Acordámos e estava tudo branco

Folheamos o álbum de família, suas imagens têm a secura térrea das fotos que se arquivam nos registos dos cárceres largando nostalgias por sais de prata. Nelas balizados os devidos marcos cronológicos: as núpcias, a viagem transatlântica, o primeiro filho, o dia em que nevou pela primeira e última vez na nossa cidade. São os marcos que hoje nos escapam: não sabemos como representar as núpcias desenlaçadas antes de fundida a aliança, a viagem em pouca terra, o filho incriado, os dias sem fenómenos. Deixámos por isso de dar continuidade às imagens. A linhagem desemboca onde cessámos a representação. O álbum termina nessa fotografia do dia em que nevou pela primeira e última vez, a paisagem registada como um campo sobre cujas flores um manto branco havia descido sem razão. Fenómeno único, de uma beleza de parábola, nesta cidade do Sul, datado com precisão para que se dissesse neste dia acordámos e estava tudo branco. Uma transformação externa a envolver por dentro. A uniformidade oblíqua de telhados cobertos de neve só interrompida pelas irregularidades das clarabóias. E as coisas sendo então concebidas sob o véu da neve, já mordaça. Pergunto-me em que quartos, em que lucarnas se continuou a pintar com cores pardas as telas atiradas contra as paredes. Pergunto-me quem eram os que se retiravam, incapazes de representar a vida, cristalinamente, sob a imposição do branco.