Livros a mais

Thomas Williams

Não há livros a mais, assim como não há amizade a mais ou beleza a mais. Thomas Williams, escritor norte-americano, ajuda-nos a dar sentido ao que muitos consideram a loucura da desmesura livresca: uma boa ou má húbris, a hipertrofia de uma biblioteca composta por parcelas cada vez mais vastas de porler (neologismo que creio ter forjado há algum tempo para um artigo da Enfermaria 6). A «antibiblioteca», como lhe chama Nassim Taleb, é mais importante do que a própria biblioteca. Mudar de paradigma axiológico acerca do valor do que ainda não foi lido talvez implique começar por conjurar linguisticamente o que parece supérfluo ou inútil — como fizeram os japoneses com o termo tsundoku.

Vejamos o que Williams tem para nos dizer na entrevista abaixo, traduzido por Victor Gonçalves do jornal Le Monde (publicada a 22 de agosto de 2025).

«Quando eu tinha 22 anos e morava em Lille, pedi um dia à minha mãe que me enviasse a edição em seis volumes da gigantesca obra Em Busca do Tempo Perdido. Todas as tardes ou noites chuvosas eram então dedicadas ao projeto de terminar aqueles milhares de páginas. Para minha grande tristeza, essa empreitada permanece inacabada — na verdade, ainda não consegui ir além de A l’ombre des jeunes filles en fleurs. Mas o simples facto de ler Proust transformou-me e deu-me confiança em mim mesmo: tornei-me alguém que lê Proust, ou seja, um homem novo. Aliás, continuo a considerar-me alguém que, um belo dia, terá lido Proust, ou mesmo alguém que relerá Proust (ficamos com isso para o próximo verão, ou talvez para o seguinte!). Os bibliófilos experientes reconhecer-se-ão facilmente nestas linhas.

Tal como vestir-se ou viajar, ler é uma atividade que, em última análise, pode estar ao serviço de uma ambição. Trata-se de nos reinventarmos, de nos imaginarmos mais fortes, mais autênticos, capazes de se nos elevar acima das circunstâncias e de ganhar um novo impulso para enfrentar o mundo. Assim, surge uma outra versão de nós mesmos: parecida connosco, mas um pouco mais sofisticada, mais interessante, mais próxima daquilo que gostaríamos de ser... E então esforçamo-nos para moldar a vida real a esse ideal. É assim que começamos a assemelhar-nos com o que o poder indomável da imaginação nos permitiu vislumbrar.

Este verão, parece que, sem dar por isso, adquiri algumas dezenas de livros novos. Uma biografia de James Baldwin com 600 páginas, outra de William F. Buckley Jr. com quase 1000 páginas, poesia com Henri Cole e Ishion Hutchinson, ficção com Joyce Carol Oates, história da arte com livros sobre Max Beckmann ou Hieronymus Bosch, a coleção de relatos de viagem de um amigo que se aventurou da Turquia ao México... e muitos outros, demasiados para citar.

Comprei alguns e outros foram-me enviados para recensear na revista The Atlantic. Todos, sem exceção, despertaram em mim um desejo irreprimível de leitura. Mas esse desejo choca com a realidade matemática do meu quotidiano: é simples, não tenho tempo suficiente para ler todos esses livros. Não agora, pelo menos. É a desculpa a que me agarro à medida que as minhas paredes se cobrem de estantes adicionais e as minhas pilhas de livros continuam a crescer. Quando era mais jovem, sentia-me culpado por não conseguir ler tanto quanto gostaria. Mas, com o passar dos anos, passei a ver uma certa beleza, e até mesmo uma forma de nobreza, em acumular à minha volta mais escritos — mais pensamentos — do que se pode consumir numa vida inteira.

Tarefa hercúlea

O criador de moda Karl Lagerfeld (1933-2019) frequentava a minha livraria parisiense favorita, a Galignani, na rue de Rivoli, e a sua casa, nas proximidades, abrigava uma biblioteca absolutamente lendária, com 250 000 títulos no momento da sua morte, em 2019. O escritor italiano Umberto Eco tinha «apenas» 30 000 a 50 000 livros, mas, segundo os seus cálculos, esse número representava ainda assim um volume de leitura impossível de alcançar numa só vida. Ler um livro por dia durante setenta anos seguidos perfaz apenas um total de 25 000 títulos. Existe um vídeo no YouTube que nos permite acompanhar o escritor pela sua biblioteca labiríntica — um passeio tão exaustivo quanto fascinante.

Há quinze anos, publiquei Losing My Cool [Une soudaine liberté, traduzido do inglês (EUA) por Colin Reingewirtz, Grasset, 2019], que narra em parte a minha infância num subúrbio residencial de Nova Jérsia, onde o meu pai formara uma biblioteca com pelo menos 15 000 títulos. Os livros empilhavam-se nas paredes, em todas as superfícies, em todos os cantos disponíveis, e até na casa de banho, na cozinha, na garagem, na lavandaria e no sótão. É possível ler 15 000 livros numa vida — e o meu pai tenta (ainda e sempre, o que me encanta) corajosamente alcançar esse objetivo —, mas a tarefa é hercúlea.

«É irracional pensar que é preciso ler todos os livros que se compram, assim como é irracional criticar aqueles que compram mais livros do que podem ler», disse Umberto Eco. Na vida, há coisas das quais é preciso ter sempre uma reserva abundante, mesmo que, no fim, só se use uma parte.»

Ao longo das décadas, eu próprio acumulei alguns milhares de livros; eles têm valor suficiente para mim para que eu me esforce ao máximo para os enviar para o outro lado do oceano quando tenho de me mudar – mesmo aqueles que não li, mas cuja presença me tranquiliza sempre que o olhar se detém na sua lombada familiar. Acabei por compreender que não são tanto um fardo, mas sim uma forma de riqueza, no sentido literal da palavra.

Em The Black Swan [Le Cygne noir. La puissance de l’imprévisible, traduzido do inglês (EUA) por Christine Rimoldy, Les Belles Lettres, 2021], Nassim Nicholas Taleb vai mais longe, afirmando que os livros que já lemos têm menos valor do que os ainda não abertos: «[…] À medida que envelhecemos, acumulamos mais conhecimento e obras, e o número crescente de livros não lidos que povoam as prateleiras da nossa biblioteca fita-nos de forma ameaçadora. De facto, quanto mais sabemos, mais aumentam as filas de livros não lidos. Chamemos “antibiblioteca” a esse conjunto de livros não lidos.»

Milagre temporal

A palavra «antibiblioteca» soa um pouco estranha, mas talvez haja uma opção melhor na língua japonesa com tsundoku, ou seja, «uma pilha de livros comprados, mas ainda não lidos». O fenómeno tem uma dimensão bastante positiva, sobretudo se concordarmos com o que explica um artigo memorável do The New York Times, assinado por Kevin Mims, de 2018: «A biblioteca de uma pessoa é muitas vezes uma representação simbólica da sua mente. Uma pessoa que deixou de aumentar a sua biblioteca pessoal talvez tenha chegado a um ponto em que pensa que sabe tudo o que precisa saber e que nada do que não sabe a pode prejudicar. Já não tem o desejo de crescer intelectualmente. A pessoa cuja biblioteca está sempre a crescer compreende a importância de manter uma mente curiosa, aberta a novas vozes e ideias.»

É isso que me parece tão crucial — até transcendente — na aquisição quase perpétua de livros em formato físico, erigida como um modo de vida. Mesmo e talvez especialmente na era dos livros eletrónicos e dos recursos digitais ilimitados. E nunca qualquer apelo à frugalidade ou ao pragmatismo me convencerá de que não vale a pena.

Os livros não são apenas uma forma de informação ou comunicação entre outras, num mundo onde estas duas grandes fontes de distração abundam. São antes uma tecnologia extraordinária, capaz de realizar uma espécie de milagre temporal. O próprio tempo contrai-se entre o autor e o leitor, e anos de reflexão conseguem ser articulados, afinados e transmitidos num formato que pode ser absorvido em apenas algumas horas.

O meu terceiro livro, Summer of Our Discontent, acaba de ser publicado em inglês, comecei a escrevê-lo na primavera de 2021, mas só terminei as revisões no outono de 2024, revendo minuciosamente ideias e frases já lidas centenas de vezes, na esperança de alcançar a expressão mais pura. No entanto, em não mais de oito horas qualquer pessoa o pode ler. Escrever e ler são atividades fundamentalmente diferentes deste ponto de vista. Por isso, parece-me útil considerar os livros que nos rodeiam — e, em particular, todos os tesouros que ainda esperam ser descobertos — não em função do espaço que ocupam nas nossas estantes, mas sim pela imensa extensão de tempo que nos permitem explorar.

Tudo o que a mente humana pode produzir de melhor e mais completo num século pode caber num metro de livros. Para mim, é mesmo a oportunidade [affaire] perfeita.»

Revisão

Quando revemos, é como se reescrevêssemos um texto ad infinitum. Desejamos encontrar sempre mais uma falha, sendo que por vezes ela é apenas um traço muito próprio de ser texto. O revisor, autor-revisor, quer alcançar a perfeição, a exacta perfeição. Em vão (mas é um «em vão» que não desmobiliza), trata-se de um projecto assintótico. A aproximação conserva uma distância incomensurável (ia dizer «sagrada») entre o que está escrito (que pode ser muito bom, até excelente, merecer louvores e tudo) e a perfeição. Trata-se, então, de um movimento, intelectual e espiritual, que conhece o fracasso por antecipação (esforço sisífico). Não porque a perfeição seja uma palavra-miragem. Não! Mas porque não se deixa capturar, está para lá do rigor mortis e dos jogos de interpretação, para lá de qualquer armadilha taxonómica. Existe num plano que desconhecemos, mas desejamos. É totémica.

De todo o modo, perseveramos. Às vezes por capricho, outras por pretensiosismo, mas também por um ímpeto sacrificial: querer morrer o mais tarde possível para alcançar a sintaxe correta que não obnubile a leveza do estilo, para descobrir a palavra justa de uma demonstração, para compor a melodia fonética de um parágrafo digna dos primeiros aedos (aqueles que só contavam histórias aos deuses).

Philip Roth, uma vítima do sucesso, deixou de escrever porque o processo de revisão era demasiado extenuante, demorava o dobro do já longo tempo da escrita. Mas talvez possamos escrever apenas para poder rever, custe o que custar. O esboço é a matéria a que nos atiramos com alguma impaciência, para alimentar o nosso desejo incandescente de aperfeiçoar, reordenar os detritos verbais. Assim, talvez escrevamos não para comunicar (haverá coisa mais banal?), mas sim para instaurar a possibilidade da revisão, angustiante e entusiasmante (como uma amante que parece não nos amar), em direcção à perfeição, mas um caminho sem Ítaca. Contudo, esse impulso não contraria o direito à imperfeição e ao erro; combate, sobretudo, a trivialidade.

Até porque, como diz Italo Calvino, “A mentira não está no discurso, está nas coisas.” Ou seja: o discurso, a escrita serve para criar mundos, não para nos submetermos às leis e aos factos do que foi sendo reificado; primeiro pelos mitos, depois pelas religiões absolutistas, em seguida pela ciência e agora pela política construtivista e pelo marketing. Sem o critério da verdade, o discurso em si, antes de se referir ao mundo, deve ser codificado segundo um elevado grau de necessidade, respeitando e superando as leis, respeitando e superando a própria linguagem (o mesmo é dizer: o homem e Deus).

Claro que isso implica riscos. Os charlatães também se aproveitam da repoetização do mundo, fabricando paralogismos grosseiros. Mas os homens deixarão de acreditar neles, prevê-se uma repulsa generalizada contra a vulgaridade das pequenas mentiras, das ilusões interesseiras, das facécias que retraem o riso. Quando isso acontecer (não será de uma só vez), teremos o reino dos autores-revisores, no qual, como desejava Georges Bataille, se poderá matar, sem sangue, por uma vírgula.

Nietzsche, Entre Amigos

Entre 1882 e 1884, Nietzsche redigiu um dos seus mais belos poemas. trata-se de um hino à felicidade e à amizade, à vida que vale a pena ser vivida como um incêndio que consome as paixões tristes.
A tradução é de Victor Gonçalves e integra a nova edição de Humano, demasiado Humano, a publicar em breve pelas Edições 70.

ENTRE AMIGOS
UM EPÍLOGO

1.

Belo é calar-se juntos,
Mais belo ainda rir juntos,
Debaixo do pano sedoso do céu,
Encostados ao musgo e à faia,
Amavelmente rindo com os amigos
E mostrar os dentes brancos.

Se o fiz bem, então calemo-nos;
Se o fiz mal — então riamos
E façamos sempre pior,
Fazer pior, rir pior,
Até ao fundo do poço.

Amigos! Sim! Assim será?
Ámen! E adeus!

2.

Nada de desculpas! Nada de perdão!
Concedei, vós os felizes, de coração livre,
A este livro irrazoável,
Orelha e coração e abrigo!
Acreditai-me, amigos, a minha desrazão
Não foi maldição!

O que eu encontro, o que eu procuro —
Esteve alguma vez num livro?
Honrai em mim o grémio de dementes!
Aprendei com este livro demencial,
Como a razão vem — «para a razão»!

Então, amigos, assim será?
Ámen! E adeus!

Mal-Estar na Civilização, Café Filosófico

O Victor, moi même (qui est un autre), no café filosófico da livraria Snob, Lisboa, a atirar setas conceptuais

Texto de divulgação:

Escolhemos pensar o mal-estar em geral a partir de um mal-estar específico: o da civilização, ou da cultura. Freud, o autor-totem deste café filosófico, podia separar o nosso mal-estar do bem-estar da natureza. Nós, pelo contrário, estamos quase obrigados a pensar um planeta inteiro, o orgânico e o inorgânico simultaneamente, atingido por uma doença mortal. Mas, como sugere Descartes, temos de dividir o problema nas partes que o constituem (continua a ser um método válido, desde que haja, depois, articulação entre os diferentes campos), começando, talvez, pelo mais urgente: o predomínio das paixões tristes.

Trump conseguiu sacudir o mundo com uma cartolina. Também, talvez sobretudo, porque não temos os pés assentes em terra firme. Não naquela que prende, para sempre, o humano a pulsões narcisistas, mas nessa outra que conserva em si matéria viva de poeira estrelar, corpúsculos elementares que, desde a origem, contêm já toda a poesia do mundo. Potência desbragada contra a inércia amparada num autocontentamento sem objeto.

É com Freud e o seu O Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, 1930) que iremos pensar o vendaval atual. Pensá-lo para o compreender e para tentar superar o pano de fundo psíquico do nevoeiro que, em Portugal, pode parir salvadores. Pode, mas não pare. Uma dinâmica e uma economia de pulsões (ou instintos) de vida e de morte comandam o nosso novo destino histórico. Sempre comandaram, aliás; mas agora as pulsões de morte parecem prevalecer. O superego civilizacional («amar o próximo como a si mesmo») mostra-se enfraquecido; agigantou-se, pelo contrário, o sentimento de culpa da humanidade, que pode, transmutando-se, manifestar-se num intempestivo desejo de vontade de poder.

Freud refere que os homens primitivos, com mecanismos de sublimação dos instintos destrutivos menos elaborados, eram um bando de assassinos. A civilização foi capaz de enquadrar e controlar esses instintos, mas, como nos mostraram as duas grandes Guerras, a atual redefinição de quase todas as relações geopolíticas, passando do primado da confiança para o da desconfiança, e os processos de desumanização difíceis de imaginar há algum tempo, talvez estejamos muito próximos desse «bando de assassinos».

Civilizados, bárbaros e assassinos

James abbott McNeill Whistler, Nocturne in grey and silver, c. 1872-74

Em Psychologie Heute, 1986, Peter Sloterdijk afirma que «somente o fim do mundo consegue mostrar o cumprimento do fim do mundo.» Podemos, pois, ficar descansados: o fim do mundo será, sem qualquer hipótese de remissão, o fim do mundo, um facto bruto e puro ao mesmo tempo, sem abertura para a interpretação (bruto) e liberto de qualquer economia da responsabilidade (puro). Por conseguinte, enquanto não chega o fim do mundo, deixemos de falar dele, já que nem a loucura disruptiva trumpista nos fornece a mais pálida ideia do que será. Reservemo-lo para o pré-reflexivo, vivamo-lo como uma parousia invertida (será mesmo invertida?).

Há uns anos, fez furor a ideia do «fim da história». Francis Fukuyama, hegeliano seletivo, parecia interpretar bem a ressaca festiva da conclusão da embriaguez triste da Guerra Fria. Os empedernidos da luta de classes, sonhadores mais e menos ativos, vieram para a rua cantar «a história continua!». E continuou. Aliás, o próprio Fukuyama escreveu, no artigo que deu origem ao seu livro mais famoso, que o fim da história entristecia, pois parecia ter exaurido a coragem, a audácia ou a imaginação («The End of History», The National Interest, verão 1989). Portanto, sentia-se que uma vontade bastante geral pretendia que o «espírito absoluto» não regulasse, mesmo sendo autorregulação, a finitude, a história. À minha maneira, percebendo que se militava dogmaticamente dos dois lados, esforcei-me por manter viva a ideia de Sigmund Freud, em Para Além do Princípio do Prazer, de que só a frustração arranca a vida à inércia. Resolvi, então, frustrar-me e frustrar, tornei-me um pequeno niilista especializado em curto-circuitar a esperança de uma paz perpétua, mais definitiva do que a do próprio Immanuel Kant, pois dominaria e não exigiria qualquer esforço, não provocando, assim, nenhuma frustração. Seria uma paz cinzenta, o cinzento de Peter Sloterdijk em Wer noch kein Grau gedacht hat. Ein Farbenlehre, cor que representa algo que «não foi tido em consideração». Uma paz deixada por sua conta, porque, finalmente, se julgava estar perante a Paz.

Talvez venha a propósito, visto que nem a Paz nem o fim do mundo se concretizaram, recuperar, primeiro, a distinção entre bárbaro e selvagem feita em 1976 por Michel Foucault no curso do Collège de France «Il faut défendre la société», e, em segundo lugar, por uma razão talvez mais estética do que teleológica (embora pareça o contrário), evocarei novamente Freud e, tudo o indica, a sua lucidez antropológica.

Para Foucault, o selvagem é sempre selvagem na selvajaria, juntamente com outros selvagens, se estabelecer relações sociais, deixa de o ser. Por sua vez, o bárbaro só é bárbaro em relação a um determinado ponto da civilização, mantendo-se, para salvaguardar a sua condição, fora desse mesmo ponto civilizado. Por isso, o bárbaro despreza e inveja a civilização, em relação à qual se mantém numa posição de «hostilidade e guerra permanente. O bárbaro não existe sem uma civilização que ele procura destruir e apropriar-se.» Ao contrário do selvagem, o bárbaro não entra na história fundando uma sociedade, «mas penetrando, incendiando e destruindo uma civilização.» Esta hermenêutica foucauldiana parece ser mais actual hoje do que na altura em que foi pensada, temos agora vários candidatos à figura do bárbaro, adornados, claro está, por uma película de verniz que os faz parecer apenas outra forma de ser civilizado.

Para Freud, o de O Mal-Estar na Civilização, os bárbaros não estão no exterior da civilização, todos nós mantemos um fundo de «homem primitivo», a civilização só nos pode resgatar pontualmente, ajudando-nos a recalcar os nossos instintos e fornecendo-nos vias relativas de felicidade através da arte, do amor, da beleza ou da religião. Nos dois casos, trata-se de processos de sublimação, que Freud traduz como «o destino forçado que a civilização impõe aos instintos.» Sem isso, continuaríamos a ser assassinos, como refere quase no final do livro: «Temos assim que nós próprios, a sermos julgados pelos nossos impulsos volitivos inconscientes, somos também, tal como os homens primitivos, um bando de assassinos.»

Hoje, num paroxismo que se preparou durante muito tempo e que agora resolveu acelerar em várias direções (talvez nem todas conduzam para abismos), há legiões de bárbaros que não querem, ou não sabem, recalcar e sublimar os instintos primitivos. Por isso, é legítimo pensar que há muito que não se viam tantas pulsões destrutivas. Embora mantenha, acompanhado por Sloterdijk, o que disse na abertura deste texto: não sabemos quando, nem como, chegará o fim do mundo.