2018: “Um quarto em Atenas” e “Fuck the Polis”


“Memória é ter sede
e todo o futuro é sempre possível”

Tatiana Faia

“Espaço
que guarda a história de si mesmo e
também a do outro”

João Miguel Fernandes Jorge

vitor quarto atenas.jpg


Os grandes poetas têm sempre a capacidade de ver além do seu tempo. Quando todos rumam à direita, eles rumam à esquerda ou, simplesmente, param. Param, não no sentido de ficarem imóveis ou desistirem, param porque são capazes de sentir o seu tempo, de vê-lo sem qualquer distúrbio ou filtro social imposto. Param e conseguem entender que só regressando, dando uns passos atrás, podem continuar e avançar em frente. São herdeiros, ou filhos diretos, da Capacidade Humana de regenerar-se, de ultrapassar dificuldades, vencer. Dirão e bem: “Mas a poesia não muda nada!”. Será? Tenho sérias dúvidas! Claro que um poema não pode resolver a dívida “soberana” de um povo, mas ela lança a semente nos corações dos homens. Uma aqui, outra ali… e, talvez, indiretamente, algo se modifica, mesmo que para isso demore anos e anos. Novalis diria: “Alguns grãos poderão ser estéreis – mas basta que uns quantos germinem”. É preciso muito tempo para se ser qualquer coisa interessante! Tempo, aquilo que ninguém diz ter e, talvez, seja preciso estar-se morto para se viver realmente, pois, estar morto como diz Sloterdjik, na fieira de Platão, é condição para o pensamento, criação. É preciso estar-se longe, estar-se fora da cidade, fora da pátria, para se criar aquilo que é mais inovador e imponentemente belo.

Tudo isso vem a propósito de dois livros, publicados neste ano de 2018, um no seu início “Um quarto em Atenas” (Janeiro) de Tatiana Faia e outro no seu fim “Fuck the Polis” (Novembro) de João Miguel Fernandes Jorge. Ambos parecem ir ao encontro do mesmo objetivo: revisitar, repensar, reescrever e, até, desacelerar. Esse desacelerar do Tempo é o encontrar-se, renovadamente, perante a rica tradição clássica, do objeto artístico mais convencional (pintura/escultura/arquitetura), sem esquecer um certo olhar político: a defesa dos “oprimidos”, da simplicidade da natureza e do sossego longe da azáfama da cidade.

O retorno, o eterno retorno, do ambiente da cultura greco-romana não é um maneirismo tosco, mas um indício de que a salvação ainda é possível, a salvação pessoal e coletiva. Divago, bem sei. Mas, não se trata, aqui, de fazer crítica literária. Deixo tal pretensão para outros académicos. Interessa-me apenas apontar algumas impressões de dois livros por mim lidos e amados, neste ano que, lentamente, termina.

Desde “A terceira Miséria” de Hélia Correia (2012), que não lia um livro de poesia portuguesa contemporânea em que a Grécia Antiga /Moderna fosse pano de fundo. Para quem leu, na adolescência, intensamente Sophia e Kavafis, e na idade adulta Homero, nas fabulosas edições Cotovia, não poderia ficar indiferente a esses dois livros, de dois fabulosos poetas. Diferentes entre si, a começar pela idade/geração, mas tão parecidos e que marcam a sua geração com uma força difícil de apontar em palavras. Dois poetas (e não digo “Poetisa” em relação à Tatiana) de primeira categoria que, queiramos ou não, são pilares, cada um à sua maneira, das respetivas gerações. Dirão: “Que exagero!”. Há exagero no Amor, na Amizade, mas Não na capacidade de devido Reconhecimento.

As diferenças são facilmente notórias, os poemas longos da Tatiana contrastam com os poemas, relativamente, curtos de João Miguel Fernandes Jorge. Mas o que me interessa são os pontos de contacto entre ambos, que poderemos sintetizar: a) o fascínio pela arte grega, b) a evocação de personagens literárias e mitológicas gregas e c) o caráter declaradamente político dos dois. O último aspeto é o que me fascina particularmente. O poema “O retorno: 2016” de Tatiana Faia, dedicado ao poeta “exilado” na Finlândia - João Bosco, é o mais duro retrato de uma geração apanhada nas teias de uma grave crise económica, uma geração que se vê obrigada a emigrar, a sujeitar-se a trabalhos precários e que vê os seus sonhos defraudados. Um poema que nos diz: “não acredito que o país do puro pássaro seja possível”. É talvez o poema mais doloroso de “Um quarto em Atenas”, onde se sobressai nas entrelinhas/linhas um olhar crítico ao presente, a um presente ceifado, amputado.

Do mesmo modo, ainda que talvez mais subtilmente, o poema de João Miguel Fernandes Jorge “De um homem, a vida” mostra-nos uma vítima das crises económicas: a visão de um pedinte em “súplica” e a entrega “sobre a palma da sua mão direita” de uma pequena moeda, uma “envergonhada moeda”. A defesa dos mais frágeis, o olhar para a realidade crua do mundo que os rodeia: eis o que liga esses dois poetas. [E aqui tenho de fazer um parênteses para evocar um outro livro “político” de 2018: “A Foz em Delta” de Manuel Gusmão, com um caráter ainda mais fortemente político, longe de João Miguel Fernandes Jorge ou Tatiana Faia, é certo: “Em Portugal, 51% dos jovens/ licenciados estão no desemprego. É/ uma violência que lhes é feita, assim/ como ao país que se vê por essa via/ impedido de utilizar o seu trabalho/ qualificado.” (“Baile Mandado”).]

O caráter político dos dois livros, de Um quarto em Atenas e Fuck the Polis, sobressai durante toda a sua leitura. O “Fuck the Polis”, de João Miguel Fernandes Jorge, já no seu título aponta para esse aspeto iminentemente político, esse graffiti escrito na rua dedicada a El Greco (“Rua Doménikos Theotokopoulos”), parece em “última análise” ser a resposta dos poetas expulsos da cidade ideal de Platão. Na epígrafe, retirada de Pausânias, é evocada Nemésis (“a mais implacável entre os deuses”), é assim apresentado, desse modo ao leitor, “a nota” de que o livro foi escrito sobre o ímpeto da indignação, a mesma indignação “política” que aqui e ali parece surgir em “O Bosque” (livro-diário escrito nos anos de 2012, ano do auge da crise económica em Portugal). Assim se compreende o aparecimento, no livro de João Miguel Fernandes Jorge, de “mortos vivos”, “mendigos”, “operários” ou, ainda, homens em desespero no metro.

Para além do caráter político do livro, há a grande entrega aos poemas sobre obras-primas da Arte Grega. Os corpos criados pelos “nossos escultores favoritos” da Tatiana Faia (“Café Drama”) estão todos em “Fuck the Polis”: Policleto (“Na estela, o Doryphoros” e “Diadoumenos de delos”); Crítios (“Agôn”); Fídias (“A descalçar uma sandália”); Praxíteles (“De um homem, a vida”) e ainda os escultores das métopas de Olímpia (“Leva-te o arco de Adriano”). Se em “Um Quarto de Atenas” encontramos evocados Caravaggio, Brueghel e Manet; em “Fuck the Polis” temos, também evocados, Malevitch (“Hieratic Cross”) e El Greco (Rua Doménikos Theotokopoulos”): nos dois a mesma pincelada da pintura. Se em Tatiana Faia há um “jardim fechado no meio do nada”, em João Miguel Fernandes Jorge há um “Jardim perdido”, um poema que fala de um eco de cavalgada, o mesmo “eco” tão presente em Fernandes Jorge. Há vários pontos de contacto entre as duas obras e, como é óbvio, diferenças consideráveis, mas isso exige releitura, sensibilidade e Tempo. O já evocado Tempo.

Nestes apontamentos de hoje, quero ainda referir que no livro “Fuck the Polis”, João Miguel Fernandes Jorge escreve poemas extraordinários que nos parecem muito próximos da “narratividade fluida” de Tatiana Faia, é o caso de “Com a beleza cerâmica de uma pyxis”, “Pensei que era Fedra” (ver “Aula de Natação para Fedra” de Tatiana Faia) e “Cândia”. Ao dizer tal afirmação, procuro chamar à atenção para a juvenilidade da poesia de João Miguel Fernandes Jorge neste último livro. Apesar da diferença de idades, experiências e geração, há um encontro entre os dois poetas, ambos conhecedores da Grécia física e literária; ambos parecem encontrar-se em forma, em expressividade e em temática. Sendo eu, leitor de um e de outro, não pude deixar de reconhecer diferenças e semelhanças; impressões que precisam ser mais trabalhadas com o tempo.

João Miguel Fernandes Jorge atinge com “Fuck the Polis” um grau de beleza e pureza próximo de “À beira do mar de junho”. Aqui, neste livro, estão alguns dos mais belos poemas, alguma vez criados, em língua portuguesa dedicados à escultura clássica grega, colocando definitivamente João Miguel no mesmo patamar de Sena e Sophia, só para citar os mais óbvios. Há poemas mais complexos, mas, igualmente, poemas de uma subtileza, leveza extraordinária. É o caso por exemplo de “Cadeira”, “Os gansos brancos” (que me fez pensar no “Cantus Arcticus” de Rautavaara) e “Os incorpóreos sentidos”.

É com “Cadeira” que vos deixo: “de espaldar azul/ assento de palha// perde-se / na parede branca / a sombra”, e somos levados à tranquilidade de uma qualquer ilha grega, longe das grandes cidades, uma, porventura, silenciosa ilha onde o Tempo para. Não sendo este texto crítica literária, podemos perguntar: O que diriam os poetas expulsos da cidade de Platão? Simples: Fuck the Polis! Frase esta, eventualmente, também repetida algures por Tatiana. “Que se lixe a cidade!” E dizer “cidade”/”Polis” será dizer: exposição pública, fama, progresso desenfreado, etc. Ou talvez queira, simplesmente, dizer: “Deixem-nos (aos poetas) em sossego perante a natureza e a arte.

Carta de Elsa Morante a Alberto Moravia, (1950?)



Tradução: João Coles

Querido Alberto, não consigo dormir; e escrevo-te para te dizer aquilo que há muitos meses atrás te deveria ter dito, isto é, peço-te que me perdoes pelo meu comportamento dos últimos tempos, e, sobretudo, que não penses nunca que isso signifique o fim do meu grande carinho por ti. Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.

Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração.

Gosto muito de ti; um dia compreenderei que és a pessoa de quem mais gosto neste mundo. Mas por ora perdoa a minha doença.

Boa noite – um beijo

[escrito transversalmente na margem] Trabalhei tanto, tanto durante 4 anos que me parece impossível; e serviu para quê?



in L’amata: lettere di e a Elsa Morante - A cura di Daniele Morante con la collaborazione di Giuliana Zagra, Einaudi 2012

Moravia_Cover_Elsa.jpg

Caro Alberto, non riesco a dormire, e scrivo a te per dirti quello che già da molti mesi avrei dovuto dirti, e cioè che ti prego di perdonarmi il mio comportamento di questi ultimi tempi, e, soprattutto, di non credere mai che esso significhi la fine del mio grande affetto per te. Se tu sapessi il disordine della mia mente, che malgrado tutto riesco a nascondere, e l'incertezza che ho in ogni momento, l'impressione di sterilità, e aggiunta a questa la passione veramente strana e quasi inaudita per molti versi che mi è capitata, avresti pena di me più ancora di quella che hai.

Non credere che io non ti sia grata per il modo che usi verso di me e di cui mi ricorderò sempre. Sto molto male, non so se riuscirò a ritrovare un equilibrio in qualche cosa. Vorrei poter lavorare davvero, o amare davvero, e sarei felice di dare a qualcuno o a qualche cosa tutto quello che posso, purché la mia vita fosse compiuta finalmente e trovassi il riposo del cuore.

A te voglio tanto bene, un giorno capirò che sei sempre la persona a cui voglio più bene al mondo. Ma adesso perdonami la mia malattia.

Buona notte – ti bacio

[scritto trasversalmente su margine] Per 4 anni ho lavorato tanto, tanto che mi pare impossibile, e a che è servito?

Um poema de Kelly Grovier

  Tradução: Vítor Teves

 Velas enterradas

                   para Sean Scully

 

Algures, um menino encontra-se no fusco
de uma igreja vazia, no ar pesado
respirações de cera e fumo,
 
estica a mão ao longo do comprimento de desbaste
de uma vela do altar, rouba-a,
e sete outras ao lado. Em casa,
 
ele embrulha o seu roubo como peixe
em papel de jornal, enterra-o no jardim do pai.
Quando o padre chegar
 
para perguntar-lhe se tem alguma coisa pertencente a Deus,
ele escuta o eco mudo dos ossos
acendendo a terra. Agora, cada pincelada
 
é uma exumação, uma anatomia do fogo
um sussurro brutal com as invisíveis
congregações da alma.

de: Kelly Grovier


Buried Candles

                    for Sean Scully

 

Somewhere, a boy finds himself in the fust
of an empty church, in the stale
respirations of beeswax and smoke,
 
runs his hand along the thinning length
of an altar candle, steals it,
and seven others beside. Home,
 
he wraps his haul like fish
in newsprint, buries it in his father's garden.
When the priest arrives,
 
to ask if the boy has anything belonging to God,
he listens for the mute echo of bones
igniting the earth. Now, every brushstroke
 
is an exhumation, an anatomy of fire—
brutal whisper with the invisible
congregations of the soul.

de: Kelly Grovier

Sean Scully - White Window, 1988. Tate.jpg

Sean Scully - “White Window”, 1988.

Crise europeia, com Jürgen Habermas

união europeia.png

I

São conhecidas as crises cíclicas de ansiedade do velho continente, pensadas, por exemplo, por Voltaire, Max Weber ou Martin Heidegger, e usadas para projectos bélicos, como os das 1.ª e 2.ª guerras mundiais. Parece que oscilamos, desde sempre, entre movimentos centrípetos (junções imperiais ou federativas, alianças ideológicas ou económicas) e movimentos centrífugos (guerras mais ou menos vastas, de alta ou baixa intensidade; dissensos políticos, nacionalismos exacerbados). Agora, com a ansiedade ao rubro (crises económicas, identitárias, demográficas... e uma inultrapassável degradação ambiental, obscurecendo qualquer horizonte de expectativa futuro), voltamos à fragmentação, enclausurando as parcelas nacionais em discursos e sentimentos ensimesmados no egoísmo nacionalista, ou outros devaneios provocados pela incerteza. Por enquanto, o vírus tóxico ainda só contaminou (irredutivelmente?) Hungria, Polónia, República Checa, Reino Unido, Itália, medianamente Áustria e Holanda. Mas a eurofobia promete alastrar, talvez à França (o impulso europeísta macroniano parece inconsequente); talvez à Alemanha, agora que termina a era Merkel; talvez à Espanha, com a expressão eleitoral significativa do Podemos (bastante eurofóbico), um partido emergente de extrema direita (Vox) ou os movimentos independentistas (desaprovados pela União Europeia). E mesmo Portugal tem no BE, PCP e CDS à volta de 20% de eleitores críticos do Projecto Europeu.

II

Esta encruzilhada política, misturando ultimamente as velhas questões da distribuição e produção de riqueza com as de uma biopolítica ligada às migrações massivas, convergindo na desconfiança aguda sobre a possibilidade de um bem-estar futuro suficiente, foi pensada há pouco tempo por Jürgen Habermas, um dos filósofos actuais mais fecundos.

Seguirei aqui o resumo da conferência que proferiu na Universidade Goethe de Frankfurt, a 21 de Setembro deste ano, publicado no El País. Acredito que o artigo deste jornal me permitirá compreender as linhas principais do seu pensamento sobre este problema maior, bem sei que só um discurso longo, imbricado, rizomático, multiperspectívico se aproximará da complexidade que encerra esta questão, mas talvez possamos contribuir para o seu esclarecimento cumulativamente, uma perspectiva aqui, outra ali, mais uma e outra, trabalho colectivo de parceiros desconhecidos. Tanto mais que já ninguém acredita que haja oráculos supremos.

III

Para Habermas o processo de integração europeia está numa deriva perigosa, tanto que o autor não consegue pensar em nenhuma “nova perspectiva sobre a Europa”. O fracasso nas conversações sobre a política comum de defesa e de asilo político “demonstra que os governos dão prioridade aos seus interesses nacionais imediatos”, principalmente nos países com forte presença do populismo de direita. Havendo, inclusive, uma complacência pouco habitual em relação às contradições entre declarações europeístas e políticas concretas na linha dos antigos nacionalismos egoístas, baseados na sagração do Estado-Nação.

Habermas pensa que esta situação não resulta – é aqui, parece-me, que ele confirma a sua pertença à constelação da Escola de Frankfurt – do aumento da imigração, o populismo de direita apareceu sobretudo devido à crise das dívidas soberanas. Foi ela que começou a dividir a Europa, impedindo uma “política proactiva capaz de abordar os problemas comuns com uma mentalidade de cooperação.” Por exemplo, nem o actual auge económico da Alemanha permite atender ao facto de o euro ter sido criado com a expectativa e a promessa política de que “os níveis de vida de todos os estados membros se aproximaria”, orientando a acção política para um patamar superior de solidariedade. Na realidade, sucedeu exactamente o contrário. Por isso, reitera Habermas, “os sentimentos anti-europeus que propagam os movimentos populistas de esquerda e de direita não são um fenómeno derivado do nacionalismo xenófobo.” Nem, como disse, das migrações massivas. Na origem esteve o fracasso da integração europeia, mantendo-se uma diferença, acentuada ultimamente, entre países ricos e pobres (muitas vezes designados, apressadamente, por “países do Norte” e “países do Sul”).

IV

Em relação ao futuro, Habermas não tem inclinações optimistas. Se por um lado, considera improvável que a Eurozona, apesar do Brexit, das dívidas soberanas assustadoras de alguns membros e do confronto entre a União e o governo populista italiano, se desmorone. Tanto mais que mesmo para os países defensores de um Euro do Norte os perigos do colapso financeiro do Sul são incalculáveis. Por outro lado, nada neste momento o faz acreditar numa mudança de perspectiva que considere séria e consequente, prometendo um novo impulso na integração europeia e concretizando a finalidade de um nível médio idêntico de bem-estar nas populações dos diferentes países. E o seu pessimismo vem, em primeiro lugar, da forma como entende, enquanto alemão, o bloqueio dos países ricos a uma distribuição da riqueza mais equitativa, privilegiando-se os países pobres.

Estamos, assim, numa espécie de paz podre, mais à espera do pior do que do melhor. Sem nos esquecermos que é preferível a tranquilidade do fim a sermos medusados por uma utopia vingadora.

DÍPTICO BUKOWSKINIANO

“Merda para a beleza. Merda
para os poemas bem escritos.”

Rui Nunes – “Suíte e Fúria”

 

para o João Coles

 

                           I

A NOVA FACULDADE DE ECONOMIA

 

Larga a poesia, rapaz!
Deixa o edifício de velhos azulejos e segue para o sul.
Aproveita o bom sol, a praia, o ar
condicionado,
o bom pavimento, a tecnologia de ponta,
as garinas ou
os betos cheirosos.
Gente de bem! De boas famílias!
Deixa a poesia, rapaz!
Segue para sul, muda de edifício.
Tudo o que importa é fazer, ou fingir
fazer, contas. O que importa
são os números!
Não penses muito, rapaz!
Não sejas do contra!
Segue para sul.
Além
é
que
está
a felicidade absoluta. O futuro
radioso:
 

Um bom ordenado, um bonito nome aristocrático,
a boa empresa:
intervalos longos; jogos utilíssimos de motivação; o
convívio com os colegas 24h seguidas; a bolinha
amarela antisstress de mão em mão; o
incentivo à
rapidez e eficiência;
os prémios e o
apelo ao
empreendedorismo.
 
Segue a economia, rapaz!
Isso das letras já morreu.
Não sejas teimoso,
Não esperes o último
azulejo
sobre a tua cabeça.
Não esperes, sossegadamente, o pó.
 
Tudo tem de ser rápido.
Rapidez, pragmatismo, produção.
(superficialidade, secura, pântano)
Produzir, produzir, produzir…
Mas o quê?
Não importa, não importa. A
economia é que importa. Nada mais.
Porque mereces,
dou-te um edifício digno,
remodelado
da unha do pé ao fio de cabelo mais fino.
Um testamento de cavalo!
Cavalo?
Sim, cavalo! Aquele que relinchando,
aprovava, aprovava, aprovava.
 
Deixa as letras, rapaz!
Segue para sul.
Dedica-te aos números.
Dedica-te à economia.
Deixa que os edifícios das letras
caem por completo.
Salva-te enquanto podes!
 
Deixa as letras, rapaz!
 

                                     II

                       JOÃOZINHO

 

Menino, eu, menino,
Vai para a escola!
Vai para a escola aprender
rima.
Vai para a escola!
Usa o esquema rimático,
a metáfora condensada,
o verso longo,
nunca
o
curto,
a
sílaba ou letra
separada da longa e densa
frase. Não, enganei-me, o verso!
Vai para a escola menino,
aprende lentamente tudo
aquilo que terás de
esquecer.
Dirás: Sim, Senhor professor!
Dirás: Presente!
Dirás: Sim, sempre sim.
E passado anos, olhar-te-ás
ao espelho
e verás o boneco de cera em que te tornaste.
Um papagaio
caranguejando,
como um grilo,
os sins ao senhor professor!
Sim, a poesia é só rima,
Sim, a poesia é só métrica,
A técnica, a técnica… Bla bla bla,
Mas que raio!
Que se foda toda essa
lengalenga mentirosa.
Não porque seja má a rima ou a
métrica. É má e mentirosa
essa necessidade
aborrecida de dizer
tudo em filtro! Dizer: a poesia é ISTO,
NÃO AQUILO!
Raios partam, senhor professor,
viril,
machão,
sentado com eles no dito salário!
E eu cansado de tentar,
tentar, tentar, tentar…
Tentar o quê?
Tentar adaptar-me a esse
covil hipócrita, snob,
que cheira a mofo, a baratas, a frases
cheias de virgulas.
Odeio virgulas!
]
Lerão tudo o que escrevo,
digo,
como sendo da mão daquele que
escreve, logo
eu que nunca diria cona,
eu que nunca ofenderia uma mosca!...[
Sim, senhor professor!
Não, senhor professor!
Raios a essas sintonias! Quem? Todos os que
acham que a poesia tem de viver
numa grelha,
que nem sardinha assada.
 
Ai não gostam deste poema? Os meninos da
Catequese não gostam deste poema?
Ai não? Quero lá saber! Pois bem,
só por isso farei 300, só para vos foder o juízo!
Querem um Camões, aos pés de casa,
entregando o pequeno-almoço. Logo eu que
nunca quis ser coisa
nenhuma!

 
Um poema não pode ter
Calão!
]…Puta, cagão, brochista nunca
deve entrar num poema
!?
Falta aqui uma enorme razão!...[
Uma razão para agitar essas
pardas águas,
esse mofo!
 
Pois, claro! Pois, claro! Sou um idiota.
Mas nunca recusei ser idiota ou louco.
É o maior dos elogios!
O que escrevo só diz respeito
aos recusados, aflitos, esquecidos.
Se lerem este poema no metro,
farão rir dois ou três.

está o meu leitor:
o inadaptado,
o vírus do sistema, da máquina
que procura uniformizar:
gostar de A e B e só de A e B:
dizer poesia apenas na forma grelhada;
forçar sempre o sorriso;
nunca dizer uma caralhada;
nunca dizer: vai-te foder!
Exagero?
Pois bem, nada pode ser exagerado, nada
pode ser dito a gritar, nunca
a cólera,
a fúria,
a vontade e a força que nos faz
ser idiotas, imperfeitos, incompletos,
Imbecis.
 
No dia em que fecharmos a poesia
numa grelha,
nesse dia,
já não seremos humanos!
A máquina, a boa vontade da máquina, já
nos terá sugado as
entranhas e tudo será dito
como querem que seja dito:
«Sim, senhor professor, tens
toda a razão,
a poesia só
existe
pela
e
na
Rima.»
 
Mas haverá sempre falha no Sistema: EU!
 
Vai-te foder, Senhor professor!
Vai-te foder!

2.10.2018

Charles-Bukowski-2.jpg

Charles Bukowski (1920-1994)