janeiro

exercício: rodear de qualquer forma a hora da partida
deixando de parte o momento em que os outros se afastam

recordar: não pedi para ser pontual nem para sufocar com a multidão

ansiar por dezembro não deixa nada por adivinhar nem ninguém no encalço
as horas envelhecem e espero que todos os outros partam
deixo-me ser janeiro enquanto houver quem prefira correr até ao final dos dias

Peso líquido

Inquilino na casa
Suspeita, me convenço
Aos poucos
De que, até ver,
Não terá isto passado
De palavras se jogando
À melhor de uma
Delas, a
Estraçalhando
Até perder os sentidos.

Se asseguram aqui
Serviços mínimos. Inventando
Afinal, formas e sinais
Vitais.

Pode
A tensão absoluta
Da verdade, espantar
A origem do olhar?

O engano a tracejado,
Sinalizado de invisível,
No limiar de toda expressão,
Disposto nas entrelinhas
Da coisa pensada.

A solidão não é flor
Que se cheire,
Nem se dá por ela
Ao olhar, é sim
A fria maioria de um
Coração claro
Partindo a direcção.

A natureza
Desta natureza, é imagem
Fora de forma,
Extravagante mão
Quase firme,
Em parte lume
Em toda a parte.

O erro, sério, ainda
Assim postiço, é implantado
Na boca materialista,
Beneficiando em vida, de algum
Corpo perigoso, intruso,
Com princípio
Sem fim.

Dirigido, o objecto
É parte do problema e
Padrão do hábito.

Alguém exagerou, assim
Dizendo, o lugar de olhar,
O lado sintético,
O grau contrário,
De tudo determinado.

Pouco mais longe é
Do motivo a disposição
Integral do texto
Entregue um nada
Aos impulsos da forma. Negativo
Aberto à mão,
No paramento da existência.

Não entra aqui
Luz natural seja
A hora qual ela for,
Em mim enfraquecendo
As paisagens.

Lábios armados
De inocência, residindo
À pele
Na longa multidão
De tons tentados.

Assumo. A intimidade do vocábulo
Repugna, dilacera o mais
Vulgar no espaço
Sóbrio do verso.

Percepções insignificantes,
Consequências
Da intenção.

Enquanto pedras, acreditamos
Para lá do mundo
Matemático. Nada
Pode ser verdade
Inquestionável.

O silêncio é um canto
Estreito, no conforto
Da rua. Vagueamos
Pela espessura mínima
Do céu, aos contrários.

Sobre a fé, há toda
A nomenclatura da neurose,
A negação
De todas as nações, um erro
Encantador. Com belas palavras
O medo canonizou
O perigo no mundo. O maculando
Impressivamente, de impressão
Digital.

Em mudando a hora,
É tempo de
Interrogar os vestígios
Desse animal
De pó. Há
Quem lhe chame
Instinto.

Um conceito entendido
Pelo objecto.

Sacrificava o destino por
Algum brinquedo herdado
De outra existência.

Em profundidade
Uma imagem sofre
Seu grão,
Seu encantamento
Ao ruído, aumentando
Sua obediência
À vida.

Um lume
De fracassos.

Inverter num Deus
Doentio,
A armadilha
Da sua forma
Exacta.

De insuportável grau,
O eco de um
Homem da música
Conformado pela
Sujidade das notas,
Se expressando por
Admirável degeneração,
Se tocando a si
Mesmo.

Estamos acordados para
O instinto
Do suicídio.

Os poetas
Podem mentir
Com as mãos,
Mas nunca sobre
A múltipla compreensão
Das condições adversas,
Sintagma climactérico,
Desta nova realidade
Proposta. Lançam pois,
Contra a ousadia
Da seriedade, a mais volátil
Das armas, dando sua palavra
De honra.

Demasiado; Mano-a-mano

Demasiado

 

O amor é o amor.

3 horas a assar Douro afora,
Nick Cave como leitmotiv,
num setembro quente e negro.
No futuro não deviam haver chuvas de setembro.

Primeira incursão pelo quarto alto
de cassetes gastas e solidão de gesso,
demasiado para ti, suponho.

Naquela tarde corpos se derramaram,
elástica a tarde virou noite
e a noite virou-nos de dentro para fora,
escaldados e gastos como aqueles charros.

Haveríamos de escrever algumas vezes mais
as cartas semanais, a pele a estalar por dentro.

O amor é o amor,
e depois do amor?


Mano-a-mano

 

Arneirós, uma e meia da tarde de calor infernal.
As filhas do caseiro à volta do caldo no seu lado
da casa enquanto cozo as minhas batatas.
Tenho estado de costas para o céu,
interrompendo para de tempos a tempos ir fumar
à janela que ampara o precipício.
Paredes meias, no meu melhor silêncio, meto-me
nas conversas e alegra-me a cabeça dos outros.
Mas a minha presença tem de ser assim: 
furtiva, ágil no ouvido e leve nos dentes para não
me fazer notar e a este olho negríssimo. 
Nesse dia, prometi, e tenho tentado, de resto, 
não voltar ao mano-a-mano desenfreado,
calafetar o coração e beber das fontes mais puras.

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Rebuçado, Berlim, Uma mulher e a sua vida, Nº 23 (Slow art)

Rebuçado

O meu pai e o meu avô materno
partilhavam o matutino.
O primeiro lia-o seriamente
antes de ir trabalhar.
A seguir eu levava, brincando, o novo
mundo ao reformado, dez portas
e oito décadas mais à frente.
Não sei se o lia.  

O desemprego da Grande Crise,
a guerra e a ocupação nazi,
a luta pela reconstrução,  
a reforma, recente e reduzida,
quando por fim havia amplo emprego
e hippies a cantar por todo o lado. 

Sem manchete nem memória, o novo
mundo, em plena crise do petróleo, entrava
de calções e recebia um rebuçado.


Berlim

Poucas memórias são memoráveis
mas lá estava eu em cima do Muro
numa nuvem de jovens gafanhotos
famintos de História em primeira mão.

Do lado capitalista, saquinhos de plástico  
repletos de cascalho colorido
alimentavam falsos testemunhos
por um punhado de marcos.

Do outro, aluguei escopro e martelo
(uma foice não ceifava nada desse
betão armado), subi a um escadote
comunitário e arregacei as mangas.

Por uma unha negra (o operário
só me dera dez minutos) levei
duas lascas da Guerra Fria para casa,
uma delas vagamente grafitada.

Depois de viúva, a mãe arrumou
as memórias, confiando as minhas
à minha metade mais sentimental: 
«caso ele se recorde um dia».



Uma mulher e a sua vida

Um homem e a sua vida
Yehuda Amichai

De uma tia doce e enrugada
como um figo seco pelo fim do outono
todo o mundo louva a sabedoria. 

Assim a sobrinha, sua menina   
de quarenta anos, apaixonada,
ao apresentar-lhe o namorado careca. 

Na sala, a tia oferece ambas as faces   
a beijinhos estranhos e familiares,
escuta, observa, serve chá de erva-príncipe     
em chávenas da Vista Alegre   

e puxa a sobrinha para a cozinha.
Lá, com o bolo-rei fatiado, dá-lhe
a sua benção salomónica: «Fode,
minha filha! Fode, mas não te cases».




Nº 23 (SLOW ART)

 

para a Zé

 

Pintemos o quarto outra vez,  
outra vez o quarto como novo.

Não digo de branco, talvez
cor-de-rosa meia-idade.

Mais vivo do que o verniz de unhas
tão na moda entre senhoras que

contam os seus dias sentadas
no sofá da pedicura.

Menos primário do que o encarnado  
dos caloiros da paixão. 

Não chamemos nenhum pintor,
nenhuma arquitecta de interiores. 

Sejamos nós mesmos, tu e eu.
Tiremos os cortinados     

e dois pincéis aos nossos filhos,    
desses de Educação Visual.

Todos os dias um quadradinho, 
não mais do que uma hora.