Leituras recentes

5 poemas de João S. Silva

 

Protecção de dados


Não terás hoje, é possível,
nada a esconder;
recorda-te, porém, que
o amanhã será tardio,
perpétuo e público.

***

Escrevo-te por gostar de acreditar
que posso deste modo recordar-te,
avó

mas às vezes a tinta dilui-se
como o sangue na água, confissão
que faço com vidros na boca

e já não distingo bem a tua voz
magoada, aceitando a inevitabilidade
da minha ausência adolescente

e já não distingo bem a tua voz
envergonhada, pedindo-me a leitura
das legendas dos filmes de Domingo

e já não distingo bem a tua voz
minguante, anunciando, por trás da máscara,
uma inaceitável doação do mundo

já não distingo bem a tua voz, avó,
mas todas as lágrimas deste poema
recordam o teu amor imaculado e pleno.

***

Num lugar de Teerão

Para o Bernardo

O fogo de Teerão ardia,
fátuo, com música de fundo
e um véu preto navegava
a correnteza da tua trança,
sem que o impedissem.
tinhas as mãos cheias
de ambições e de cigarros:
era a Europa era Paris
era o fashion design
era o assombro dos vinte anos
avançando por entre águas
sulfurosas e estagnadas.

Não foram os teus magníficos olhos grandes,
com que encantarias serpentes,
a exigir-me este poema,
mas uma dissensão de coragens:
enquanto executas a céu aberto as tuas
sublevações de seda e nicotina
eu escondo o teu nome – e o meu –
neste baú de cobre e osso de camelo.

***

Método

To live well you must live unseen

O objectivo é sempre simples:
correr para as ermidas pelos milheirais e pelas sombras
enterrando na passada todos os nomes em redor.
Ser coisa entre as coisas e nenhuma palavra mais.
Evitar assim a meteorologia redundante
e os surtos de interesse alheio,
lençóis freáticos da peçonha.

***

"Veste-te para o trabalho que queres,
não para o que tens", reza a modernidade.
Enfrento assim o poema de camisa engomada
e botões de punho
e disponibilizo, desde a primeira linha,
um floreado cartão de visita,
no qual se lerá o necessário, e talvez mais
(não há versos grátis).

Disponibilizo-me ainda para amar o próximo
(em part-time);
para uma existência despojada de riqueza,
no sentido em que não me será possível
crescer uma biblioteca;
e para concluir acordos vários com o cadinho
- alma, corpo, panificação -
mastigando a amarga côdea celulósica
em troca de um fumegante e fofo miolo de talento.
 

o buraco da cozinha

"legs", ph. Guy Bourdin

"legs", ph. Guy Bourdin

não escolhas uma mulher que tenha tido muitos homens
não escolhas uma mulher que tenha tido poucos homens
não escolhas uma mulher
não escolhas ninguém  

tenham tido muitos ou poucos levar-te-ão à loucura  
serás sempre a barata que foge à lata de insecticida  
que procura a racha na parede da cozinha

nenhuma curará o que quer que seja de que padeces
ou julgas padecer
descobrirás novas e encontrarás velhas paranóias
viverás ainda as paranóias delas

por isso pensa muito bem
sempre que quiseres esgueirar-te  
pelo buraco da cozinha

Crimen Amoris

Henri Fantin Latour - Un Coin de Table, 1872 (Verlaine e Rimbaud, pormenor)

Henri Fantin Latour - Un Coin de Table, 1872 (Verlaine e Rimbaud, pormenor)

Paul Verlaine
Tradução de João Moita

A Villiers de l’Isle-Adam.


Num palácio, seda e ouro, em Ecbátana,
Belos demónios, adolescentes satãs,
Ao som de uma música maometana
Aos Sete Pecados os sentidos entregam.

É a festa dos Sete Pecados: que bela é!
Os Desejos fulgiam em fogos brutais;
Os Apetites, solícitos pajens assediados,
Passeavam róseos vinhos em cristais.

Danças em ritmos epitalâmios
Morriam suavemente em longos gemidos
E belos coros de homens e de mulheres
Sucediam-se como vagas palpitando,

E o encanto que de tudo isto emanava
Era tão poderoso e deslumbrante
Que em torno o campo se enchia de rosas
E a noite se parecia com um diamante.

Ora o mais belo dentre estes anjos perversos
Tinha dezasseis anos sob a coroa de flores.
De braços cruzados sobre franjas e colarinhos,
Cisma, de chamas e lágrimas transbordante.

Em vão a festa à sua volta recrudescia,
Em vão os satãs, seus irmãos e suas irmãs,
Para o arrancarem aos cuidados que o afligem,
O animavam com carícias aliciantes.

A todas as blandícias ia resistindo,
E à sua rica fronte de jóias abrasada,
O desgosto juntava uma borboleta negra:
Oh imortal e terrível desespero!

Dizia-lhes: «Oh, por favor, deixem-me em paz!»
Depois, a todos beijando ternamente,
Deles se esquivava com um gesto ágil,
Deixando-lhes pedaços de roupa nas mãos.

Não o vedes na torre mais celestial
Do alto palácio de tocha em punho?
Eis que a brande como à manopla o herói:
De baixo dir-se-ia que é a alba que desponta.

Que é que ele diz na sua voz profunda e terna
Que se une ao claro crepitar do fogo
E que de ouvi-lo fica a lua extasiada?
«Oh! Será por mim que Deus será criado!

«Demasiado sofremos, anjos e homens,
«Nesta disputa entre o Pior e o Melhor.
«Subjuguemos, tão miseráveis que somos,
«Os nossos impulsos ao mais simples dos votos.

«Ó vós, ó nós, ó os tristes pecadores,
«Ó os ledos Santos! Porquê esta cisma obstinada?
«Porque não fizemos, como hábeis artistas,
«Dos nossos trabalhos uma única virtude?

«Basta destas lutas demasiado iguais!
«Necessário será que enfim se juntem os
«Sete Pecados às Três Virtudes Teologais!
«Basta destes combates vis e brutais!

«E em resposta a Jesus que julgou proceder bem
«Mantendo o equilíbrio deste duelo,
«Por mim o inferno, em cujo covil estamos,
«É sacrificado ao Amor universal!»

Cai a tocha da sua mão aberta,
E elevando-se, o incêndio brame,
Enorme querela de águias vermelhas
Na esteira negra do fumo e do vento.

Funde o ouro e flui, e o mármore estoira;
É um braseiro todo esplendor e todo ardor;
A seda aos estremeções, como o algodão,
Voa em flocos toda ardor e toda esplendor.

E compreendendo cantavam nas chamas
Os moribundos satãs, como que resignados!
E belos coros de homens e de mulheres
Subiam entre o tufão dos ígneos rumores.

E ele, cruzados os braços altivos,
Os olhos no céu lambido pelas chamas,
Diz baixinho uma espécie de oração
Que vai morrer na alegria do canto.

Diz baixinho uma espécie de oração,
Os olhos no céu lambido pelas chamas…
Quando retumba um horrível trovão,
E lá se vai a alegria do canto.

Não fora autorizado o sacrifício:
Decerto alguém mais forte e mais justo
Adivinhara sem esforço a maldade
E o artifício de um orgulho que se ilude.

Do palácio das cem torres não restam vestígios,
Nada sobrou deste espantoso desastre,
Para que graças ao mais horrendo prodígio
Isto não passasse de um sonho vão e desfeito…

E vem a noite, a noite azul de estrelas mil;
Uma planície evangélica estende-se
Severa e doce, e, vagos como véus,
Os ramos das árvores adejam como asas.

Frios regatos correm sobre um leito de pedra;
Os amáveis mochos nadam vagamente no ar
Todo perfumado de prece e de mistério;
Por vezes da água eleva-se um clarão.

Sobe ao longe a forma débil as colinas
Como um amor ainda indefinido,
E o nevoeiro que se ergue das ravinas
Parece apontado a algum fito comum.

E tudo isto como um coração e uma alma,
E como um verbo, e de um amor virginal,
Adora, abre-se num êxtase e reclama
O Deus clemente que nos guardará do mal.

Paul Verlaine, Jadis et Naguère, 1884.


CRIMEN AMORIS

À Villiers de l’Isle-Adam.

 

Dans un palais, soie et or, dans Ecbatane,
De beaux démons, des satans adolescents,
Au son d’une musique mahométane
Font litière aux Sept Péchés de leurs cinq sens.

C’est la fête aux Sept Péchés : ô qu’elle est belle!
Tous les Désirs rayonnaient en feux brutaux;
Les Appétits, pages prompts que l’on harcèle,
Promenaient des vins roses dans des cristaux.

Des danses sur des rythmes d’épithalames
Bien doucement se pâmaient en longs sanglots
Et de beaux chœurs de voix d’hommes et de femmes
Se déroulaient, palpitaient comme des flots,

Et la bonté qui s’en allait de ces choses
Était puissante et charmante tellement
Que la campagne autour se fleurit de roses
Et que la nuit paraissait en diamant.

Or le plus beau d’entre tous ces mauvais anges
Avait seize ans sous sa couronne de fleurs.
Les bras croisés sur les colliers et les franges,
Il rêve, l’œil plein de flammes et de pleurs.

En vain la fête autour se faisait plus folle,
En vain les satans, ses frères et ses sœurs,
Pour l’arracher au souci qui le désole,
L’encourageaient d’appels de bras caresseurs.

Il résistait à toutes câlineries,
Et le chagrin mettait un papillon noir
À son cher front tout brûlant d’orfèvreries :
Ô l’immortel et terrible désespoir!

Il leur disait : « Ô vous, laissez-moi tranquille!
Puis, les ayant baisés tous bien tendrement,
Il s’évada d’avec eux d’un geste agile,
Leur laissant aux mains des pans de vêtement.

Le voyez-vous sur la tour la plus céleste
Du haut palais avec une torche au poing?
Il la brandit comme un héros fait d’un ceste:
D’en bas on croit que c’est une aube qui point.

Qu’est-ce qu’il dit de sa voix profonde et tendre
Qui se marie au claquement clair du feu
Et que la lune est extatique d’entendre?
« Oh ! je serai celui-là qui créera Dieu!

« Nous avons tous trop souffert, anges et hommes,
« De ce conflit entre le Pire et le Mieux.
« Humilions, misérables que nous sommes,
« Tous nos élans dans le plus simple des vœux,

« Ô vous tous, ô nous tous, ô les pécheurs tristes,
« Ô les gais Saints ! Pourquoi ce schisme têtu?
« Que n’avons-nous fait, en habiles artistes,
« De nos travaux la seule et même vertu!

« Assez et trop de ces luttes trop égales!
« Il va falloir qu’enfin se rejoignent les
« Sept Péchés aux Trois Vertus Théologales!
« Assez et trop de ces combats durs et laids!

« Et pour réponse à Jésus qui crut bien faire
« En maintenant l’équilibre de ce duel,
« Par moi l’enfer dont c’est ici le repaire
« Se sacrifie à l’Amour universel!»

La torche tombe de sa main éployée,
Et l’incendie alors hurla s’élevant,
Querelle énorme d’aigles rouges noyée
Au remous noir de la fumée et du vent.

L’or fond et coule à flots et le marbre éclate;
C’est un brasier tout splendeur et tout ardeur;
La soie en courts frissons comme de l’ouate
Vole à flocons tout ardeur et tout splendeur.

Et les satans mourants chantaient dans les flammes
Ayant compris, comme s’ils étaient résignés!
Et de beaux chœurs de voix d’hommes et de femmes
Montaient parmi l’ouragan des bruits ignés.

Et lui, les bras croisés d’une sorte fière,
Les yeux au ciel où le feu monte en léchant,
Il fit tout bas une espèce de prière
Qui va mourir dans l’allégresse du chant.

Il dit tout bas une espèce de prière,
Les yeux au ciel où le feu monte en léchant…
Quand retentit un affreux coup de tonnerre,
Et c’est la fin de l’allégresse et du chant.

On n’avait pas agréé le sacrifice:
Quelqu’un de fort et de juste assurément
Sans peine avait su démêler la malice
Et l’artifice en un orgueil qui se ment.

Et du palais aux cent tours aucun vestige,
Rien ne resta dans ce désastre inouï,
Afin que par le plus effrayant prodige
Ceci ne fût qu’un vain rêve évanoui…

Et c’est la nuit, la nuit bleue aux mille étoiles;
Une campagne évangélique s’étend
Sévère et douce, et, vagues comme des voiles,
Les branches d’arbres ont l’air d’ailes s’agitant.

De froids ruisseaux courent sur un lit de pierre;
Les doux hiboux nagent vaguement dans l’air
Tout embaumé de mystère et de prière ;
Parfois un flot qui saute lance un éclair.

La forme molle au loin monte des collines
Comme un amour encore mal défini,
Et le brouillard qui s’essore des ravines
Semble un effort vers quelque but réuni.

Et tout cela comme un cœur et comme une âme,
Et comme un verbe, et d’un amour virginal,
Adore, s’ouvre en une extase et réclame
Le Dieu clément qui nous gardera du mal.

Salman Rushdie e a questão da verdade

Neo-realismo italiano, Tromboli de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergaman

Neo-realismo italiano, Tromboli de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergaman

“Um indivíduo não pode auxiliar ou salvar uma época,
tudo o que pode é mostrar que ela está perdida.”
Kierkegaard, citado por George Steiner

Declaração de convicções: a minha principal palavra maldita é a verdade, relembro que ao longo da história foi usada como razão para apagar, biológica, artística ou cientificamente milhões de elementos que num determinado momento e contexto fugiam ao verdadeiro instituído. A verdade platónica tinha um acesso limitado e o uso seria sábio, o problema foi a sua massificação simplória, excitando-se a massas com ideias de verdade destrutivas (do regime nazi ao literal neo-realismo maoista, passando pelos múltiplos e incontroláveis ódios religiosos ou nacionalistas).

No artigo para The New Yorker de 31 de Maio, Salman Rushdie regressa ao problema da verdade. A palavra é simples e parece apropriada para abrir caminho através da confusão e da complexidade. Acabando com “é verdade” ou “é mentira”, as discussões seriam de uma facilidade sem mais, todos saberiam o próximo passo a dar, sem equívocos, hesitações ou impasses. Num certo sentido, estaríamos próximos do hegelianismo que vê o curso da história orientar-se por um mapa lógico, terminando numa coincidência entre verdade e acção, para lá da história (tese retomada, embora noutros termos, por Francis Fukuyama no seu The End of History and the Last Man). Ilusão encantatória que recupera uma parte da declaração agostiniana de que “amamos tanto a verdade que se amamos outra coisa além dela queremos que o que amamos se torne verdade.” (Confissões, X, 25, 34).

Ora, o que nos diz Rushdie? A era actual das “fake news” (ver o ensaio “Pós-verdade e pós-modernidade” publicado na Enfermaria 6), com a velocidade alucinante a que circulam os discursos (discorrer por palavras ou imagens) e o nivelamento da credibilidade dos produtores e divulgadores nas redes sociais, erodiu velhos critérios de verificação e aceitação. Agora, tudo pode ser considerado verdadeiro, e o verdadeiro, por sua vez e com a mesma facilidade, pode ser considerado falso. Isto é bem diferente do entendimento da verdade como algo que pode e deve ser contestada (“The truth is that truth has always been a contested idea.”, Rushdie), porque os factos são históricos, acontecem numa constelação de sentido que varia com o tempo e a perspectiva cultural que enquadra a interpretação. É por isso, escreve Rushdie, que “The past is constantly revised according to the attitudes of the present”.

Ainda assim, a era de ouro do romance realista (séc. XIX, coincidindo com a emergência das várias formas de positivismo científico) e a herança que deixou nas linhas que dele se inspiraram (no fundo, todos os neo-realismos) marcou uma vontade e desenhou um estilo que queria e sabia descrever a realidade, ou melhor, as realidades. Neste caso, havia consenso em torno de um verdadeiro alargado, a ficção estava, estranhamente, ao servido do real. Mas o século XX, depois de tentativas de continuidade, como o Buddenbrooks de Thomas Mann (aliás, desconstruído logo a seguir pela Montanha Mágica do mesmo autor), desenvolveu uma complexidade tal que mostrou a fragilidade do monoparadigmatismo oitocentista. Em consequência, Rushdie acredita que actualmente se explica melhor o mundo através da diversidade de narrativas, muitas vezes incompatíveis. Se explica e se combatem mais eficazmente os novos autoritarismos (administração Modi na Índia, trumpismo...) ou ilusões nacionalistas como o Brexit. Cada narrativa será composta por argumentos que se aliam ou combatem outros argumentos, deste jogo argumentativo tendencialmente agónico, acredita Rushdie, surgirão verdades capazes de compor ou alimentar sociedades. Sempre provisoriamente, o jogo é infinito, nas sociedades abertas (como sabemos, o termo é de Henri Bergson mas foi Karl Popper quem o tornou famoso em The Open Society and Its Enemies) um complexo argumentativo será substituído por outros, sem revoluções epistemológicas ou estéticas radicais (sobretudo, sem violência despropositada), nas sociedades mais multiculturais coexistirão até diferentes complexos. Será, então, esta diversidade argumentativa que, na dinâmica de um work in progress, desenhará sentidos para o mundo, não verdades perenes e dogmáticas, mas sentidos. Uns mais fortes do que outros, uns mais duradouros outros mais efémeros, mas todos provisórios. E desta forma se evitarão os objectivismos que suportam autoritarismos. Bem-vindos a era do relativismo são.