Metades de uma laranja

I
quando Maria se perdeu 
no deserto 
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos
seios enviuvados 

II
o tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação

III
escreveram nas paredes 
que os pombos tombaram 

IV
o teu filho morreu 
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes 

V
esses olhos nunca mais voltarão a cair  
aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas 

VI
ventre da manhã
os tambores já não tocam 
nesta cidade

Raymond Carver, "Vocês não sabem o que é o amor (uma noite com Charles Bukowski)"

Tradução: João Coles

Vocês não sabem o que é o amor disse Bukowski
Tenho 51 anos e olhem para mim
estou apaixonado por uma miúda
Fiquei apanhado mas ela também ficou agarrada
portanto tudo bem e é assim que deve ser
Entro-lhes no sangue e elas já não conseguem livrar-se de mim
Elas tentam de tudo para dar à sola
mas voltam sempre ao fim e ao cabo
Todas elas voltam excepto
aquela que desanquei
Chorei por ela
mas tinha a lágrima fácil nessa altura
Não me dêem bebida da pesada
Fico intragável
Podia estar aqui sentado convosco e a beber cerveja toda a noite
seus hippies
Podia beber dez litros desta cerveja
e nada é como se fosse água
Mas se me derem bebida da pesada
começo a deitar pessoas pela janela fora
Atiro qualquer pessoa da janela
já fiz isso
Mas vocês não sabem o que é o amor
Vocês não sabem porque nunca
estiveram apaixonados é simples
Tenho esta miúda estão a ver ela é belíssima
Ela chama-me Bukowski
Bukowski diz ela com uma vozinha
e eu digo O que foi
Mas vocês não sabem o que é o amor
Estou a dizer-vos o que é
mas vocês não me estão a ouvir
Não há aqui ninguém
que reconhecesse o amor se ele irrompesse na sala
e vos rebentasse o cu
Antes costumava pensar que as leituras de poesia eram uma derrota
Oiçam tenho 51 anos conheço a vida
eu sei que são uma derrota
mas disse para mim mesmo Bukowski
morrer à fome é uma derrota ainda maior
Portanto aqui estamos nós e nada é como devia ser
Aquele fulano como é que ele se chama Galway Kinnell
vi a foto dele numa revista
Tem uma bonita fronha
mas é professor
Santo Deus conseguem imaginar
Mas vocês também são professores
e já aqui estou eu a insultar-vos
Não nunca ouvi falar deste
nem daquele
Todos eles são térmitas
Talvez seja do ego já não leio muito
mas esta gente que constrói
reputações em cinco ou seis livros
térmitas
Bukowski diz ela
Porque é que ouves música clássica o dia todo
Vocês não conseguem ouvi-la dizer isso
Bukowski porque é que ouves música clássica o dia todo
Isso surpreende-vos não é
Jamais diriam que um sacana dum desgraçado como eu
pudesse ouvir música clássica o dia todo
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Porra eu não conseguiria escrever aqui
Demasiado silêncio demasiadas árvores
Eu gosto da cidade é esse o meu lugar
Ponho música clássica a tocar a cada manhã
e sento-me à frente da minha máquina de escrever
acendo um charuto e fumo-o estão a ver
e digo Bukowski és um homem de sorte
Bukowski passaste por tudo
és um homem de sorte
e o fumo azul paira sobre a mesa
e olho da janela para a Delongpre Avenue
e vejo as pessoas a andar calçada a cima e calçada a baixo
e puxo o charuto assim
e depois pouso o charuto no cinzeiro assim
e respiro fundo
e começo a escrever
Bukowski isto é que é vida digo
é bom ser pobre é bom ter hemorróidas
é bom estar apaixonado
Mas vocês não sabem o que é
Vocês não sabem o que é estar apaixonado
Se a vissem compreenderiam o que quero dizer
Ela pensava que eu vinha aqui para o engate
Ela tinha a certeza
Ela disse-me que tinha a certeza
Foda-se tenho 51 anos e ela 25
e estamos apaixonados e ela tem ciúmes
é lindo meu Deus
ela disse-me que me arrancaria os olhos se eu viesse aqui para o engate
Isto sim é amor
E o que é que vocês sabem disso
Deixem-me que vos diga uma coisa
conheci homens na prisão com mais estilo
do que pessoas que vão às universidades
e a leituras de poesia
São sanguessugas que vêm ver se
as meias do poeta estão sujas
ou se cheira mal dos sovacos
Não os vou desapontar
Mas quero que se lembrem do seguinte
só há um poeta nesta sala hoje à noite
só um poeta nesta cidade hoje à noite
talvez só haja um verdadeiro poeta neste país hoje à noite
e esse poeta sou eu
O que é que vocês sabem da vida
O que é que vocês sabem de alguma coisa
Qual de entre vocês já foi despedido
ou já bateu na namorada
ou já levou da namorada
Fui despedido da Sears Roebuck cinco vezes
Despediam-me e depois contratavam-me de novo
Trabalhei para eles como repositor quando tinha 35 anos
e depois fui demitido por roubar bolachas
Eu sei como é já lá estive
Tenho 51 anos e agora estou apaixonado
Esta miúda diz assim
Bukowski
e eu digo O que foi e ela diz
És um grande merdas
e eu digo querida tu compreendes-me
Ela é a única pessoa no mundo
homem ou mulher
de quem admito isso
Mas vocês não sabem o que é o amor
Todas elas voltam para mim ao fim e ao cabo
todas elas voltaram
salvo a tal de quem vos falei
a que desanquei
Estivemos juntos durante sete anos
Bebíamos muito
Vejo alguns dactilógrafos nesta sala mas
não vejo nenhum poeta
Não me surpreende
É preciso ter estado apaixonado para escrever poesia
e vocês não sabem o que é estar apaixonado
é esse o vosso problema
Dá-me um bocado disso aí
Isso mesmo sem gelo
Está bom está óptimo
Vamos lá começar com isto então
Eu sei o que disse mas só tomo um
Sabe mesmo bem
Ok ora vamos lá acabar com isto
e que ninguém fique à beira
de uma janela aberta

in Beauty Will Save the World
(1972)


You don't know what love is (an evening with Charles Bukowski)

You don't know what love is Bukowski said
I'm 51 years old look at me
I'm in love with this young broad
I got it bad but she's hung up too
so it's all right man that's the way it should be
I get in their blood and they can't get me out
They try everything to get away from me
but they all come back in the end
They all came back to me except
the one I planted
I cried over that one
but I cried easy in those days
Don't let me get onto the hard stuff man
I get mean then
I could sit here and drink beer
with you hippies all night
I could drink ten quarts of this beer
and nothing it's like water
But let me get onto the hard stuff
and I'll start throwing people out windows
I'll throw anybody out the window
I've done it
But you don't know what love is
You don't know because you've never
been in love it's that simple
I got this young broad see she's beautiful
She calls me Bukowski
Bukowski she says in this little voice
and I say What
But you don't know what love is
I'm telling you what it is
but you aren't listening
There isn't one of you in this room
would recognize love if it stepped up
and buggered you in the ass
I used to think poetry readings were a copout
Look I'm 51 years old and I've been around
I know they're a copout
but I said to myself Bukowski
starving is even more of a copout
So there you are and nothing is like it should be
That fellow what's his name Galway Kinnell
I saw his picture in a magazine
He has a handsome mug on him
but he's a teacher
Christ can you imagine
But then you're teachers too
here I am insulting you already
No I haven't heard of him
or him either
They're all termites
Maybe it's ego I don't read much anymore
but these people who build
reputations on five or six books
termites
Bukowski she says
Why do you listen to classical music all day
Can't you hear her saying that
Bukowski why do you listen to classical music all day
That surprises you doesn't it
You wouldn't think a crude bastard like me
could listen to classical music all day
Brahms Rachmaninoff Bartok Telemann
Shit I couldn't write up here
Too quiet up here too many trees
I like the city that's the place for me
I put on my classical music each morning
and sit down in front of my typewriter
I light a cigar and I smoke it like this see
and I say Bukowski you're a lucky man
Bukowski you've gone through it all
and you're a lucky man
and the blue smoke drifts across the table
and I look out the window onto Delongpre Avenue
and I see people walking up and down the sidewalk
and I puff on the cigar like this
and then I lay the cigar in the ashtray like this and take a deep breath
and I begin to write
Bukowski this is the life I say
it's good to be poor it's good to have hemorrhoids
it's good to be in love
But you don't know what it's like
You don't know what it's like to be in love
If you could see her you'd know what I mean
She thought I'd come up here and get laid
She just knew it
She told me she knew it
Shit I'm 51 years old and she's 25
and we're in love and she's jealous
Jesus it's beautiful
she said she'd claw my eyes out if I came up here
and got laid
Now that's love for you
What do any of you know about it
Let me tell you something
I've met men in jail who had more style
than the people who hang around colleges
and go to poetry readings
They're bloodsuckers who come to see
if the poet's socks are dirty
or if he smells under the arms
Believe me I won't disappoint em
But I want you to remember this
there's only one poet in this room tonight
only one poet in this town tonight
maybe only one real poet in this country tonight
and that's me
What do any of you know about life
What do any of you know about anything
Which of you here has been fired from a job
or else has beaten up your broad
or else has been beaten up by your broad
I was fired from Sears and Roebuck five times
They'd fire me then hire me back again
I was a stockboy for them when I was 35
and then got canned for stealing cookies
I know what's it like I've been there
I'm 51 years old now and I'm in love
This little broad she says
Bukowski
and I say What and she says
I think you're full of shit
and I say baby you understand me
She's the only broad in the world
man or woman
I'd take that from
But you don't know what love is
They all came back to me in the end too
every one of em came back
except that one I told you about
the one I planted We were together seven years
We used to drink a lot
I see a couple of typers in this room but
I don't see any poets
I'm not surprised
You have to have been in love to write poetry
and you don't know what it is to be in love
that's your trouble
Give me some of that stuff
That's right no ice good
That's good that's just fine
So let's get this show on the road
I know what I said but I'll have just one
That tastes good
Okay then let's go let's get this over with
only afterwards don't anyone stand close
to an open window

Acerca da perfeição

São importantes as memórias de infância
Escrevemos sempre a partir de exemplos
e, durante algum tempo, os factos
confirmavam a vida imaginada

Existia, nesse livro antigo, um fotógrafo
excelente, no lugar do nome estava escrito  
anon, e era o mais distinto autor
Variedade pródiga das paisagens
flores explícitas, animais que estacavam
e exibiam o carácter selvagem
a nudez profunda e nua dos modelos
Os instrumentos da vida estavam 
só cansados de trabalhos
e de dias, abriam-se em sol
e nas devidas sombras

Vem logo alguém esclarecer
tratava-se afinal de uma cifra abreviada
expediente para dizer anónimo
despojos da arte verdadeira

Segundo exemplo, a música
que nos soava muito para lá
do número divino, a esplêndida
sétima daquele a quem chamavam
o enorme mestre de Bona

Logo percebemos que era versão
incompleta e, nos visíveis sulcos do vinil
acrescentaram um andamento
de uma oitava ainda não composta

Isto é, etiquetas que enganam
erros no momento de imprimir

Também se escrevem poemas
acerca da perfeição

Verde Dourado - Haikus 

 

Verde, verde, verde, 

nos olhos  

a Primavera. 

 

Em frente corre 

a humanidade -  

passa o ribeiro atrás. 

 

Silencioso o ribeiro 

corre eterno -  

passam carros na estrada. 

 

Onde estão as sombras 

para os cavalos 

do nosso descontentamento? 

 

Como o Sol na mica 

os teus olhos 

nos meus. 

 

Onde levam a pressa 

todos os pés 

sem saída? 

 

Passo os dedos 

nas páginas em branco -  

vontade do teu cabelo. 

 

Voltar a ter medo 

de todo o futuro 

num desconhecido. 

 

Pequenos salpicos 

as flores no prado -  

o Sol na tua cara. 

 

Neva nos olhos 

da menina -  

flores de cerejeira. 

 

Caem pétalas 

cor-de-rosa -  

leio Han-Shan. 

 

No chão e no passado 

todas as 

primaveras. 

 

Passa anónima 

aquela carne 

tão familiar. 

 

Quantas bicicletas 

e eu só 

no banco de jardim. 

 

Dia raro 

gotículas de suor 

relva aparada. 

 

Passam semanas 

sem sequer 

existires. 

 

Tão longe do Sena 

hoje 

em Montmartre. 

 

Não pode ser verde 

o que sinto 

porque arde. 

 

O vestido verde 

as calças pretas 

olhos nus. 

 

Por quem espera 

ao lado do candeeiro 

apagado? 

 

Tão sozinho  

há dias -  

felicidade. 

 

Vento quente 

na minha barba - 

os teus lábios ausentes. 

 

Chegam as flores 

de cerejeira 

e eu a casa. 

 

Onde foi 

a infância 

dos meus versos? 

 

As árvores 

quase eternas 

porque não lembram. 

 

Pode o Inverno durar 

mas o verde 

regressa sempre. 

 

Sobre o verde 

manto 

a eternidade. 

 

Nos olhos 

a eternidade 

sobre o verde manto. 

 

Gotas frias 

de chuva no pescoço 

até na Primavera. 

 

Há amores que duram 

verões 

outros infernos. 

 

Assenta o pó 

tudo perde 

a clareza. 

 

Depois da última 

cerveja 

tudo sabe a solidão. 

 

Lembro-me do 

David Carradine 

no dia do Anthony. 

 

Uma vida a balançar  

e acabar 

pendurado numa corda. 

 

Quantas voltas 

ao mundo 

no nó da corda. 

 

“Onde deixaste 

o cajado?” -  

ao lado da cegueira. 

 

No vento ouço 

aquela abelha 

à porta do cemitério. 

 

Está no Sol 

toda a vontade 

da iluminação. 

 

Nos beijos  

irrepetíveis 

a eternidade. 

 

Pode não salvar a vida 

a Bic preta 

mas salva. 

 

Quem me sonhas 

quando eu 

ainda acordado? 

 

O descanso 

depois da segada 

o teu púbis. 

 

O arco-íris 

usa apenas uma cor -  

meia-noite. 

 

No céu dourado 

a vontade 

do dia quente. 

 

De quem és 

fome de todos 

os sóis ausentes. 

 

Aqueles dias tristes 

hoje uma alegria -  

chove. 

 

Em cima do muro 

uma brisa quente -  

tempo das cerejas. 

 

Dias frios 

no verão -  

sabor a partida. 

 

Sabem a partidas 

os dias frios 

no Verão. 

 

A beleza do fim de Verão 

apenas no amadurecer 

das uvas. 

 

Quanto mosto 

desperdiçado 

na ausência. 

 

Na escuridão 

o ouro frio 

como qualquer metal. 

 

Chuva de Julho -  

olhos à janela 

da adolescência. 

 

Esconde-se no tinto 

a luz dos dias 

escuros. 

 

No bruxulear das velas 

todos os contos 

da infância. 

 

Abrir uma de Bordeaux 

e regressar 

com a caneta a Paris. 

 

Perde-se a vida 

num cigarro 

ganha-se num beijo. 

 

Temos o tempo 

em que podemos 

contá-lo. 

 

Sonhamos com o tempo 

que acabamos 

desperdiçando acordados. 

 

Dá-me um último 

beijo -  

esqueci o final. 

 

Escrever às escuras 

para encontrar nas sombras 

a verdade. 

 

Vinho tinto 

à luz das velas -  

não anoitece sequer. 

 

Água e luz 

algum tempo -  

nasce a beringela. 

 

Verde que se enrola 

gentilmente 

no esqueleto. 

 

1“Não me odeiem” - 

todas as canções 

um pedido. 

 

Ao fim da tarde 

o cheiro dourado 

do feno. 

 

Primavera- Verão 2018 

 

Turku-Helsínquia 

A Celeste do sétimo ano

Summer Evening by Edward Hopper.jpg

Não tem dentes na boca, a galdéria, nem um, apresenta a cremalheira partida, uma boquinha de bebé com as gengivas rosáceas. Os primeiros dentes tombaram à força dos estouros do Zé, o chulo. Os outros apodreceram de apodrecimento natural, e também porque a droga, quando mamada em abundância, é material que perdoa pouco. Coitada, ofertando felácio na esquina, pobre, logo a Celeste que era tão boa em termos de feições e beijocava de uma maneira que...ora bem, para descrever seus beijos teria de consultar enciclopédia e explicar o fenómeno das estrelas cadentes e da invasão de Marte por Arnold Schwarzenegger naquele esquecido filme de domingo. A língua de Celeste, bicho húmido, chupa-chupa, pirolito, metia ao barulho matemática, pintura, ciência, química e aromas. Celeste, desfigurada. E eu que a pedi em casamento no sétimo ano, na aula de inglês, perante o mumificado Luís Pedro, a melhor fotografia viva de pôr na campa que conheci. Luís Pedro, cábulas de plantão, empenhado em fazer voar a ponta do giz até à nuca do professor. A propósito de professor, isto de lecionar em Massamá esfalfa um santo. Ontem, de alma mirrada, buscava conforto nos beiços de uma menina de rua, e quem encontro, Celeste, a mesma do sétimo ano, agora na pocilga. Gorda, quiçá, mãe de três potros, casada com um devorador de feijoadas ou pedreiro ou jardineiro ou calceteiro ou canalizador, imaginava-a a fazer qualquer coisa menos associada a um gandulo agarrado à heroína, acometido por recorrentes impulsos de arrancar dentes ao soco. Celeste, debruçada sobre o carro, cuspia que o serviço me custaria dez biscas - pagas cinco no imediato, dez no fim, com gorjeta e taxa de juro, que isto é como nos bancos, pagas em cómodas modalidades, mas a dobrar. De modos que a Celeste, desdentada, me desabotoou as calças de ganga da Levi’s que a minha mãe comprou nos saldos. E não tardou a matar-me a saudade daquela vivacidade que só ela tem. Retomei o amor, pedi-a em casamento, ela aceitou, amanhã compraremos as anilhas de ouro e já planeamos fugir para o Brasil, uma vez que de má reputação estamos cheios até ao pescoço.