El despecho


     Te despiertas con un sobresalto cada vez que mi mano acaricia tu pecho al amanecer. Yo no me enfado porque des media vuelta en la cama y continúes durmiendo. Hace años que actúas así y desconoces que está próximo el día en el que, cuando abras los ojos tras uno de tus sueños reparadores, mi mano estará dando calor a un rostro más agradecido al tacto de mis dedos. Y tú podrás seguir durmiendo tranquila.

Blow Up

Pedro sofreu o acidente que o deixou coxo em Dezembro, e a sua esposa, se me recordo bem, teve machucados ainda mais horríveis. Portanto, o natal foi pouco comemorado: após uma ceia breve e saudações à meia-noite, todos foram dormir. Eu estava sem sono e pensei em pegar o carro e dar uma volta pela cidade, talvez ir até o Radio City, mas logo desisti.
Na tarde seguinte liguei para um amigo e combinamos de nos encontrar no salão de bilhar. Assim que iniciamos a disputa, começou a chover. Junto ao balcão, o homem que administrava o lugar jogava um estranho jogo de cartas com outro sujeito. Às vezes esse outro sujeito gritava. Perto deles, comendo de um prato que recendia a gordura antiga, estava sentada uma adolescente – rosto claro ungido pelo suor e pelo calor que se emanava da chapa de grelhar hambúrgueres, os seios salientes (talvez engordurados também) sob o fino tecido da blusa, cabelos à altura do pescoço. À medida que a chuva ficava mais forte, a madeira dos tacos tornava-se pegajosa e não conseguimos nos divertir. Antes do crepúsculo eu já tinha voltado para casa . Quando a noite se insinuou e parou de chover, veio, dos fundos do quintal, um cheiro de bananeiras molhadas.
Nos dias que se seguiram, eu e Cartago voltamos a perambular pela cidade velha. As lojas – após a alegria natalina – estavam todas fechadas. A prefeitura ainda não tinha dado início aos trabalhos de limpeza, e as ruas jaziam atulhadas de papel picado e jornais de propaganda. Chovia forte quase todas as tardes, mas depois vinha o sol, e ascendia um mormaço doente e preguiçoso. A impressão que se tinha era de que a água estava estagnada há não sei quantas semanas e por isso apodrecera.
Na última tarde do ano também vagamos pelo centro: primeiro uma caminhada pelas ruas quietas e ensolaradas (aqui e ali explodiam bombas, e ao mormaço fundia-se o cheiro de pólvora), depois algumas partidas no salão de bilhar e por fim uma visita ao shopping, que tinha todas as lojas fechadas e, na praça de alimentação, as cadeiras empilhadas. Era a última sessão de cinema do ano e havia poucas pessoas na sala de exibição. Sentámo-nos e, enquanto esperávamos o filme, vimos chegar um grupo formado por uma mulher e duas raparigas de quinze ou dezesseis anos. As meninas não pareciam ser irmãs ou primas – o tom da pele, a cor dos cabelos, os ossos do rosto, as sombras ao redor dos olhos, os gestos: nada indicava parentesco e o único aspecto que tinham em comum era uma magreza desengonçada (era como se o silêncio e a melancolia – uma tristeza apenas adivinhada, apenas imaginada – tornassem o ar mais espesso ou rarefeito; como se as duas meninas, ou melhor, como se os seus dois corpos magros ainda não estivessem acostumados a variações na densidade das horas).
Quando saímos do cinema e ganhamos a rua, o crepúsculo ia pela metade. Tinha sido uma tarde sem chuvas e um sopro quente varria os papéis e as copas das árvores. Bombas ainda explodiam aqui e ali (agora com mais frequência). Do alto dos postes descia uma luz que, misturada à poeira do entardecer, assumia um tom alaranjando, enquanto o céu poente oscilava entre matizes pálidos e de um azul muito escuro. Por quase uma quadra, a mulher e as meninas caminharam diante de nós, e durante todo o tempo tivemos a impressão (agora também em relação à mulher) de magreza destroçada, aniquilada. Era como olhar para o retrato de alguém – um retrato tirado durante um momento de introspecção – e adivinhar uma morte triste, talvez por suicídio.

Sideral

Estando o termómetro avariado a chegada do tempo quente prova-se, um ano mais, através dos engarrafamentos na marginal. Levo três t-shirts e dois calções. Roupa interior dobrada e acomodada. Acabo de ganhar um prémio que dá para passar os meses de estio em Zagora, apenas interessado em mim e o resto que se lixe. Uma t-shirt a enxugar, outra vestida e a terceira à espera da sua vez.

Quantos serão capazes de uma ousadia como a minha? Estava praticamente sem dinheiro e devia conseguir o bastante para comer, pagar as contas e todas essas necessidades que fazem de ti um gajo responsável e maduro e também totalmente refém dos humores alheios. Não foi o que fiz, pensar em pequeno. Nunca faço o que é esperado. Dei várias voltas a um bairro que fica perto da estação, onde os bares cheiram a mofo e a fritos, onde param muitos senegaleses. Dei umas quantas voltas ao quarteirão. Não fui a nenhum casino. Nota após nota e logo moeda após moeda, depositei-as nas ranhuras correspondentes de uma tragaperras, e os velhos e as perras olhavam e eu continuava na minha. Não parava de largar dinheiro. Primeiro de um envelope que a minha mulher me tinha dado, o ordenado da quinzena. É cozinheira. Devia agradecer ver-se livre de mim. Depois da minha carteira e finalmente das calças, as últimas moedas saídas directamente dos bolsos traseiros das minhas calças gastas e confortáveis. Olhei em redor; ganhava, e depois? Bastava de expectativa. As moedas caíam na bolsa de canguru da máquina. Pedi um saco de plástico. A máquina estava atestada, os primeiros sons, ruído metálico, reproduzido sem variações, monótono, proporcionado a quem estivesse à volta, o som da inveja; olhei triunfante, esforçavam-se por ignorar-me, à altura dos meus joelhos, gajo alto, tombavam as primeiras moedas de dois euros; pareciam pelar as paredes onde eram vertidas, saltavam chispas, e moedas caíam sobre moedas e finalmente o som abafava-se. Pedi segundo e terceiros sacos, preferia reciclados, por favor, já me punha arrogante com o dinheiro repentino. Só havia de plástico grosso. A miúda, detrás do balcão, estendeu-me o saco sem me prestar a menor atenção. E não parava de jogar. Digo jogar para facilitar o entendimento bacoco, estava finalmente a recuperar o que me pertencia, apenas resgatado de um modo extraordinário. Aquilo que havia de ser meu, às mãos me havia de chegar, dizia o Saramago depois do Nobel. Também nunca perdi essa certeza e quando entrei naquele covil adivinhava a hora; porque não merecia sorte diferente. Cheirava a mofo, a desleixo, o ambiente que respirava sem cuidados. Uma vez entrei no casino e andei tenteando, atemorizava-me com os jogadores concentrados e em silêncio, as luzes a piscar, os sons agudos das máquinas multiplicavam-se em todas as direcções, quase perdia o equilíbrio não fosse um banco alto; o que se passou no casino foi de uma avareza inclassificável; mais tarde senti nojo, comportei-me como se a todo o momento o céu se abatesse e precisasse de protecção que só podia ser adquirida com o pouco que sobrava depois de pagas as contas e alimentado o gado, se alguém espera alguma recompensa é necessário abandonar tudo de uma vez e sem olhar para trás.

Bagagem de mão onde não cabe mais que o tecido suficiente para tapar o peito e as costas. Cobrir metade dos braços e metade das pernas. E depois volto. Para onde irei? E viver como sempre vivi, como sei viver, antes da tragaperras começar a bolçar moedas. Sobrevivendo e forçando o momento sideral que de novo altere a sorte da forma mais transitória possível. Porque eu sou grande e mereço que a fortuna seja piedosa, riqueza caída do céu, apenas um passo à minha frente.

O mais triste sou eu

Disseste que me vias como a pessoa mais infeliz de Lisboa e que me ajudarias a sair do buraco e que conquistaríamos o mundo, tu com a tua força e eu com a minha luz por revelar. Acreditei na tua energia durante horas, dias, não sei durante quanto tempo, acreditei que me tirarias do poço. Corremos e sorri, coisa rara, sorri contigo naquele triste fim de verão. Um verão ainda assim diferente por no meu peito existir uma esperança de fugir, de apanhar um avião e desaparecer para um sítio onde ninguém me conhecesse, um sítio onde eu não me conhecesse e pudesse renascer e transformar-me em fogo e raios de alegria. Pensava em ti desde aquele jogo de futebol transmitido em ecrã gigante no jardim, desde que me dirigiste aquele olhar que desvalorizei por pura timidez, por me achar o mais feio. Mirava-te de esguelha em qualquer evento em que estivesses presente, aproveitava qualquer oportunidade em que estivesses distraída para te contemplar. "Vem comigo", disseste-me certa vez. Deste-me a mão, subimos a rua, entrámos em tua casa. O meu casaco ainda guarda o teu perfume, meses depois, o teu cheiro na minha roupa, cheiro que evito para não me afundar mais. Deste-me a mão. Só os dois e o escuro e o teu cheiro e os teus braços a puxarem-me. A minha estupidez não tem limites, afasto aqueles que me amam. Cruel destino que me fez largar-te e mentir-te e desaparecer na noite escura e cobrir-me de silêncio. Fui hipócrita naquela tarde em que afirmei que precisava de me descobrir, não me tencionava descobrir mas voltar aos velhos hábitos, à vidinha, às pisadelas. Os teus abraços e pedidos para que te olhasse nos olhos e negasse o que sentia, o teu choro quase animalesco, na altura nojento, sei lá porquê, nojento como eu me sentia, o teu choro e o meu peito apertado, eu sabendo que aquilo era um erro, que talvez tivesse desperdiçado a última chance de mudar. Fiz-te mal, soube que por minha causa tiveste vontade de morrer. Todo os dias penso em morrer e recordo aquela vista linda da tua casa e aqueles dias maravilhosos que nunca passaremos juntos. Depois tenho ideias erradas, como pedir que me envies uma fotografia tua ou sentar-me à entrada do teu prédio ou telefonar-te ou escrever-te ou procurar-te até te encontrar ou ficar deitado na cama pensando nos sonhos destroçados pela cobardia e nos novos sonhos que também a cobardia um dia destroçará ou implorar de joelhos para que me perdoes, para que não esqueças aqueles dias e me recordes como aquela pessoa envergonhada para pedir um copo de água e ao mesmo tempo vaidosa o suficiente para se despir no meio da tua sala e fazer flexões como se fosse o maior garanhão do pedaço. 

 

O corpo diz o que as palavras não conseguem (ou não querem ou não podem)

© sonja valentina

© sonja valentina

Finalmente, beijámo-nos. 

Há muito que havia trocas de olhares e de sorrisos, toques cúmplices e abraços demorados, conversas que apenas não duravam indefinidamente porque eram sempre interrompidas por alguém. Há muito que havia vontade. Há muito que o primeiro beijo era imaginado e antecipado, desejado, fantasiado. Mas apenas hoje aconteceu. 

E foi uma decepção. Quando nos separávamos, ainda sentia o sabor da sua saliva na minha boca; mas o que pensava era isto: será possível anular um beijo? Como voltar atrás, como retirar um beijo que demos a alguém?

Não sei o que esperava; mas julgo que sempre acreditei que o primeiro beijo que dou a alguém deverá ser mágico, deverá ser insuportavelmente intenso e transcendental; deverá fazer-me tremer, fazer-me voar, deverá fazer-me morrer e ressuscitar em simultâneo. Talvez seja excessivamente romântica, talvez seja excessivamente idiota; mas acredito que um primeiro beijo deverá ser tão forte que me faça sentir que, após esse beijo, nada mais será igual, algo mudará de forma subliminar mas inquestionável e irreversível. Contudo, nada disso aconteceu; o nosso primeiro beijo foi, simplesmente, murcho. Tão murcho que desejei apagá-lo, eliminá-lo; para que depois pudesse haver uma segunda tentativa de primeiro beijo? Ou para que o pudesse esquecer para sempre? Não importava, queria apenas retirar algo que dera.

O que me decepcionou mais foi a sua apatia; um beijo sem paixão, sem amor, sem desejo, sem voracidade, sem desespero, sem fome; apenas algo rotineiro e eficiente, algo necessário, algo agradável; na verdade, apenas mais um beijo (pior: apenas mais um toque). Foi isso que me decepcionou: perceber que, para ele, um beijo, cada beijo, não é algo único e irrepetível, mágico, sagrado. Perceber que, para ele, um beijo pode ser apenas uma rotina. Perceber que, para ele, o primeiro beijo pode ser tão indiferente e banal, tão mecanizado, como os beijos de um casal que vive junto há cinquenta anos e não se ama há quarenta. Porque foi algo semelhante a isso que senti: o seu beijo pareceu-me o de um velho que já deixara de acreditar, desejar, sentir.

E o que fazer depois de um beijo assim? O passado não se apaga, é impossível anulá-lo ou cancelá-lo. Contudo, o pior é a incapacidade de apagar a memória; afinal, o passado talvez seja inofensivo e inócuo, o que nos perturba e destabiliza é a memória. Mas como impedir que o passado, ou a memória desse passado, nos condicione o presente, nos faça infelizes agora? 

Recordava a forma mole como a sua língua acariciara a minha e perguntava-me se, apesar da completa inaptidão do seu beijo, aquele poderia ser o homem da minha vida. E se estivesse a permitir que um mau beijo condicionasse todo o meu futuro? Afinal, até ao momento em que os nossos lábios se tocaram acreditara (ou melhor, fantasiara) que aquele homem poderia ser o meu futuro. E se o beijo tivesse sido apenas um erro momentâneo, um equívoco passageiro? Já se sabe que, por vezes (muitas vezes), o corpo diz aquilo que as palavras são incapazes de transmitir; deveria, por isso, escutar o que o seu corpo me dissera. As suas palavras tinham-me comunicado desejo e amor (sim, amor), enquanto o seu corpo transmitira-me rotina e apatia (na verdade, o seu corpo gritara-me: “foge”). Mas será que os corpos não se enganam, por vezes? Será que apenas as palavras são ilusórias e ardilosas? E os corpos, não?

Porque deveremos sempre acreditar nos corpos? Será que eles nunca mentem?

O beijo aconteceu ontem ao fim do dia, no escritório. Separámo-nos e durante a noite, pela primeira vez em muito tempo, não trocámos mensagens. Dormi mal, acordei mal. Apeteceu-me fugir (o que é um desejo estúpido, já que a decepção e a dúvida me perseguiriam, pois estão dentro de mim, são parte de mim); mas, neste momento, aguardo que a porta do elevador abra; entrarei no escritório e ele estará lá, à minha espera. Não sei o que acontecerá; o que dirão os corpos? E as palavras que acabarão por ser ditas que significado verdadeiro terão? Não sei mesmo o que acontecerá, apenas que no princípio haverá um olhar.

E tenho medo.