Aceitação é a espada que corta a resistência

tumblr_static_tumblr_static__640.jpg

Esquartejado por uma dor lancinante provocada pela esposa, um peso no espírito pouco explicável em termos racionais, uma aflição por vezes miudinha, outras vezes avassaladora, comparável a uma impiedosa faca estracinhando carne, vísceras, tendões, ossos, até chegar à alma, Túlio rebolava para o trabalho esquecido das razões pelas quais tanto se aborrecia com relatórios e subserviências do mais variado calibre, tendo mera consciência de que se não comparecesse no escritório, não teria como subsistir, nem como alimentar o inocente bebé que noite sim, noite sim lhe roubava horas de sono com um ruidoso choro que chegava a dar a sensação de rachar o tecto. Cumpria com sacrifício as tarefas que lhe eram impostas no serviço, não perdia de vista o relógio e a passagem dos segundos e dos minutos, ardia numa delirante febre que despontava ciúmes e tremores na perna, o pânico consumia-lhe a atenção, sentia-se tentado a pedir a demissão, a pregar um soco em alguém, ignorava diálogos, interacções, repisava as mentiras da mulher, acontecimentos e diálogos mil vezes na sua mente remastigados, disseste isto, fizeste aquilo, mentiste aqui, traíste acolá, meditava sobre o que lhe sucedera, sobre o que lhe poderia ainda ocorrer se não se desligasse de tão inconsequente pessoa como aquela com quem, num momento de clara perturbação, se casara. O bicho encolhia-se em posição fetal no comboio, apertando o dilacerado peito, rogando a uma força maior que aquele mal-estar se extinguisse, que lhe surgisse algo ou alguém que lhe enchesse outra vez o coração de luz, que o resgatasse daquele purgatório sem fim. Abria a porta de casa com aparente tranquilidade, fazendo cara de Buda, ainda influenciado pelas palavras apascentadoras do monge da rádio que lhe ensinava a respirar, abancava a jantar como se ali não estivesse, negligenciando o bebé, que atirava comida para o chão e esfregava as porcas mãos nas paredes, e a mulher, suave mulher, que mantinha o sorriso e um falso optismo que nada acrescentavam ou retiravam à infelicidade que entre o casal se intrometera, fingia mastigar, acenava que sim, que o dia correra bem ou assim assim ou igual aos outros, que tudo regressava ao seu lugar, que perdoava por não haver outro remédio para quem amava a não ser perdoar, mas a cada novo dia aparecia mais mirrado e enrugado e pronto para se entregar a uma morte rápida, indolor, trazida talvez por um frasco de comprimidos e uma corda à volta do pescoço.

Túlio lera algures, provavelmente numa revista abandonada na clínica do dentista que quinzenalmente visitava para chumbar um dente, que um coração partido demorava cerca de três meses a sarar. Essa tão científica previsão fora lida poucos dias após o choque ou, como lhe chamava, o dia em que fora transportado da realidade para um submundo de lágrimas e infindos prantos. Esperara ardemente pela passagem dos malfadados noventa dias, esses noventa dias multiplicaram-se por dois e depois por outros dois, o coração sangrava, Túlio esvaía-se em sangue, as acções da esposa ardiam-lhe na imaginação. Encontrando-o pálido, um conhecido citou-lhe um sábio antigo: não há mal que dure cem anos. Meio ano, oito meses, soava a eternidade. Sofria ainda como um condenado, sem saber para onde se virar, com quem falar ou que fazer para se livrar daquele peso morto que era a enxurrada de memórias e de destruição. Que queres fazer hoje?, perguntava-lhe a estremosa esposa, depois dos seus erros ainda mais estremosa. Túlio, acobardado, calava a verdade dentro de si entranhada, temendo exteriorizar o nojo que por ela sentia, evitando comentários insultuosos, que não a queria mais à frente, que vomitava pensando nela, que olhar-lhe para a cara era o suficiente para que o dia lhe saísse mais azedo. Quero-te daqui para fora, disse-lhe uma vez, talvez pouco convincentemente, uma vez que ela não o levou a sério e ainda gozou com o seu efeminado tom de voz. Raspa-te para longe, berrou-lhe noutra ocasião, mas ela, rainha da miséria, gargalhou, e com a gargalhada enterrou-o numa lama depressiva feita de culpa e de silêncio e de repressão e de raiva.

Espremido pelo sofrimento, desesperado por encontrar alívio, Túlio submeteu-se à meditação, a idas diárias à missa, à leitura regular de passagens da Bíblia, adquiriu crucifixo, alterou hábitos alimentares, dedicou-se à prática de exercício, mudou de café para algo mais calmante, como chá de ervas, comprou caderninho que em pouco tempo ficou abastecido de afirmações positivas e de intenções para o futuro, e a sua personalidade não tardou a evidenciar progressos. Sorria mais, surgia mais amigável e tranquilo em termos de aparência, preocupava-se quase nada com a labuta, adquiria roupagem supimpa, ceava em restaurantes da moda, tratava de si, no fundo, como mandavam os manuais de auto-ajuda e os líderes espirituais com que se ia cruzando, nomeadamente os jovens fumadores de haxixe que em bares e cafés lhe viravam as cartas do tarot e lhe mostravam o caminho dos astros. Mas sempre chegava a altura de se deitar na cama. Tropeçava nas pernas da mulher, enfrentava-lhe a carantonha antes de dormir, e aí todos os esforços de superação emocional e mental caíam por terra. Aos poucos, instalou-se na mente de Túlio a convicção de que, de modo a curar-se do mal de amor, teria de apagar a mulher, não somente afastar-se, pedir o divórcio, apagá-la, matá-la. Gizou um plano. Gizou uns dez planos. Em nenhuma altura ganhou astúcia e determinação para os pôr em prática. Envenená-la trar-lhe-ia problemas com a polícia. Esmurrá-la até lhe desencaixar o cérebro do crânio idem. Esquartejá-la e enterrar os pedaços em diferentes regiões do país também não dava a impressão de ser ideia bem estruturada, que tivesse possibilidades de o livrar de buscas e de interrogatórios policiais. Assim, e visto que a desesperança e os desejos de vingança comandam o animal por educar, Túlio aproveitou o apetite sexual, em certa noite pela esposa evidenciado, para se esgueirar para debaixo dos lençóis e, por intermédio de duas barras de dinamite, rebentar com ela, com o prédio e com essa inútil coisa, a vida.  

 

OS POETAS CANTAM A EPOPEIA DO UNIVERSO À ESCALA DE  UMA ELEVAÇÃO DE 461 A 477 M/S DA SUA VELOCIDADE MÉDIA 

Durante séculos
o Homem mal teve tempo de
nascer, conhecer os filhos e desaparecer, contemplando um Uni- 
verso que para ele permaneceu imóvel. 
Ao ritmo deste  
filme, sucedem-se em cada segundo, 10 000 gerações. 
Sim: porque deste filme
prodigioso o Homem só viu a derradeira imagem. 
E como as leis dos choques impõem uma uniformização das
causas estranhas à sua existência quotidiana
a vida é um relâmpago.  

A partir do corte e cola de O Romance da Matéria. O estudo da evolução do universo (trad. Ramiro da Fonseca, Livros do Brasil, 1970), de Albert Ducrocq. 

 

Acácia investe na figura 

Chegou ao emprego à hora de sempre e Itamar já lá estava. Disse-lhe: 
— Grande molha que apanhaste! 
— Está a chover há meia hora. 
— Eu vi pela janela. Chegou uma carta para ti. 
— Ok. Está onde? 
— Já foi. 
— Deitaste-a fora?! 
— Não, está na tua secretária. 
Subiu as escadas e ali estava ela, dirigida a Adalício Adamastor, Rua Etc e Tal, Lisboa. Letra de criança, coisa estranha. Abriu-a. “Podemos ver-nos? Vai ter àquele bar onde costumas ir.” Brincadeira, por certo, e que bar seria aquele? Até poderia ser engano, mas o nome Adalício Adamastor não era acaso, e a Rua Etc e Tal ainda menos. Começou a trabalhar e esqueceu a carta. 
No dia seguinte, a mesma coisa: “Não apareceste. Posso ter uma conversa contigo?” Claro que era brincadeira, mas quem seria a criança? Durante o dia, demorou mais a esquecer, mas esqueceu. Até que, na quarta-feira, veio mais outra. “Queres almoçar?” Quem seria? Acácia costumava testar-lhe a fidelidade, teria pedido a outra para escrever aquelas palavras? 
Chegado a casa, perguntou: 
— Temos envelopes cá em casa? 
Não tinham. 
No dia seguinte, não havia nenhuma carta. Adalício pensou que Acácia percebera que acabara. 
ubiu as escadas, sentou-se para trabalhar, logo o telefone tocou, era Itamar. 
— Há uma chamada para ti. Posso passar? 
— Podes, claro. 
Itamar reencaminhou para a extensão 736, Adalício cumprimentou mas só ouviu respiração do outro lado. Uma e outra vez até que Itamar deixou de transferir. 
Ao fim do dia, foi para casa. Acácia agia como sempre, fingindo não ter feito nada. Perguntou-lhe: 
— Estás contente com o telemóvel que compraste? 
Disse que sim e ainda acrescentou que andava a usá-lo muito. 
No dia seguinte, não aconteceu rigorosamente nada, e o fim-de-semana correu a cerveja e futebol. 
Chegou segunda. De novo: 
— Chegou uma carta para ti. 
Voou pelas escadas. 
A mesma letra de criança e apenas uma frase: “Preciso de te ver.” 
Já não trabalhou direito. Quando Itamar voltou a reencaminhar-lhe uma chamada, explodiu: 
— Quem é, caralho? 
— Calma, Adalício. Tens o telemóvel desligado e só queria dizer-te que deixaste a carteira em casa. 
Acácia tinha o desplante de não lhe desligar na cara. Nada disse, uma vez mais fingiu. Horas depois, nova chamada, e quem não fingiu foi Adalício: 
— Olá, Acácia. 
Mas não era Acácia quem estava do outro lado. 
— Quem é a Acácia? Já não me reconheces? 
Claro que a reconhecia, só não podia julgar nunca que fosse ela. 
— Sou a Adosinda. 
Adalício quase caiu da cadeira. Quase derrubou o jarro que tinha em cima da mesa e deixou cair o telefone, e ainda por cima começou a respirar pesado. Ouviu do escritório: 
— Tudo bem, Ada? 
Disse que sim. 
Era estranho não se ter lembrado de quem sempre fora inesquecível. Tinham sido namorados antes de casarem, Adosinda tinha dois filhos, ele zero. Nunca mais se tinham falado depois de uma birra que durara a vida toda até então. Adalício matara entretanto o desejo de matar-se, mas não o sofrimento. Disse só: 
— Como é que estás? 
— Estou muito bem. Porque é que não apareceste? 
— Onde? 
— No sítio do costume. Não recebeste a minha carta? 
— Sim, mas não sabia que eras tu. 
— Pois é, esqueci-me de assinar. — Tudo sinistro. — Podemos encontrar-nos no sítio do costume? 
Adalício disse que sim, assumindo que esse sítio só podia ser o Botequim do Fumo. Atirou uma desculpa a Acácia, saiu depois de tomar banho em perfume. Vestiu a melhor camisa já no carro. 
Quando chegou, já ela lá estava. Vestido branco, salto alto, um perigo. Mais velha e ainda sem idade. Pediram os dois bebidas, jogaram conversa fora. 
Ela mordia os lábios, ele não tirava os olhos dela. Mais por glória do que precaução, disse-lhe: 
— Sabes que agora sou casado? 
— Imaginei que sim. 
Tocavam-se debaixo da mesa, mas ninguém trai com os pés. Depois de um copo veio outro, a conversa só tinha um sentido, e ela ainda lhe disse: 
— Houve uma coisa que nunca chegámos a fazer. 
— Há ali uma pensão. Por vinte euros arranjamos uma cama. 
Dirigiu o caminho, reservou o quarto, abriu a porta. O primeiro beijo soube a whiskey velho. Perguntou-lhe: 
— Vais deixar o teu marido? 
— Já deixei. 
— Por mim? 
— Claro que não. 
— Mas queres ficar comigo? 
— Ficar contigo? 
— Sim. Que eu deixe a minha mulher e moremos um com o outro. 
Ela riu, surpresa e divertida. Ele humilhado. 
— Claro que não. 
Adalício, deitado e nu, sentiu-se de joelhos e mais despido ainda. Resistiu como pôde: 
— Ainda bem, também só quero ter um caso. 
— Eu sei, a Acácia desconfiava. 
Despido, ficou gelado. 
— A Acácia?! 
— Sim. Quis provar que eras infiel. 
Tinham-se conhecido na aula de Pilates, e Acácia pedira-lhe que o testasse. Não sabia sequer que o seu nome era Adosinda, chamara-lhe “meu bem” o tempo todo. 

Banda desenhada

DIG017412_1.jpg

O dia começou bem. Um simpático e-mail anuncia-me que a Comixology, o site de banda desenhada da Amazon, está a fazer saldos de verão nas listas da Marvel e da DC. Isso significa que os três volumes que reúnem os livros de Daredevil de Frank Miller e Klaus Janson, quase mil páginas de acrobático combate ao crime, pontuado por dilemas morais inesperados em alguém que decide passar as noites a saltar de telhado em telhado num fato vermelho de material indeterminado mas desconfortavelmente justo, deixarão finalmente o limbo da minha wishlist. E não vêm sozinhos: Marvel 1602, de Neil Gaiman, dois volumes de Doom Patrol, e os volumes de The Ultimates que me faltam far-lhe-ão companhia. Um dia de caça feliz.

Uma boa parte das nossas paixões têm origem difusas, que nós somos incapazes de precisar, e nem nisso temos grande interesse. O meu amor por banda desenhada é um dos poucos cuja etiologia sou capaz de mapear.

O meu pai tinha-me levado para casa dos meus avós, no Porto, para passar lá os meses de verão, como sucedia sempre. Para ter com que me entreter, o meu pai comprou todos os livros de banda desenhada a que conseguiu lançar mão, e deixou-os com o meu avô, com instruções de me dar um livro novo todos os dias. Eu tinha então nove anos. Os dias passavam com uma regularidade fácil: de manhã íamos à praia, a Espinho, ou à piscina de Leça. Nesse ano o meu avô ensinou-me a nadar. Almoçávamos na praia e regressávamos a casa depois de almoço. Por vezes passávamos pelo clube de vídeo e trazíamos um filme, uma comédia, um western ou um filme de acção. Creio que foi esse o Verão em que o meu avô e eu vimos o Sozinho em Casa quatro vezes. A rotina era interrompida pela ocasional ida ao cinema: numa sessão de Robim dos Bosques: Príncipe dos Ladrões, no defunto cinema da Batalha, uns adolescentes sentados no balcão divertiram-se a usar a careca do meu avô, sentado em baixo, como alvo de pipocas e cuspo. A minha avó e eu estávamos sentados mais à frente na sala e não nos apercebemos e quando, no final do filme, ele nos contou do sucedido, com a sua habitual pacatez, nós não conseguimos conter o riso.

E havia muito tempo para se estar sozinho, algo que já então eu amava. Podia perder-me na sombra do meu quarto a fazer desenhos, que depois a minha avó avaliaria, a brincar, e havia um novo livro de banda desenhada para saborear todos os dias. Durante esses dois meses os X-Men combateram tragicamente a Fénix Negra, o Homem Aranha uma série de inimigos – Duende Verde, Duende Macabro, o Homem de Areia –, cada qual mais exótico do que o outro, fui apresentado aos X-Force, o Destruidor e o Justiceiro tiveram uma série de encontros inconclusivos. Os dias eram longos, bons e saudáveis, a casa grande, e eu sentia-me seguro, rodeado por pessoas que me amavam, e que me incitavam a ser curioso e a seguir os meus interesses.

A minha avó morreu há dois anos, o meu avô há poucos meses. A ausência deles é sentida mais do que nunca no dia do meu aniversário. Todos os anos eles viajavam, do Porto a Almada, para estarem presentes, até a saúde deixar de o permitir.

Talvez o que de mais valioso fazemos na vida nasça de uma tentativa, nobre pela sua fidelidade, de reparar a memória de uma felicidade mitificada. Seria fácil, e um enorme cliché, dizer que o gesto é fútil. É fútil apenas na medida em que todos morremos. Estamos aqui e agora, agarramo-nos ao que podemos para continuar. Haverá muito tempo para morrer depois.

 

PS. Muito obrigado a todos pelas mensagens de parabéns. Espero que os envelopes com dinheiro que certamente enviaram cheguem depressa. Conto com eles para pagar a dívida que contraí hoje em banda desenhada.