Banda desenhada

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O dia começou bem. Um simpático e-mail anuncia-me que a Comixology, o site de banda desenhada da Amazon, está a fazer saldos de verão nas listas da Marvel e da DC. Isso significa que os três volumes que reúnem os livros de Daredevil de Frank Miller e Klaus Janson, quase mil páginas de acrobático combate ao crime, pontuado por dilemas morais inesperados em alguém que decide passar as noites a saltar de telhado em telhado num fato vermelho de material indeterminado mas desconfortavelmente justo, deixarão finalmente o limbo da minha wishlist. E não vêm sozinhos: Marvel 1602, de Neil Gaiman, dois volumes de Doom Patrol, e os volumes de The Ultimates que me faltam far-lhe-ão companhia. Um dia de caça feliz.

Uma boa parte das nossas paixões têm origem difusas, que nós somos incapazes de precisar, e nem nisso temos grande interesse. O meu amor por banda desenhada é um dos poucos cuja etiologia sou capaz de mapear.

O meu pai tinha-me levado para casa dos meus avós, no Porto, para passar lá os meses de verão, como sucedia sempre. Para ter com que me entreter, o meu pai comprou todos os livros de banda desenhada a que conseguiu lançar mão, e deixou-os com o meu avô, com instruções de me dar um livro novo todos os dias. Eu tinha então nove anos. Os dias passavam com uma regularidade fácil: de manhã íamos à praia, a Espinho, ou à piscina de Leça. Nesse ano o meu avô ensinou-me a nadar. Almoçávamos na praia e regressávamos a casa depois de almoço. Por vezes passávamos pelo clube de vídeo e trazíamos um filme, uma comédia, um western ou um filme de acção. Creio que foi esse o Verão em que o meu avô e eu vimos o Sozinho em Casa quatro vezes. A rotina era interrompida pela ocasional ida ao cinema: numa sessão de Robim dos Bosques: Príncipe dos Ladrões, no defunto cinema da Batalha, uns adolescentes sentados no balcão divertiram-se a usar a careca do meu avô, sentado em baixo, como alvo de pipocas e cuspo. A minha avó e eu estávamos sentados mais à frente na sala e não nos apercebemos e quando, no final do filme, ele nos contou do sucedido, com a sua habitual pacatez, nós não conseguimos conter o riso.

E havia muito tempo para se estar sozinho, algo que já então eu amava. Podia perder-me na sombra do meu quarto a fazer desenhos, que depois a minha avó avaliaria, a brincar, e havia um novo livro de banda desenhada para saborear todos os dias. Durante esses dois meses os X-Men combateram tragicamente a Fénix Negra, o Homem Aranha uma série de inimigos – Duende Verde, Duende Macabro, o Homem de Areia –, cada qual mais exótico do que o outro, fui apresentado aos X-Force, o Destruidor e o Justiceiro tiveram uma série de encontros inconclusivos. Os dias eram longos, bons e saudáveis, a casa grande, e eu sentia-me seguro, rodeado por pessoas que me amavam, e que me incitavam a ser curioso e a seguir os meus interesses.

A minha avó morreu há dois anos, o meu avô há poucos meses. A ausência deles é sentida mais do que nunca no dia do meu aniversário. Todos os anos eles viajavam, do Porto a Almada, para estarem presentes, até a saúde deixar de o permitir.

Talvez o que de mais valioso fazemos na vida nasça de uma tentativa, nobre pela sua fidelidade, de reparar a memória de uma felicidade mitificada. Seria fácil, e um enorme cliché, dizer que o gesto é fútil. É fútil apenas na medida em que todos morremos. Estamos aqui e agora, agarramo-nos ao que podemos para continuar. Haverá muito tempo para morrer depois.

 

PS. Muito obrigado a todos pelas mensagens de parabéns. Espero que os envelopes com dinheiro que certamente enviaram cheguem depressa. Conto com eles para pagar a dívida que contraí hoje em banda desenhada.

Salman Rushdie e a questão da verdade

Neo-realismo italiano, Tromboli de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergaman

Neo-realismo italiano, Tromboli de Roberto Rossellini, com Ingrid Bergaman

“Um indivíduo não pode auxiliar ou salvar uma época,
tudo o que pode é mostrar que ela está perdida.”
Kierkegaard, citado por George Steiner

Declaração de convicções: a minha principal palavra maldita é a verdade, relembro que ao longo da história foi usada como razão para apagar, biológica, artística ou cientificamente milhões de elementos que num determinado momento e contexto fugiam ao verdadeiro instituído. A verdade platónica tinha um acesso limitado e o uso seria sábio, o problema foi a sua massificação simplória, excitando-se a massas com ideias de verdade destrutivas (do regime nazi ao literal neo-realismo maoista, passando pelos múltiplos e incontroláveis ódios religiosos ou nacionalistas).

No artigo para The New Yorker de 31 de Maio, Salman Rushdie regressa ao problema da verdade. A palavra é simples e parece apropriada para abrir caminho através da confusão e da complexidade. Acabando com “é verdade” ou “é mentira”, as discussões seriam de uma facilidade sem mais, todos saberiam o próximo passo a dar, sem equívocos, hesitações ou impasses. Num certo sentido, estaríamos próximos do hegelianismo que vê o curso da história orientar-se por um mapa lógico, terminando numa coincidência entre verdade e acção, para lá da história (tese retomada, embora noutros termos, por Francis Fukuyama no seu The End of History and the Last Man). Ilusão encantatória que recupera uma parte da declaração agostiniana de que “amamos tanto a verdade que se amamos outra coisa além dela queremos que o que amamos se torne verdade.” (Confissões, X, 25, 34).

Ora, o que nos diz Rushdie? A era actual das “fake news” (ver o ensaio “Pós-verdade e pós-modernidade” publicado na Enfermaria 6), com a velocidade alucinante a que circulam os discursos (discorrer por palavras ou imagens) e o nivelamento da credibilidade dos produtores e divulgadores nas redes sociais, erodiu velhos critérios de verificação e aceitação. Agora, tudo pode ser considerado verdadeiro, e o verdadeiro, por sua vez e com a mesma facilidade, pode ser considerado falso. Isto é bem diferente do entendimento da verdade como algo que pode e deve ser contestada (“The truth is that truth has always been a contested idea.”, Rushdie), porque os factos são históricos, acontecem numa constelação de sentido que varia com o tempo e a perspectiva cultural que enquadra a interpretação. É por isso, escreve Rushdie, que “The past is constantly revised according to the attitudes of the present”.

Ainda assim, a era de ouro do romance realista (séc. XIX, coincidindo com a emergência das várias formas de positivismo científico) e a herança que deixou nas linhas que dele se inspiraram (no fundo, todos os neo-realismos) marcou uma vontade e desenhou um estilo que queria e sabia descrever a realidade, ou melhor, as realidades. Neste caso, havia consenso em torno de um verdadeiro alargado, a ficção estava, estranhamente, ao servido do real. Mas o século XX, depois de tentativas de continuidade, como o Buddenbrooks de Thomas Mann (aliás, desconstruído logo a seguir pela Montanha Mágica do mesmo autor), desenvolveu uma complexidade tal que mostrou a fragilidade do monoparadigmatismo oitocentista. Em consequência, Rushdie acredita que actualmente se explica melhor o mundo através da diversidade de narrativas, muitas vezes incompatíveis. Se explica e se combatem mais eficazmente os novos autoritarismos (administração Modi na Índia, trumpismo...) ou ilusões nacionalistas como o Brexit. Cada narrativa será composta por argumentos que se aliam ou combatem outros argumentos, deste jogo argumentativo tendencialmente agónico, acredita Rushdie, surgirão verdades capazes de compor ou alimentar sociedades. Sempre provisoriamente, o jogo é infinito, nas sociedades abertas (como sabemos, o termo é de Henri Bergson mas foi Karl Popper quem o tornou famoso em The Open Society and Its Enemies) um complexo argumentativo será substituído por outros, sem revoluções epistemológicas ou estéticas radicais (sobretudo, sem violência despropositada), nas sociedades mais multiculturais coexistirão até diferentes complexos. Será, então, esta diversidade argumentativa que, na dinâmica de um work in progress, desenhará sentidos para o mundo, não verdades perenes e dogmáticas, mas sentidos. Uns mais fortes do que outros, uns mais duradouros outros mais efémeros, mas todos provisórios. E desta forma se evitarão os objectivismos que suportam autoritarismos. Bem-vindos a era do relativismo são.

Uma espécie de editorial

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por Cassandra Jordão e Victor Gonçalves

Teóricos marxistas decretaram o fim da arte do romance em meados da segunda década do século passado e passaram o resto do seu tempo livre a tentar recolher os cacos. Antes de todos os romancistas que vieram depois e provaram a conclusão errada, antes disso,  há àquela corrida até ao eléctrico algures na Baixa de Lisboa, dividida entre Carlos Eduardo da Maia e João da Ega em Os Maias, na qual, em jeito de epílogo cinematográfico, se declara que ambos tinham falhado a vida. Incesto e ambições literárias frustradas à parte, as implicações desta declaração para a história da literatura em português, para a obra do próprio Eça, são aprendidas de cor por estudantes de ensino secundário em Portugal e podem ser sumariamente citadas. Nesse momento, Eça mede, numa cena que ele sabe que faria para sempre parte de um museu afectivo de cenas maiores da literatura portuguesa, o hiato da desadequação entre a imensa promessa da sua geração, os seus sonhos de autor e a realidade. Ega e Carlos Eduardo então como arquétipos não só da sua geração, mas da literatura da sua geração. Sem grandes melancolias, depois disso Eça prossegue para se dedicar ao mesmo tipo de prazer culpado que entretiveram os seus heróis em França: o romance histórico, novelas em que personagens principais se dividem esquizofrenicamente entre um amor barroco ao enciclopedismo e à tecnologia e ao bucolismo, e a criar uma das personagens mais interessantes e inquietantes da história da literatura em português, esse Fradique Mendes que de algum modo olha para a frente, para a inquietude e para a mente colorida que encontraríamos mais tarde nos heterónimos de Pessoa.

            Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site em 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

Quanto a mim, Victor Gonçalves, acredito que outras teorias além da marxista, ou marxiana (espreito os puristas em cada esquina), quiserem enterrar o romance, ou pelo menos um romance que se estivesse borrifando para a reparação da sociedade, porque não será isso que em primeiro lugar lhe compete, apesar de todas as vagas realistas e neo-realistas. Houve uma onda quase mortífera de utilitarismo que varreu todos os modos de ser supérfluos, justamente esses que fizeram do ser humano algo mais do que um caracol (sem especismos). Mas enfim, somos animais de linguagem e, por isso,  insistimos em ligar palavras a palavras, frases a frases, parágrafos a parágrafos... continuamos, apesar dos pesados decretos legalistas e das diatribes das brigadas da seriedade, a escrever ficção. Poesia ou Prosa (e as entremeadas estilísticas), mais romanceada ou mais conceptualizada, experimentando vias de sentido que julgamos inéditas ou revisitando outras já constituídas. É o amor à palavra que alimenta quase diariamente o nosso Blog, e muitos são os que vivem nesta paixão (não se perca a ambivalência do termo), alimentando-a. Sem cerca de uma centena de escritores que nos doam os seus textos nada disto seria possível, a eles o nosso profundo agradecimento. É verdade que não estão todos presentes literalmente nesta antologia, mas fazem parte da constelação que mantém vivo o projecto.

A filosofia deve explicar a totalidade

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Jürgen Habermas deu uma entrevista ao El Pais, disponível aqui. Falou da sua linhagem marxista (apesar de agora se inspirar em Emmanuel Macron), ele que é o último sobrevivente da Escola de Frankfurt, das rápidas mudanças provocadas pelos novos meios de comunicação de massa, da atomização da opinião pública, com as múltiplas parcelas que a constituem a lerem e verem apenas o que encaixa na sua visão do mundo, anulando-se a velha figura do intelectual público, capaz de formar opiniões através do esclarecimento (ainda há intelectuais, diz, mas já não existem leitores para eles), referiu-se também às migrações massivas, consequência do colonialismo e do capitalismo, e até se mostrou favorável a um patriotismo constitucional, na medida em que uma Constituição é lavrada pela história de um país. É neste sentido que se vê como um patriota alemão.

Por tudo isto, a entrevista tem o maior interesse para esses leitores que ainda mantêm viva a necessidade de apanhar ideias diferentes das suas, vindas de alguém que aponta cuidadosamente antes de disparar (a metáfora é dele). Mas o que me motiva mais a escrever esta nota é o que diz acerca da filosofia. Como sabemos (força de expressão), a filosofia está em declínio, à força de querer ser mais uma ciência, com protocolos de rigor que decidam da validade ou invalidade do que se diz, deixou de pensar nos problemas tradicionais que durante séculos fizeram dela o espaço privilegiado do pensamento crítico. E para Habermas eles são aqueles que Immanuel Kant formulou no final da Crítica da Razão Pura: o que posso saber? o que posso fazer? o que me é dado esperar? o que é o ser humano? Ora, estes problemas são globais, não é possível responder-lhes com uma filosofia redutoramente especializada em encontrar, através de uma lógica modal, na melhor das hipóteses, o que torna um discurso válido, logicamente válido (mimetiza-se Ludwig Wittgenstein sem o aparato complexo da sua genialidade). Para Habermas, a filosofia “devia tratar de explicar a totalidade, contribuir para a explicação racional da nossa maneira de nos entendermos a nós mesmos e ao mundo.”