2 poemas

Ōkōchi Sansō, Arashyiama (Quioto)

Novembro 2023

Komorebi

Aspiras à ascensão do silêncio bruto,

Abrupta a certeza do impalpável momento,

Mais lento que um suspiro no desmoronamento

Da partida, o toque último das pupilas

No deslocamento dos astros, todas as ilusões

O vento que move as distâncias imperceptíveis,

Derrotas-te a cada desejo,

Mas nem o impacto violento de um definitivo olhar

Consegue tolher irremediavelmente

Uma eternidade humana.

Fazer a Janta

O pão endurece, as manhãs perdem-se uma a uma

E sobre a mesa, alho e cebola, esperando o azeite quente,

Um pôr-do-sol que valha a pena, um reflexo estrangeiro

Num mar familiar e mitológico,

Quantas vezes há menos poesia na poesia

Que num gesto quotidiano executado com graça,

Viver, esse ensino constante da perdição, abrir mão,

Teme-se mais o esquecimento que ficar sem resposta,

Por isso se erguem monumentos à incerteza

Para que perdure na eternidade,

Deixa-se cozer o ragu, mexe-se um pouco a massa

E espera-se, uma nuvem permite um pouco de sol,

Toca a campainha, é tudo.

Situação de Emergência

Está tudo escrito numa língua
que não consigo perceber, repete
Alice vidrada no espelho da página.
Enche-me a cabeça de ideias, é belo
e cortesão, de alguma maneira. Mas isso
é do teu lado, leitora, nós também cuidamos
e queremos uma morte condigna pela água.
 
Estamos condenados a uma verdade ineficaz:
a compreensão começa a partir do exacto momento
em que se desfaz. Foi Ashbery quem o disse, citando
a situação de emergência em que a mente se aflige
nas condições meteorológicas de um sobe-e-desce:

“algo / devia ser escrito sobre o modo
como isto te afecta / quando escreves
poesia: / a extrema austeridade de uma cabeça
quase vazia / colidindo com a exuberante,
rousseauniana folhagem do desejo de comunicar
qualquer coisa entre um fôlego e outro, /
nem que seja só pelos outros, pelo seu desejo
de te perceber e desertar”. Nem tudo está perdido

quando dois dedos mornos coincidem
na mesma vocação de lebre, penso acocorado
num palácio em Vila Real enquanto tento verter
a camisa desabotoada do americano sem abandonar
a forma do seu corpo frio, a tira cómica da tarde
cumprida a traduzir um opaco manual de instruções.

E de repente, na dolorosa quina da circunstância,
dou com o termo balseiro, se bem que escutado
por alto junto ao café do pelourinho, pairando
algures sobre a triste torrada do descanso,
e penso logo em metáforas mortas, afunilo-me
em dorso escamado por uma lura de coelhos

e dou outra vez com Alice a reler Ashbery
do outro lado da Terra, extasiada com a folga
semântica visível numas sedutoras manchas
de tinta que hoje lhe proíbem peremptórias
outro centro de comunicação.

Visitações

Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo.
Neste calendário não havia
a métrica fílmica, discursos
ou palavras lúridas para revisitar,
somente imagens que se profanavam
a si mesmas na ânsia de se recriarem.
Os tecidos envelhecidos do verbo não eram
pardos, as complexas idades da mente
estavam a ser preparadas. Lembravam
os tecidos moles de rio e rochedo, carmes
conseguidos com a primeira saliva do dia.

Esquecemos a cega censura da génese.
O que distingue as manhãs supremas
de Shelley e Keats só pode ser
o descuido de uma ou outra gota a mais
vertida na lâmina do orvalho. Sabemos
como eram essas visitações escandidas
pelo ângulo de uma luz ainda nodosa.
Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo
no nosso quintal delapidado,
e súbito eram horas de Shelley
e Keats neste calendário inumerado.

Vou em plena voragem amniótica do tempo.
For ‘twas the morn: febre nos olhos,
Sopro estéril no sangue das pedras frias
quando as levantei para conhecer
o tenebroso desenho das lagartixas.
Dedos desencontrados de futura biografia,
sinas que nem um sutra saberia destecer.
Na aragem da visão passavam mãos meninas
com selhas transbordantes de branco,
aventais com a goma dos líquenes
enquanto, marcado pelos dentes das estrelas,
flectido na terra, este coração desaparecia. 

(inédito)

O NASCIMENTO DE AUGUSTO

Mergulho em música probatória:
eu no meu período azul, talvez venial,
ouvindo a voz pátria muito ao de longe
em rasgo parturiente, toda ela ao comando:
em mim ordem ignorada, sentida como cesura.

Daí a minutos, horas ou dias, a intimidação,
mas por ora o consenso – sim, conservo-me
nesta cama de sangue, cetim e largas penas,
procuro tentar algo mais que salto barulhento –
a minha gramática é uma seta a gotejar de sol.

Ouves a canção que inaugura o mundo privado:
globo de maçãs vibrantes, esta correia de platina
que range sob a mais bela estação do zodíaco.
Contento quem me faz oferendas, cabeças firmadas
no plasma adiado da vitória, sombras simples

vertidas na concha destas duas mãos
através dum grosso cabo de corda
que puxo todo com toda a imaginação
mais o leite que sobeja de biografia
ebuliente, em combustão forte, bravosa. 

(inédito)