O insulto

De Visions of Reality, Gustav Deutsch (2013). Fotografia de Jerzy Palacz a partir do quadro de E. Hopper.

De Visions of Reality, Gustav Deutsch (2013). Fotografia de Jerzy Palacz a partir do quadro de E. Hopper.

Já nasceste a saber o que eu não sei 

António Franco Alexandre, «19», Duende

 

Em certas povoações da Sardenha, de Malta ou da Turquia, se um homem esmurrasse outro ou o esfaqueasse enquanto ambos estivessem entretidos a trocar insultos perante quem se juntasse para ver, isto podia ser entendido como falta de habilidade do que insultava para responder com um grau equivalente de elaboração e criatividade ao insulto que acabava de receber. Esfaquear um homem ou esmurrá-lo na Sardenha, em Malta ou na Turquia podia ser uma forma de fraqueza, porque sinal de falta de perspicácia.

            Quando Andrei começou a perceber o que se ia passar—na verdade cometeu o erro de confundir a dor com um desses estados de ansiedade que nos últimos tempos experimentava frequentemente—pobre coração de passarinho, diria a sua mãezinha e agora finalmente com alguma razão—experimentou uma tontura, uma breve sensação de desequilíbrio que correu ligeira como um gato do braço para o lado esquerdo do peito numa trajectória que se afundou numa vertigem e, segurando com mais força o copo de papel cheio de leite com café, sentiu a sala começar a girar, como se estivesse num carrossel, como se ele próprio não fosse um corpo fixo no tempo e no espaço. Quando a dor se descerrou inteira como um vidro que estava um pouco rachado mas que finalmente se decidiu a partir-se por completo, Andrei experimentou o breve momento de alívio que sentem os irreparavelmente culpados.

            Um dos motivos por que Andrei estava convencido da existência de deus, além de muitas horas de consumo de romances de Dostoevsky, tinha justamente a ver com o facto de que Andrei era capaz de sentir culpa. Muita culpa, quase sempre gratuitamente e por tudo e por nada. Sendo capaz de culpa, sentia imediatamente a obrigação de se sentir ligado a um número de gente que por uma espécie de ponderação ética pensava que a culpa sancionava toda a crueldade de que eram capazes e que não só os prevenia de cometer actos dignos de culpa, quanto os absolvia deles se cometidos. Assim, nem ele estava sozinho na sua culpa (acompanhado, tornava-se menos responsável por ela), nem ela era sem propósito. Além disso, a ideia de deus não fecha a porta à possibilidade da expiação e não a fecha sobretudo ao prazer perverso que alguns sofrimentos trazem. Sofrer pode também manter-nos ligados a tudo o que nos recusamos a aprender a perder.

            O lado menos castrante da crença de Andrei no divino vinha do prazer narcisístico que a beleza lhe dava. Uma das suas frases preferidas? «Em tudo, só encontro sempre aquilo de que já andava à procura.» Ele era portanto o último alvo da sua própria ideia de beleza e, se desiludido, já o esperava. Uma arte que já nem é sobre destroços. Andrei sentia que a sua crença na beleza, mais a sua fé na culpa eram o que o tornava único, isto é, fora do banal. Acreditar que acreditar em alguma coisa sem mover uma palha e apenas papagueando a crença, é por vezes o que chega para nos tornar únicos aos nossos próprios olhos, sobretudo se sabemos, consciente ou inconscientemente, que o mundo tende a ignorar preguiçosamente o detalhe.

            E esta era toda a singularidade que nos últimos anos, naquele quarto em andares arrumados em filas, com filas arrumadas em fileiras de quartos, onde as pessoas iam e vinham mudando-se de quarto em quarto, em quarteirões inteiros de bairros postos como peças num cubo de Rubik, sem que o puzzle alguma vez se resolvesse, sem que alcançassem outro lugar que não aquele desbaralhar provisório de movimentos precários, esta, como disse, era toda a singularidade que Andrei tinha cultivado. E agora toda aquela de que era capaz.

            Mas o que estava na cabeça de Andrei quando ele de repente entendeu que o seu coração se ia rasgar com um queixume fácil de trapo apodrecido era uma mulher em que Andrei não pensava há muito tempo e em quem não punha a vista há quatro ou cinco anos, com quem tivera encontros furtivos numa sucessão breve de cinco ou seis meses num ano só, de quem nunca se chegara a sentir particularmente próximo. Nunca fizera qualquer esforço de tornar a encontrá-la. E naquela fracção de um segundo ou dois em que a cabeça de Andrei se encaminhava, perigosamente desamparada, em direcção à extremidade da mesa, esta piedosa alma sensível lembrou-se daquele verso de Sophia que diz que nunca se distingue muito bem o vivido do não vivido. E caiu com estrondo, acertando com a cabeça no canto da mesa e espalhando o leite com café pelo chão e pela parede.

            Justamente esta frase, matéria de citação bocejante e, de tantas vezes repetida, sem significado, para escritores eruditos como uma tendência para inspirar emoções fáceis em auditórios facilmente dispostos à comoção, era das últimas que ele tinha dito à rapariga dos quatro ou cinco anos atrás. Ela tinha acabado de prender aquele cabelo que era um rio que nunca mais acabava com um gancho que lembrava uma estaca, um golpe de castanho e vermelho a medir a corrente, e vestiu a camisola. Havia  música na rua, era o fim da tarde, estava muito calor e conseguia ouvir-se o barulho de gente a ir e vir. Ela disse-lhe, tudo o que sei está em crise.

Disse só aquilo, com uma certeza que nada podia abalar, tanto mais estranho porque tudo aquilo era sobre o contrário, mas como se fosse a única conclusão possível, a única resposta. Não se mexeu, não encolheu os ombros, não nada. Atirou só aquela frase para o ar. Mas ele pensou que aquilo era indecisão, que era sobre ele e sentiu o quarto começar a girar. Olhou pela janela. Um rapazinho magro vestido de marinheiro e com um balão azul, a flutuar no ar, um dos joelhos pequeninos esfolado. Andrei sentiu uma náusea que o invadia como uma maré. Uma rejeição abjecta. Qualquer coisa naquela frase provocou-lhe um medo absoluto, o calor da tarde doentia como uma febre, todo ele recuou, como um homem que dando com uma serpente no caminho só tem tempo de atirar um pouco o corpo para trás, para se desviar e escapar como quem sabe que não se vai livrar do que ali é realmente perigoso.

            E assim respondeu-lhe aquilo: nunca se distingue muito bem o vivido do não vivido.

            Não me arrestei até aqui para pregar moral, partilhar com os outros as minhas opiniões é um luxo que se me vai tornando cada vez mais inacessível e cada vez me parece de mais mau gosto cair na tentação de pensar que opiniões se devem impor. Além disso, é coisa que nos põe no papel de julgar os outros, o que muitas vezes pode ser sinal de pouca perspicácia e falta generosidade. Moral não é o que aqui é urgente. Não é isso que aqui me interessa. Àquilo que Andrei entendeu como um insulto, ele na verdade não atirou o que podia ter sido o ainda mais gracioso insulto, mas antes o feio golpe de punhos que só os completamente sem jeito podem. Estar morto de medo num quarto onde a humidade faz apodrecer o papel de parede, quando antes se entrou carregando na cabeça a esperança cobarde do logo-se-vê-onde-isto-vai-dar e assim aos poucos, em tudo, ir-se resolvendo pelo contentamento do pouco, do cada vez menos, do nada de todo. E assim só desta vez, mais um bocadinho, já que aqui que estamos por que raio não ficamos por aqui? O problema: o vivido distingue-se sempre muito bem do não vivido. A diferença não era essa. Não era sequer a mesma coisa. Naquele segundo em que ela tacteou na parede as irregularidades do papel e disse aquilo, ela já sabia tudo o que ele não sabia. Já tinha nascido a saber tudo o que ele não sabia.