Sideral

Estando o termómetro avariado a chegada do tempo quente prova-se, um ano mais, através dos engarrafamentos na marginal. Levo três t-shirts e dois calções. Roupa interior dobrada e acomodada. Acabo de ganhar um prémio que dá para passar os meses de estio em Zagora, apenas interessado em mim e o resto que se lixe. Uma t-shirt a enxugar, outra vestida e a terceira à espera da sua vez.

Quantos serão capazes de uma ousadia como a minha? Estava praticamente sem dinheiro e devia conseguir o bastante para comer, pagar as contas e todas essas necessidades que fazem de ti um gajo responsável e maduro e também totalmente refém dos humores alheios. Não foi o que fiz, pensar em pequeno. Nunca faço o que é esperado. Dei várias voltas a um bairro que fica perto da estação, onde os bares cheiram a mofo e a fritos, onde param muitos senegaleses. Dei umas quantas voltas ao quarteirão. Não fui a nenhum casino. Nota após nota e logo moeda após moeda, depositei-as nas ranhuras correspondentes de uma tragaperras, e os velhos e as perras olhavam e eu continuava na minha. Não parava de largar dinheiro. Primeiro de um envelope que a minha mulher me tinha dado, o ordenado da quinzena. É cozinheira. Devia agradecer ver-se livre de mim. Depois da minha carteira e finalmente das calças, as últimas moedas saídas directamente dos bolsos traseiros das minhas calças gastas e confortáveis. Olhei em redor; ganhava, e depois? Bastava de expectativa. As moedas caíam na bolsa de canguru da máquina. Pedi um saco de plástico. A máquina estava atestada, os primeiros sons, ruído metálico, reproduzido sem variações, monótono, proporcionado a quem estivesse à volta, o som da inveja; olhei triunfante, esforçavam-se por ignorar-me, à altura dos meus joelhos, gajo alto, tombavam as primeiras moedas de dois euros; pareciam pelar as paredes onde eram vertidas, saltavam chispas, e moedas caíam sobre moedas e finalmente o som abafava-se. Pedi segundo e terceiros sacos, preferia reciclados, por favor, já me punha arrogante com o dinheiro repentino. Só havia de plástico grosso. A miúda, detrás do balcão, estendeu-me o saco sem me prestar a menor atenção. E não parava de jogar. Digo jogar para facilitar o entendimento bacoco, estava finalmente a recuperar o que me pertencia, apenas resgatado de um modo extraordinário. Aquilo que havia de ser meu, às mãos me havia de chegar, dizia o Saramago depois do Nobel. Também nunca perdi essa certeza e quando entrei naquele covil adivinhava a hora; porque não merecia sorte diferente. Cheirava a mofo, a desleixo, o ambiente que respirava sem cuidados. Uma vez entrei no casino e andei tenteando, atemorizava-me com os jogadores concentrados e em silêncio, as luzes a piscar, os sons agudos das máquinas multiplicavam-se em todas as direcções, quase perdia o equilíbrio não fosse um banco alto; o que se passou no casino foi de uma avareza inclassificável; mais tarde senti nojo, comportei-me como se a todo o momento o céu se abatesse e precisasse de protecção que só podia ser adquirida com o pouco que sobrava depois de pagas as contas e alimentado o gado, se alguém espera alguma recompensa é necessário abandonar tudo de uma vez e sem olhar para trás.

Bagagem de mão onde não cabe mais que o tecido suficiente para tapar o peito e as costas. Cobrir metade dos braços e metade das pernas. E depois volto. Para onde irei? E viver como sempre vivi, como sei viver, antes da tragaperras começar a bolçar moedas. Sobrevivendo e forçando o momento sideral que de novo altere a sorte da forma mais transitória possível. Porque eu sou grande e mereço que a fortuna seja piedosa, riqueza caída do céu, apenas um passo à minha frente.