Uma espécie de editorial

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por Cassandra Jordão e Victor Gonçalves

Teóricos marxistas decretaram o fim da arte do romance em meados da segunda década do século passado e passaram o resto do seu tempo livre a tentar recolher os cacos. Antes de todos os romancistas que vieram depois e provaram a conclusão errada, antes disso,  há àquela corrida até ao eléctrico algures na Baixa de Lisboa, dividida entre Carlos Eduardo da Maia e João da Ega em Os Maias, na qual, em jeito de epílogo cinematográfico, se declara que ambos tinham falhado a vida. Incesto e ambições literárias frustradas à parte, as implicações desta declaração para a história da literatura em português, para a obra do próprio Eça, são aprendidas de cor por estudantes de ensino secundário em Portugal e podem ser sumariamente citadas. Nesse momento, Eça mede, numa cena que ele sabe que faria para sempre parte de um museu afectivo de cenas maiores da literatura portuguesa, o hiato da desadequação entre a imensa promessa da sua geração, os seus sonhos de autor e a realidade. Ega e Carlos Eduardo então como arquétipos não só da sua geração, mas da literatura da sua geração. Sem grandes melancolias, depois disso Eça prossegue para se dedicar ao mesmo tipo de prazer culpado que entretiveram os seus heróis em França: o romance histórico, novelas em que personagens principais se dividem esquizofrenicamente entre um amor barroco ao enciclopedismo e à tecnologia e ao bucolismo, e a criar uma das personagens mais interessantes e inquietantes da história da literatura em português, esse Fradique Mendes que de algum modo olha para a frente, para a inquietude e para a mente colorida que encontraríamos mais tarde nos heterónimos de Pessoa.

            Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site em 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

Quanto a mim, Victor Gonçalves, acredito que outras teorias além da marxista, ou marxiana (espreito os puristas em cada esquina), quiserem enterrar o romance, ou pelo menos um romance que se estivesse borrifando para a reparação da sociedade, porque não será isso que em primeiro lugar lhe compete, apesar de todas as vagas realistas e neo-realistas. Houve uma onda quase mortífera de utilitarismo que varreu todos os modos de ser supérfluos, justamente esses que fizeram do ser humano algo mais do que um caracol (sem especismos). Mas enfim, somos animais de linguagem e, por isso,  insistimos em ligar palavras a palavras, frases a frases, parágrafos a parágrafos... continuamos, apesar dos pesados decretos legalistas e das diatribes das brigadas da seriedade, a escrever ficção. Poesia ou Prosa (e as entremeadas estilísticas), mais romanceada ou mais conceptualizada, experimentando vias de sentido que julgamos inéditas ou revisitando outras já constituídas. É o amor à palavra que alimenta quase diariamente o nosso Blog, e muitos são os que vivem nesta paixão (não se perca a ambivalência do termo), alimentando-a. Sem cerca de uma centena de escritores que nos doam os seus textos nada disto seria possível, a eles o nosso profundo agradecimento. É verdade que não estão todos presentes literalmente nesta antologia, mas fazem parte da constelação que mantém vivo o projecto.