2016 - 2017 

a praça inteira
lentamente
eu agora dentro do gelo do sonho
a baleia o chafariza catástrofe nos suspensórios
dos olhos
chibatando
arruinados pardais quando os pombos todos no chão  
namoram
uma mesma direção as mãos dos pombos aleijados
meu coração
uma baleia
o botão da camisa vermelha que em algum tempo
foi se desfazer maldita em tempos diversos
o botão aquele
haveria  
uma só maneira de me descobrir dentro
do que não poderia ser um sonho desde que
suposta afronta
a praça lentamente alerta
a praça inteira lentamente inteira comigo
procurávamos moedas onde a sorte em letras e
coroas
razões fissuras fogo um grito qualquer
lentamente
de cara crua
com raízes por fazer

vou me
lavar e dormir entre os teus explosivos sapatos

Querido ministro dos desportos,

Monty Python, The Philosophers' Football Match

Monty Python, The Philosophers' Football Match

Lisboa, 20 de Março de 2017

 

            — Havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, umas atrás das outras, ou só uma, sim, era só uma, e depois todos os outros corriam, corriam muito depressa, o mais depressa que podiam, não tudo de uma vez, porque este animal tinha de parar, como todos, e depois havia dois blocos, duas redes, e diziam, uma é minha a outra é tua, então eu tenho de enrolar tudo até à minha, não, diziam, até à tua...

— à tua?

— Sim, à tua, só assim poderás deixar de correr e começar aos saltos, mas se mostrares o umbigo vem alguém com cores...

— Com cores?

— Sim, alguns chamam amarelo, mas se já tiveres um dão-te cabo da cabeça, não podes mais rolar...rrrolar... fazer rolar, isto é, sim, se já tiveres um nunca mais andas atrás de coisas redondas, pelo menos durante aquele tempo...

— Tempo?

— Sim, minutos, segundos, um dois três, percebes, é como números só que estão aqui...

— O quê?

— sim, o tempo são números que se repetem só que reais

— os números não são reais?

— sim, mas só se forem tempo

— mas, e o tipo, o que lhe aconteceu?

— não viu cor nenhuma, então, por inerência, continuou a andar atrás de coisas redondas.

— ai sim?

— sim, claro que sim.

— mas porquê é que ele andava tão obcecado com isso?

— Nós somos animais, amigo, não sabes?

— Ai somos?

— Sim, claro que somos, temos de andar sempre atrás de qualquer coisa...

— Ai sim?

— Claro que sim, temos de nos manter vivos, e então alguns de nós para se sentirem vivos têm muito de ver os outros a estar vivos e a correr atrás de uma coisa redonda...

— Só um?

— Não, tens razão, vários, muitíssimos, mais do que um, menos do que doze

— doze?

— Sim, parece que é um número interessante

— Doze tempos são interessantes?

— Pelos vistos, não te sei responder a tudo, neste caso posso dizer-te: havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, e quando chegava perto, pum, lá vai disto, a coisa redonda eleva-se, elevava-se, elevaváva-se, e pum, ele dizia, toma, e saltava, não mais do que um animal salta, mas mais do que o normal, saltava, e pum, dizia, toma lá, toma lá, ouve lá

— mas toma o quê?

— perguntas bem, julgo que se pode traduzir por ‘toma lá esta coisa (neutro) que era minha e agora está dentro da tua’

— da tua?

— sim, de tua, da tua, de certa forma há algo nisto tudo que me soa estranho...

— Duvidaste?

— por momentos, sim, perdi-me, já não sei quem falava...

— era eu?...

— claro, desculpa, ele foi, ele foi muito, fez coisas com a coisa redonda várias vezes, para aí mil números, dez mil, passou muito tempo,

— então?,

— sim, para este animal mil é muito tempo

— e dois mil?

— dois mil também

— e cem mil?

— sim, ele talvez tenha rolado a coisa cem mil vezes até lá...

— e um milhão?

— já não sei

— e números e tempos sem acabarem?...

— ó pá, não sei, não me estejas sempre a interromper, assim é cansativo, sei lá, pôs marcas muitas vezes

— marcou?

— sim, é isso, pôs marcas muitas vezes, tantas vezes que disseram, este aqui rola muita bem, marca muito bem, faz tudo muito bem, e olha vai lá daquela, dão-lhe muitos números

— muitos números, como assim, muitos dez, por exemplo?

— sim, dão-lhe muitos números de dez

— como assim, dinheiro, coisas de dez?

— sim, isso mesmo, dão-lhe milhões de números de dez...

— mas porquê? Dar é um verbo  tão generoso...

— Ora, não te acabei de dizer, porque rolava muito bem coisas redondas

— mas tu não és capaz?

— sim, mas tens de fazer rolar muito bem

— ai sim, e como é que sabes?

— olha, sei lá

— ... e se rolares muito bem e ninguém te estiver a ver?

— ora que pergunta...

— ... e se fores o melhor a rolar a coisa e nunca o conseguiste fazer porque morreste?

— ah, entendo, acto-potência

— claro, claro que sim

— bem finalmente percebeste, acto-potência, isto aqui é acto... quer dizer, toma, lá vai disto, já lá mora, acasalou com as redes, fez-se amor no rectângulo

— isto também tem a ver com geometria?

— não te falei em números?

— sim

— então, claro que sim, números, formas, tempo, vai dar tudo ao mesmo

— então o tipo era um matemático

— sim, pode dizer-se que sim

— e porque se haveria de dizer que não?

— porque na realidade ele só fazia coisas redondas rolar

— mas os matemáticos não fazem muito mais do que isso?

— então, mas já não concluímos que ele era matemático?

— sim

— então deixa-me continuar

— ah sim, mas então quando é que tudo começou?

— não sei

— não foi quando ele começou a chutar

— chutar?

— sim, deixa lá, lembrei-me disso para descrever o que acabaste de dizer

— sim, gostei muito, chutar, sim, foi quando ele acabou de chutar

— ele já não chuta?

— está quase a deixar, depois, vê, sabes, há coisas que voam e aterram, isto é, são coisas muito grandes, como aves muito grandes, aviões, aviãozões

— é pá, que pássaros tão grandes

— sim, mas estes não são animais, são feitos de metal

— e pá! então como voam

— matemática, amigo, matemática

— devia ter suspeitado

— pois devias, mas desde o princípio não me deixas falar

— qual princípio

— já sei, devia evitar estas expressões, continuando, está quase a deixar de fazer esse verbo que inventaste

— chutar

— esse mesmo, está quase a deixar de o fazer e então disseram: lembras-te há muito tempo do sítio de onde saíste da vagina da tua mãe, claro que ninguém se lembra, é só uma forma delicada de fazer alguém recordar-se do sítio onde ainda sem saber estava a viver

— pois, já tinha sentido que às vezes não sabemos bem o que estamos aqui a fazer, basta olhar nos olhos de um animal muito, muito pequenino

— ah, és tão perspicaz, parece que é o mesmo autor que está a escrever isto

— que disparate

— olha, às vezes quando menos acreditas, tumba, já foste, estás a ser escrito e vives só na imaginação de alguém

— tenho medo disso

— não tenhas medo, crê somente, mas olha, o outro entretanto já não começava a rolar a coisa redonda como antes

— coitado, o que lhe aconteceu

— o tempo

— ai sim? e depois, o que seria dele

— ninguém sabe

— ninguém? então não morreu também?

— bom, quer-se dizer, toda a gente sabe, há-de morrer

— que pena!

— tens pena dele?

— tenho pena de nós

— eu também... mas quando começaram a aterrar grandes aves todos disseram: ai que bem que ele chutava!

— porquê?

— porque o sítio onde ele nasceu e onde as grandes aves aterravam era o mesmo

— que alegria deve ter sido para ele

— sim, mas depois morreu...

— oh! que pena!

— pois, é uma pena. Mas chutava muito bem.

 

Com os melhores cumprimentos

Pedro Braga Falcão

"Leis" da narração

Na revista francesa de divulgação filosófica Philosophie Magazine, Fevereiro de 2017, John Truby considera que a Odisseia e Breaking Bad obedecem a regras estéticas atemporais, e por isso semelhantes, já presentes, por exemplo, em Aristóteles, Hegel e Nietzsche. O autor complexifica, porém, as velhas leis aristotélicas (unidades da acção, do tempo e do lugar, servindo a mimésis de uma acção edificante que suscitando piedade e medo desenvolve processos catárticos), considera necessárias vinte e duas etapas para se escrever uma boa história (cf. Anatomie du scénario, 2017). Etapas que podem ser resumidas assim: “haver uma linha clara de desejo, a de um herói prosseguindo um objectivo definido, que para o atingir se confronta a um conjunto de situações, a que chamamos intriga, e que são principalmente testes morais, aos quais responde bem ou mal, até que surge a derradeira tomada de consciência, marcando a sua transformação íntima, e, idealmente, oferecendo ao público um momento de revelação profunda.” Desta forma, uma boa personagem incarna simultaneamente problemas psicológicos e morais, as suas fragilidades são atacadas por adversários, até ao ponto de ruptura capaz de revitalizar e decidir a vitória do protagonista. Daqui pode nascer uma revolução capaz de criar novos códigos morais mais apropriados a um mundo justo. Portanto, o centro nevrálgico faz-se com um plano de desejo e ataques e contra-ataques morais ao longo de uma linha de desenvolvimento que conduz ao final feliz (mesmo que não haja festa e contentamento simplório, pode até morrer-se saciado de vida). É verdade que algumas obras, como O Estrangeiro de Albert Camus, parecem desviar-se dessa estrutura, mas isso mantém-se na grande maioria dos casos. Por exemplo, mesmo na Metamorfose de Kafka, apesar do desvanecimento de sentido e da quase impossibilidade de se conjurar essa falha, deseja-se saber o que vai acontecer à personagem.

A ficção cinematográfica ou televisiva funciona de forma similar, excepto nos trabalhos de autor, que, por natureza, terão de afastar-se dos horizontes de expectativa dominantes, “Um filme de autor explora um mundo [possível], não segundo as esperas do público, mas de acordo com a visão do autor.” Mad Men ou Breaking Bad, e outras obras superiores (The Wire, Six Feet Under, Sopranos...), seguem a velha estrutura mas adicionam-lhes outros arranjos narrativos, reduzem a tensão maniqueísta, complexificam algumas personagens, deixando-as muitas vezes à deriva no meio da ambivalência, amplificam as virtudes empíricas contra as ambições idealistas, protegem zonas de obscuridade que noutras produções são resolutamente iluminadas, escancaradas, às vezes com deuses ex machina fanfarrões totalmente inverosímeis, uma banalidade desoladora e desastrosa, apesar de febril. De qualquer forma, se as más histórias são moralizadoras, as boas colocam sempre questões morais, “ou a questão da moral”. Mas também neste caso há excepções, John Truby dá o exemplo de Tchekhov, cujas personagens são “incapazes de compreender e de mudar. Elas repetem perpetuamente os mesmos erros.” E quando ficam conscientes, acabam por “obter exactamente o contrário do desejado.”

Assim, uma boa história, já tendo em conta os desvios que podem gerar obras de arte, “estiliza e compreende momentos cruciais da vida”. Desenvolvendo uma economia do desejo em direcção a um fim, indo por trilhos minados, onde novos Ulisses se safam com astúcias frenéticas, cheias de suspense e efeitos especiais, e no final obtêm a ambicionada superação que eleva as personagens heróicas e, se houver tragédia, também os espectadores (a célebre catarse trágica interpretada por Nietzsche, elevação em vez de purgação).

João Gabriel Madeira Pontes, Entropias de eixo e beira – um poema em quartetos

Entropias de eixo e beira – um poema em quartetos
poesia

Enfetmaria 6, abril de 2017, 18 páginas

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«Todos anjos que vigiam
As manhãs e os sons da lauda, 
Todos monstros que bugiam
Quando houver quem os aplauda. 

São estes versos sem eira –
Um cavalo, uma Babel –
Entropias de eixo e beira,
Pois que, a partir do escarcéu,

Chispam as vinhas da ordem,
Da ordem mais verdadeira,
E das leis que, sim, dependem
De entropias de eixo e beira.

No coração do anarquista,
 Jaz correção de neurônio,
Bem como, dentro do artista,
Dão-se paz e pandemônio.»