitismo e da universidade e dos livros e das mulheres vestidas com uma roupa de papel que se pudesse tirar à dentada. Seguiram-se o mestrado e o doutoramento e as bolsas e a escrita. Ter o que eles não tiveram, a obsessão por ter o que nenhum parente tinha tido, a vingança transformada em conquista do mundo. Contei ao doutor que o doutoramento não me chegava, que ser publicado por uma editora como a Penguin, sonho de uma vida, acabava por ser um sonho pequeno, pois a vingança só  se consumaria assim que estacasse a bandeira com o meu nome fora deste planeta. "Não tens condição social para vestir camisas". Que interessa o que diz um tio? O desejo de conquistar o mundo nascera em mim devido aos biqueiros com bota de cowboy envernizada desferidos por um parente com tiques de tirano. Confessei ao doutor que ainda desejava conquistar o mundo mas que aquela vontade de me vingar ia-se esfumando com o passar dos anos. Ouvir a história de um taxista octogenário que trabalha para pagar os tratamentos de uma filha a morrer de cancro não nos extinguem a dor — a nossa dor é egoísta, não se apaga. A nossa dor não se esfuma nem que vejamos alguém morrer à nossa frente. Sofremos por nós próprios mas o taxista comove-nos. Foi isto que disse ao doutor. Sofro por mim próprio. Perguntei-lhe se seria egoísta. Ele respondeu que era defensivo, não egoísta, e que por isso se tornava necessário percebermos quais as diferenças entre as vivências e as fantasias que faziam com que me custasse mais a suportar a dor no presente do que na altura em que existiam proibições como a toma de banho diária e em que os ratos guinchavam no sótão. Custa lidar com essas vivências, fantasias talvez, fantasias que requerem três buchas de venlafaxina e outras duas de um remédio que custa a lembrar por causa dos actos falhados, o outro remédio, o rivotril. "Qual o problema de ir trabalhar para a construção civil com doze anos?" É difícil responder a questões tão simples como as que o doutor me coloca. Fico boquiaberto, chocado com a auto-comiseração. E o doutor de olhos fechados, fingindo escutar-me com atenção ou dormitando, não ajuda vê-lo de olhos fechados ou de testa franzida ou trocando o meu nome por Pedro, sempre Pedro, como se eu tivesse cara de Pedro. Eu, um eu que vive fora do tempo e é o mundo inteiro desde que descolou como um míssil daquela aldeia. As respostas não existem, se existissem seria muito fácil evitar o caos, a desordem, o pânico ou os cortes nos pulsos. Há uns tempos, caminhava sozinho pela cidade vazia, recordava a mota de alta cilindrada do meu tio e o orgulho com que ele se exibia ao domingo, dia de calças levis, de blusão de cabedal e de voltinha pela terriola com a Kawasaki e a sua Carla de rabiosque gorducho. Caminhava sozinho e vi um homem atirar-se ao rio e afogar-se. Permaneci quieto, vendo-o afogar-se, assistindo à sua morte como se assistisse à minha morte ou à morte de algo no meu interior. “Qual a sua ideia de sucesso?” Esta questão do doutor foi-me posta dias depois de assistir ao suicídio do homem no rio. Parte de mim já não ambicionava chegar à lua. “Sonhar, dormir bem, aceitar-me para aceitar os outros, cuidar bem dos animais, amar a mulher, mostrar os dentes quando me apetece dar uma gargalhada”, respondi, sabendo que não tinha acertado na resposta, que não se acerta na resposta nestas coisas da psiquiatria, mas respondi pela primeira vez como se fosse uma criatura com os mesmos direitos das outras.

 

Alfa

Um rapaz e uma rapariga. Ele chora. É um Domingo à tarde. O rapaz continua a chorar. A rapariga parece que lhe diz algo ao ouvido. O rapaz sorri. Continua a chorar. Chegam à linha. O comboio ainda não. Ele abraça a rapariga. Ela retribui com um beijo na boca. Não pára de chorar. Sim. Isto é uma despedida. O comboio aproxima-se. Eles abraçam-se. Agora mais forte do que a primeira vez. O comboio aproxima-se cada vez mais. Outro abraço. Mais forte ainda. O comboio pára. Ele olha para ela que olha para ele. Sobe para o comboio. É um Alfa. Continua a chorar. As portas fecham-se. Ele diz que a ama. Ela que o ama também. O comboio inicia a sua marcha. Ele caminha com o passo apressado. Tenta acompanhar o comboio e diz amo-te, amo-te. Ela? Não sei. Não consigo ouvir daqui. Ele continua. Agora corre. Amo-te. O comboio deixa a estação. Ele chora. Leva a mão à cara. Limpa as lágrimas e diz amo-te outra vez.

Inevitável


Não sei como aqui vim parar. Dói-me a cara do lado esquerdo, sinto-a inchada e mal consigo abrir o olho. Não me recordo de nada. Estou sentado numa cadeira. Tenho as mãos atadas atrás das costas. Sinto os pulsos em ferida. Ardem. Os pés estão atados. Sinto-me molhado. Cheiro a mijo. A sala onde me encontro é ampla. Parece um velho armazém. Existem janelas. Não sei quantas, quase todas com vidros partidos. É noite. Ouço vozes ao longe. Falam numa língua que não consigo identificar. Falam alto e repetem muitas vezes a mesma palavra. É uma palavra que fere quando se ouve. Tento libertar-me. Ouço passos. Consigo distinguir ao longe, na escuridão, dois corpos. Um deles aproxima-se. Diz qualquer coisa que não compreendo. Aponta-me uma arma à cabeça. Dispara.