CORO (Cantando e dançando)
Então, o prudente profeta do exército, vendo os dois, distintos em temperamento,
os dois belicosos Atridas, reconheceu nas devoradoras de lebres
os comandantes supremos do exército e assim falou, interpretando o prodígio:   
“Com o tempo esta expedição tomará a cidade de Príamo
     e todos os numerosos
rebanhos das gentes[1] acumulados diante das muralhas o Destino saqueará 
     pela força.
Mas que ressentimento algum vindo dos deuses
     obscureça com um golpe antecipado o grande freio de Tróia
pelo exército em formação. Em sua compaixão é aborrecida a casta Ártemis
pelos cães alados de seu pai
que a pobre lebre, antes que desse à luz a sua prole, sacrificaram.[2]
Ela abomina o festim das águias.”
Um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!
epod. 
“Tão graciosa é Hécate[3] 
para com o orvalho indefeso dos feros leões 
e para com as crias de leite
de todos os animais selvagens tão amável, 
por isso pede que os prodígios se realizem,
a visão favorável, porém reprovável, †das aves†. 
Mas suplico ao Péan[4] que acorre aos agudos lamentos
que contra os Dânaos nenhuns ventos adversos, retendo por longo tempo as naus em terra,
ela prepare, precipitando assim um outro sacrifício, sem música e sem festim,            
artífice de discórdias nado e criado na família,
     que não teme homem algum[5] – pois permanece pronta a reerguer-se uma temível
e enganadora governanta, a Cólera que não esquece, vingadora dos filhos.”  
     Estas palavras Calcas
proferiu, acompanhadas com a promessa de grandes bens,
quando leu no presságio das aves à partida o que estava destinado para a casa real.
     Em consonância
um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!
estr. 2 
Zeus, seja ele quem for, se por este nome 
     lhe é caro ser chamado, 
por este nome o invoco.
Com nada o posso igualar,
     tudo pesando,
senão com o próprio Zeus, se do pensamento esta vã angústia                                    
é necessário realmente expulsar.
ant. 2
Daquele que outrora era grande[6],
     transbordante de uma audácia capaz de tudo desafiar,
não se dirá sequer que foi.
E o que se lhe seguiu[7]
     logo partiu ao encontrar o vencedor que o derrubou três vezes[8]. 
Mas aquele que de coração despojado o hino vitorioso de Zeus cantar 
alcançará a suma sageza;                                                                                             
estr. 3
pois é Zeus que os mortais na senda do conhecimento 
     guia, que a aprendizagem por meio do sofrimento
estabeleceu como lei absoluta.
Goteja sobre o coração em lugar do sono
a mágoa que memora a dor. E, ainda que indesejada, 
     a sabedoria virá.
Onde é a graça dos deuses,
violentamente sentados no augusto assento do timoneiro?
 
ant. 3
E então o mais velho dos comandantes[9]
      das naus dos Aqueus,
não recriminando adivinho algum, 
conspirou com a sorte que o feria, 
enquanto a demora devorava as provisões
    e oprimia a multidão aqueia,
acampada defronte de Cálcis[10], 
nas costas de Áulis, onde a rebentação ruge continuamente;
estr. 4
os ventos que do Estrímon[11] sopravam
um tédio nefasto, a fome, a má ancoragem,
o desvario dos homens, não poupando naus nem amarras, 
tornavam a espera duplamente longa,
com o desgaste consumindo
    a flor dos Argivos; e quando um outro 
remédio mais pesado
do que a amarga tempestade o adivinho proferiu
 aos primeiros do exército,
     declarando Ártemis responsável, então, batendo com os ceptros
    no solo, os Atridas
    não contiveram as lágrimas,
ant. 4
e o mais velho dos chefes ergueu a voz para falar:  
“Sorte pesada é não obedecer,
pesada também se esquartejar a minha filha, jóia do meu lar, 
manchando as mãos paternas
na corrente do sangue de uma donzela imolada 
     junto ao altar. Qual destas está isenta de mal? 
Como me hei-de eu tornar um desertor das naus 
falhando para com a aliança?
Pois o sacrifício
     que acalme os ventos à custa do sangue de uma virgem desejam
     com desejo extremo, mas proíbe-o
     a Justiça. Oxalá tudo corra pelo melhor!”
estr. 5
Mas quando a si ajustou o jugo da necessidade,
do espírito soprando um vento de mudança ímpio,
impuro, sacrílego, então
mudou o curso do pensamento para a maior das audácias –
pois torna audazes os mortais a de vergonhosos conselhos,
a miserável demência, princípio da desgraça. E assim ousou
tornar-se o sacrificador
     da filha como auxílio
     para uma guerra vingadora de uma mulher 
e sacrifício preliminar[12] à partida das naus.
ant. 5
Das súplicas e apelos ao pai
não fizeram caso, nem da virginal idade,
os juízes enamorados pela guerra.
Aos servos o pai, depois da prece, ordenou
que, como uma cabra, sobre o altar,
a que as vestes do pai com todo o coração abraçava, inclinada para a frente
a erguessem,
     e que a bela proa da boca
     selassem como vigia
contra alguma palavra de maldição para a casa
estr. 6
por meio da força de um freio e da violência emudecedora.
Quando já o seu vestido tingido de açafrão[13] pendia para o solo,
de seus olhos lançava ainda a cada um dos sacrificadores um dardo
piedoso, destacando-se como numa pintura, desejando
chamá-los pelo nome, pois outrora muitas vezes
nos hospitaleiros banquetes de seu pai
havia para eles cantado, a virgem que com voz pura a libação 
     terceira[14] do pai
     amado com um péan[15] amoravelmente honrava.
[1] Expressão ambígua: significa ao mesmo tempo “rebanhos que pertencem ao povo” (o passado mítico em que a tragédia é projectada não conhecia ainda a cunhagem de moeda, por isso os rebanhos representam a riqueza da cidade), mas também “rebanhos de gente”, “rebanhos constituídos por gente”.
[2] Verso ambíguo. Em grego pode também significar: “que a sua própria filha, infeliz e cheia de medo, diante do exército sacrificaram.”
[3] Hécate era originalmente uma divindade infernal, mas como divindade tutelar dos partos e protectora dos recém-nascidos era por vezes confundida com Ártemis.
[4] “O que cura”: epíteto de Apolo, cuja intervenção é aqui implorada também na condição de irmão de Ártemis.
[5] Expressão ambígua: ao mesmo tempo “que não teme homem algum” ou “que não respeita homem algum”, i.e., que desrespeita a vida humana, e “que não teme o marido”.
[6] Úrano.
[7] Cronos, filho de Úrano, que venceu e depôs o pai.
[8] A imagem reporta à luta do pancrácio, onde o lutador que por três vezes derrubasse o adversário vencia o combate. O vencedor é Zeus, filho de Cronos.
[9] Agamémnon.
[10] A expedição grega reuniu-se em Áulis, na costa da Beócia. Diante de Áulis, do outro lado do Euripo, ficava a cidade de Cálcis.
[11] Rio da Trácia.
[12] Ver nota 8. Talvez se trate de uma alusão à variante do mito segundo a qual Ifigénia foi convocada a Áulis sob o pretexto de ser desposada por Aquiles (como na Ifigénia em Áulis de Eurípides).
[13] O vestido tingido de açafrão simbolizava uma transição bem-sucedida da infância para a idade núbil; o facto de Ifigénia o usar pode ser uma outra alusão ao pretexto por meio do qual foi trazida até Áulis.
[14] A terceira libação dos banquetes era em honra de Zeus Sôtêr (Salvador), tratava-se de um ritual com o fim de afastar os males e atrair prosperidade.
[15] Em geral, o péan era um hino em louvor de um deus olímpico (normalmente Apolo).